No início de maio, quando as águas do Guaíba subiram, soou o alerta e, rapidamente as ruas de Porto Alegre foram inundadas. Um dos bairros mais afetados foi o Sarandi, na Zona Norte da capital gaúcha, onde está localizado o Quilombo dos Machado. Formado por aproximadamente 260 famílias, o quilombo existe há mais de 70 anos. No maior desastre socioambiental climático já registrado na história, o território serviu como ponto de referência e acolhida, mesmo tendo 40% de sua comunidade atingida.
Com uma população de 91.366 habitantes, representando 6,48% da população da Capital, o Sarandi possui um área de 28,76 km², 6,48% do total da cidade, e com densidade demográfica de 3.176,84 habitantes por km². Na enchente de maio, mais de 26 mil pessoas do bairro foram afetadas.
“Contudo, a gente teve um fortalecimento de sobrevivência muito grande, não só para as famílias atingidas aqui, mas também para todas as comunidades, além do Sarandi, como a Vila Dique, Vila Nazaré, Povo Sem Medo, Vila Brasília, Asa Branca”, comenta Rogério Machado, conhecido como Jamaica, 43 anos, liderança do quilombo.
Com uma área de quatro hectares, o Quilombo dos Machado está localizado próximo ao Carrefour da vvenida Sertório. Jamaica acredita que, por conta da sua geografia, 60% do território foi poupado, mesmo com a presença do valão da avenida. “Graças aos orixás, boa parte de nosso território foi poupado”. Em frente da sua residência foi montada uma tenda para receber mantimento e doações, um ponto de atendimento na região.
“A gente conseguiu se fortalecer ali com o café da manhã, com a roupa. Com bastante marmita no almoço. Com psicólogos caminhando pela comunidade. Com uma enfermaria, porque lamentavelmente os postos de saúde foram todos atingidos. Com o pessoal fazendo algumas brincadeiras com as crianças para tentar tirar aquele foco da desgraça porque as praças que tinham foram destruídas. Só um praça próxima aqui não foi atingida. A gente fez um trabalho bem fortalecedor de educação popular e infantil”, expõe a liderança.
Conforme pontua Jamaica, o quilombo teve esse preparo para que a situaçao fosse amenizada quando as águas baixassem e as pessoas voltassem para casa. “E ver toda aquela destruição ali dentro dessa casa, e aqueles que conseguissem limpar, com alguns apoios, para tentar voltar ao seu cotidiano normal.”
O território faz parte dos 11 quilombos urbanos da capital gaúcha. Porto Alegre é a cidade com maior presença de quilombolas, com 2,2 mil pessoas.
Segundo levantamento da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), as 145 comunidades quilombolas do estado, em 70 municípios, sofreram impactos das cheias, afetando 17.552 quilombolas.
Zona mais afetada
No período eleitoral, afirma Jamaica, circula em alguns grupos de comunicação que a situação no bairro está tranquila. O que segundo ele não é verdade. Ele cita, por exemplo, a situação da Vila Nova Brasília, no bairro Sarandi, uma dos mais atingidas.
“Se a gente for caminhar agora, a gente vai ver quantas pessoas tinham e quantas pessoas já conseguiram voltar para sua casa, e quantas pessoas não vão voltar mais porque não tem mais condições de remontar sua vida. Essa época de eleição aparece meio mundo que quando o bairro estava dentro da água a gente não viu ninguém”, afirma.
Jamaica também cita a situação da remoção das famílias na mesma localidade. De acordo com o Executivo municipal, a remoção de 37 residências construídas "irregularmente" foi necessária para a recomposição do dique, localizado em uma área onde residem 70 mil pessoas.
Ele destaca que, próximo ao local, está localizado uma loja da Havan. Conta a prefeitura está pedindo para os moradores assinarem um termo de compromisso, com a proposta de mudança para um lugar melhor, concordando que o atual local é inseguro. Para Jamaica, há um tratamento distinto entre a comunidade e o empresário.
“Por que que o tratamento com as comunidades de periferia, quilombola, é diferente do tratamento que foi com a Havan?" questiona? "Todos foram atingidos, mas a maioria da cidade que está sendo removida é preta. Aquele jogo político da prefeitura, que 'vamos fazer coisa melhor pra vocês', a gente já sabe. Vão nos atirar lá para o fim do mundo, sem estrutura para nada, sem política popular para nada”, pontua Jamaica, citando os casos de remoção da população da antiga ilhota, o bairro Rio Branco.
“Na verdade, sempre foi esse modo, essa prática que eles têm de domínio. De dizer, você tem que sair e pronto. Sem consulta, muitas vezes, à própria comunidade. Você não compra uma casa escriturada por 150 mil. Tudo vem de cima para baixo, nunca de baixo para cima. Porque se fosse de baixo para cima, a gente teria um planejamento de como nós queríamos a cidade, não de como o Estado quer a cidade para nós."
Conforme reportagem do Sul 21, ao todo, 48 residências localizadas sobre o dique do Sarandi foram retiradas em junho, em preparação para a obra, cuja estimativa de conclusão é de seis meses.
De acordo com a reportagem, no dia 10 de setembro, a prefeitura iniciou uma nova fase de visitas técnicas com engenheiros e agentes sociais, especialmente nas regiões das Ilhas e nas proximidades do dique do Sarandi, para avaliar a possibilidade de realocação das famílias. As visitas são parte de uma força-tarefa articulada pelo Escritório de Reconstrução e tem o objetivo de desenvolver 19 mil laudos em toda a cidade nos próximos dois meses.
De acordo com Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, da prefeitura de Porto Alegre, até o momento foram concluídas as indicações de 2.190 famílias para receberem novas casas. Para o Sarandi deve haver, de acordo com a pasta, aproximadamente 250 na área dos diques, o restante são, em sua maioria, para moradores da região das Ilhas e do bairro Farrapos.
No dia 23 de setembro moradores da região realizaram uma manifestação em frente à prefeitura. Diante da situação pela qual passa o bairro, um grupo criou a comissão de moradores Fiscaliza Sarandi.
Cinco meses após a enchente comunidade vai se reconstruindo aos poucos
Expedito Pereira da Silva, mais conhecido como Ceará, é vizinho de Jamaica, não foi atingido pelas águas, mas teve seu comércio comprometido pela enchente. “Foi complicado porque parou tudo, o comércio parou, as fábricas de bebidas não entregavam para nós e nós dependíamos muito das bebidas para sobreviver. O que ajudou foi a doação que veio de fora”, conta.
Aos 36 anos, sendo 10 como morador do quilombo, ele conta que o seu pequeno comércio de bebidas existe em frente a sua casa há oito anos.
Nesse período ele conta que teve que recorrer a terceiros para manter o comércio, com um valor acima do mercado, o que encareceu os produtos em seu estabelecimento. “O pessoal falava muito, 'ó, tá muito caro', mas não entendia que eu estava pegando de terceiros, bem mais caro.”
"Nunca vi um político aqui"
Ao comentar sobre os cinco meses pós-enchente, concorda que a situação da região segue complicada. ”O pessoal, enquanto pegaram esse dinheiro do governo, os 5 mil, ainda tinha recurso, mas agora que acabou tá muito difícil. Está cada dia pior.”
Sobre a atuação da prefeitura, ele comenta: "Até podem vir alguns, só se for pedir voto, porque para ajudar aqui, eu nunca vi um político aqui me falar nada, para ajudar alguma coisa, não apareceu".
Para o futuro ele espera que a prefeitura asfalte as vias do quilombo, assim como regularize o esgoto que fica a céu aberto.
A sogra de Jamaica, Elaira Peixoto da Silva, 60 anos, mora há quatro décadas no bairro. Sua casa fica a 25 minutos a pé do quilombo. Ela conta que água chegou aos poucos. “Perdi tudo. Só sobrou as paredes e o telhado.”
Ela só conseguiu voltar para casa um mês e meio depois do início da enchente. E o cenário, como para todos os atingidos, foi de desespero. “Tive que botar tudo fora, não deu pra aproveitar nada. Foi muito triste.”
Ela afirma que, cinco meses após a enchente, os desafios são muitos, principalmente na área da saúde. Afastada do trabalho por motivos de saúde, com problema na coluna, ela está fazendo tratamento. Mas os postos de saúde estão aquém de sua capacidade. Sobre a atuação da prefeitura, ela reclama deixa desejar. “Lá embaixo eles não fazem quase nada, não vão lá embaixo, perto da igreja de Santa Catarina. Posto de saúde lá perto de casa não tá funcionando. Agora não tem mercado perto, só tem um armazém lá, tá ruim mesmo. Se quiser alguma coisa tem que ir longe, comprar, tá tudo difícil.”
Moradora do quilombo há seis anos, Maria da Conceição Souto de Oliveira, 64 anos, conta que a água chegou pelos fundos da sua casa. Ela e o marido ficaram três semanas, foram para um dos abrigos. “Era muito barulho, quase entrei em depressão. O tempo fora de casa foi horrível”, recorda. Quando voltaram, encontraram muito barro. Das perdas ela conta que enchente muita coisa, como geladeira, armários e roupeiros.
“Qualquer chuvinha entrava pro pátio e deixava ele molhado, mas nunca como dessa vez”, afirma. Maria recebeu o auxílio tanto do governo federal como do estado e, com o valor, foi possível começar a reconstrução do que foi perdido. A dona de casa espera conseguir se aposentar para finalizar o que não foi possível fazer, entre elas concluir as duas peças da residência de material.
Enfrentando desafios pela família
Maria afirma que gosta de morar no local. Não quer se mudar por conta da sua filha, que é mãe solo de três crianças. “Agora que ela conseguiu construir a casinha dela, aos poucos, ai eu me mudo e ela fica? E meus netos? Fico pensando nas crianças. Mas é bom aqui, se encher de novo, seja o que Deus quiser, porque se encher de novo não vai ser só eu, vai ser todo mundo.”
Haitiano e morador do quilombo, Mulet Casseus também lembra do dia que a água chegou. "Era um medo completo. Encheu de água aqui, todo mundo ficou na rua. As pessoas trouxeram abrigo para nós, trouxeram uma lona que cobria nós. Ficamos para cuidar das casas. Tem pessoas que foram para a casa de outra pessoa, e nós ficamos aqui para cuidar, para que outra pessoa não entrasse aqui e pegasse as coisas.”
Com 44 anos de idade, Mulet vive há sete anos no quilombo. No Haiti trabalhava como servente de pedreiro e, no Brasil, teve alguns trabalhos, o mais recente como restaurador de vias públicas. Atualmente está desempregado e procurando uma nova colocação.
Ele conta que com ajuda da liderança do quilombo conseguiu acessar o recurso federal, o que possibilitou começar a construir sua casa novamente. Há sete anos sem conseguir visitar sua família, ele espera um dia trazê-los ao Brasil, sua esposa, três filhos e uma neta. “Saudades, às vezes estou sofrendo com dor de cabeça porque meu filho está crescendo atrás de mim, perdi todo o amor de papai, de mamãe, porque os filhos estão quase todos as grandes”, lamenta.
Como muitos imigrantes, Mulet veio buscar uma vida melhor para cuidar e manter sua família. Ele é um dos 127.301 migrantes, refugiados e apátridas que vivem atualmente no RS, de acordo com Boletim de Saúde do Trabalhador e Trabalhadora Migrante publicado pela Secretaria da Saúde (SES) e elaborado om informações do Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Segundo a secretaria o úmero equivale a 7,4% do total de migrantes internacionais no Brasil e representa 1,2% em relação à população geral do Estado. A maioria é de origem dos seguintes países: Uruguai, Venezuela, Haiti, Argentina, Senegal, Colômbia, Cuba, Portugal, Chile, Alemanha, Itália e Paraguai. Do total, apenas 22.885 pessoa possui vínculo empregatício formal, segundo os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS, 2023)
Uma tenda montada em frente da casa de Jamaica segue realizando doações a quem precisa. No dia da visita da reportagem, um casal estava saindo com um colchão de casal. Jamaica comenta que, no momento, a comunidade necessita de mais cestas básicas.
O Brasil de Fato RS indagou a prefeitura de Porto Alegre sobre ações e projetos para a reestruturação do bairro. Até o fechamento desta matéria, não houve retorno. O espaço segue aberto para manifestação.
Edição: Marcelo Ferreira