Rio Grande do Sul

Coluna

Maria e as abelhas

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Como os polinizadores são essenciais para o enfrentamento da crise climática, a proteção às abelhas-sem-ferrão merece destaque - Foto: Reprodução
As eleições têm tudo a ver com a guerra no Oriente Médio ou com a proteção das abelhas

Período eleitoral, onde com enorme esforço alguns tentam esclarecer a urgência de que muitos se atentem para a guerra do capitalismo contra a natureza e o avanço do fascismo, entre nós. E isso quando o acirramento das bombas no Oriente Médio já sugere que o fim do mundo pode estar mesmo se aproximando, para todos, com risco de chegar antes dos limites impostos à vida, pelo aquecimento global. Ainda assim, vou me atrever a falar de abelhas. Mais propriamente, das melipônias, aquelas pequenas abelhas-sem-ferrão, que tendem a passar desapercebidas porque, quando se fala em insetos polinizadores, o que nos vem à mente são aquelas vistosas europeias, as apis melíferas, e suas toneladas de mel.

Mas o fato é que para as menos de 10 espécies de apis existem mais de 500 espécies de abelhas-sem-ferrão. Além disso, existem muitos outros organismos polinizadores. Mas as abelhas-sem-ferrão são os mais relevantes, entre todos eles. E isso significa muitas coisas. De um lado, que elas são pouco conhecidas e, de outro, que elas podem ser o que existe de mais importante, no planeta, para a transferência de genes, entre as plantas. E como as plantas não apenas sequestram os gases de efeito estufa, como também (e principalmente) transformam a luz do sol na energia que sustenta todas as outras formas de vida, o assunto merece uma reflexão.

Por isso destaco aqui, mas não vou repetir, o que foi tratado no I Simpósio Nacional de Meliponicultura Zootécnia. Os interessados ganharão muito se investirem algum tempo lendo a carta de conclusão do evento ou, ainda, caso desejem aprofundar estudos sobre o tema, examinando a bibliografia recomendada pelos organizadores, disponível em (1), (2), (3), (4), (5) e (6).

O fato é que aquele simpósio me permitiu alcançar (e me levou a decidir repartir aqui) a percepção de que, associado às abelhas-sem-ferrão existe um universo desconhecido de possibilidades de desenvolvimento humano. Não se trata apenas de riquezas envolvendo bioprodutos, leveduras, pigmentos, aromas e remédios que estamos deixando se perder por ignorância. Há outras dimensões, mais misteriosas e sofisticadas, envolvendo o relacionamento daquelas abelhinhas com colônias de bactérias e fungos que habitam seus intestinos e suas colmeias.

Trata-se de algo tão delicado que se aproxima do que entendemos como “afinidades espirituais”. Pensem no caso daquelas singularidades que nos orientam para a seleção de parcerias, como algo que nos aproxima de pessoas que passamos a amar, e que sem as quais nos parece que a vida perde muito de seu colorido. Agora imagine isso na escala do desenvolvimento biológico, milenar, de comunidades de organismos que evoluíram em simbioses tão íntimas que seus indivíduos (e suas espécies) só existem em conjunto.

Sabe aquele grau de conexão onde, rompida a parceria, a existência desaparece? Ali onde, mantida a ligação, as melhorias brotam, a vida evolui? Pois isso claramente faz parte de algo tão misterioso que está além do que podemos acompanhar. É coisa apara ser compreendida no futuro, como aquilo que ocorreu no alvorecer da vida, quando organismos procariontes, associados e depois incorporados a organismos eucariontes, levaram ao surgimento de organelas (os cloroplastos nos vegetais e as mitocôndrias nos animais) que, hoje, sabemos, permitem a síntese da energia vital à todas as espécies de todos os reinos.

Bom, voltando às melipônias, o fato é que aquelas abelhas carregam dentro de si arranjos populacionais de organismos vivos que não são encontrados em outros locais, ou mesmo em outros tipos de abelhas. Vários grupos de fungos e bactérias habitam seus intestinos e ali estão ocultos, em parcerias por vezes restritas a um único tipo de abelha. E são centenas (considerando apenas aquelas que conhecemos) as espécies de abelhas-sem-ferrão.

E tudo isso, cuja complexidade e importância não conseguimos alcançar, está sendo apagado da vida, pelos interesses de um modelo de agronegócio que se faz presente nestas eleições por candidatos a vereadores e prefeitos ligados àquelas bancadas negacionistas, do boi, da bala, da bíblia e da ignorância desavergonhada.

Mas retomando o foco: acabando como as melipônias, os agrotóxicos e as queimadas interromperão uma das pontes entre reinos (fungos e animais - no caso insetos) que se conectam no intestino daquelas abelhas e que são essenciais para a manutenção das plantas e tudo que delas depende. As implicações, acreditem, são mais relevantes do que as bombas jogadas pelo Irã sobre Israel, ou do que os desdobramentos dali resultantes.

Pense nisso levando em conta o fato de que o aquecimento global é algo maior, ainda que associado aos interesses que alimentam o fascismo e todas as guerras. Pense nisso a sério: a seca, a degradação ambiental, a fome... ninguém escapará das mudanças impostas pela elevação da temperatura planetária, e elas não ficarão restritas à zonas de sacrifício.

Neste contexto uma atualização honesta e oportuna da bíblia poderia transformar aquele “crescei e multiplicai-vos” em “adaptem-se ou desapareçam”.  

E como a vida poderia “se adaptar” a alterações nas condições que a ela se impõem, e que já comprometem a sobrevivência de organismos essenciais ao todo?

A resposta é: “evoluindo”.

Na prática, para nós isto exigirá mudanças de comportamento e de perspectivas, com descarte/substituição/desmascaramento e, onde cabível, prisão de politicos negacionistas, eliminação das guerras contra a natureza e alteração radical nos hábitos de consumo. Será muito difícil, mas há que começar já, neste domingo. E como a proteção à natureza é parte disso, coloca-se a necessidade escolher vereadores e prefeitos conscientes dessa realidade.

Mas ainda assim, o que fizermos pode ser insuficiente na medida que o todo já está ameaçado.

Para o todo, adaptação significará alteração na composição genética das partes, com mudanças adaptativas que confiram melhores condições de resiliência às conexões entre os reinos, de forma a possibilitar ajustamentos da vida às condições de estresse continuado, que se avolumam.

E como isso se dará? Pela polinização!

Então, como os polinizadores são essenciais para o enfrentamento da crise climática, e como inclusive as plantas de polinização fechada precisarão de trocas de pólen, para evoluir, a proteção às abelhas-sem-ferrão merece destaque. Aliás, ecólogos como Paulo Brack já dizem há tempos que devemos nos preocupar com a epigenética, sendo tola a ilusão de que a composição dos genomas, estudada pela genética clássica, seria uma espécie de livro da vida, definidor de tudo que vemos. Na realidade, as expressões da vida dependem da relação entre o ambiente e o genoma, sendo que os genes carregam possibilidades de expressão condicionadas pelo meio e limitadas à carga genética de cada indivíduo. Neste sentido, sendo algo bem maior, a evolução depende de incorporação, às espécies, de mutações observadas nos indivíduos. Portanto, a diversidade de mutações capaz de permitir adaptação da vida a ambientes em alteração reside na conexão entre variações observadas nos indivíduos, cuja abrangência depende das populações. Imagine o que isso significa para o futuro de organizações humanas que ignoram a importância da diversidade e apostam tudo em clones de eucalipto, meia dúzia de tipos de soja transgênica, algum modelo triste de família-de-bem, ou coisas parecidas.

E aqui vai a mensagem final desta coluna: precisamos fortalecer as relações de interdependência e empenhar nossas energias pela preservação de todas as formas de diversidade. A defesa da vida exige coragem. Passa pela consciência, pela autoeducação, pela proteção da natureza e pelo bloqueio dos grupos comprometidos com o oposto. Neste domingo, as eleições têm tudo a ver com isso, assim como têm a ver com a guerra no Oriente Médio, ou com a proteção das abelhas.

No fundo, e como em todo compromisso, como diz a canção, Maria, Maria, será preciso ter força, ter gana, ter raça. Ter fé na vida.

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira