Rio Grande do Sul

Crise Climática

Justiça ambiental exige mudança do modelo econômico de desenvolvimento, afirma carta síntese de encontro de ouvidorias

Encontro Nacional de Ouvidorias das Defensorias Públicas encerrou com a publicação da Carta de Porto Alegre

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
" A resposta para a emergência climática passa por mais democracia, participação e controle social", destaca documento - Foto: Bernardo Contri ASCOM/DPE-RS

Seca no Norte e temporais no Sul são efeitos das mudanças climáticas que castigam o Brasil. Segundo o Centro de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden), o país vive a pior seca da sua história recente e, na outra ponta, há cinco meses, o Rio Grande do Sul foi assolado pela maior enchente já registrada em sua história. A situação foi tema do seminário "Crise Climática e Justiça Ambiental: o papel das Defensorias Públicas na Prevenção e Reparação". O evento fez parte do Encontro Nacional de Ouvidorias das Defensorias Públicas, que encerrou na última sexta-feira (27) com a leitura da Carta de Porto Alegre sobre a crise climática. 

De acordo com dados do Monitor de Secas, cerca de 200 municípios continuam em condição de seca extrema, com destaque para São Paulo (82 municípios), Minas Gerais (52), Goiás (12), Mato Grosso do Sul (8) e Mato Grosso. O Amazonas lidera a área total com seca de julho, seguido por Pará, Mato Grosso, Minas Gerais e Bahia. No total, entre junho e julho, a área com o fenômeno aumentou de 5,96 milhões para 7,04 milhões de km², o equivalente a 83% do território brasileiro. O Rio Grande do Sul se mantém livre de seca há dez meses consecutivos.

Contudo, o estado gaúcho tem sofrido há mais de um ano com intensos eventos climáticos, como os ciclones extratropicais e as enchentes de setembro e novembro de 2023, que atingiram a região do Vale do Taquari. E em maio deste ano, um nova enchente, desta vez superando a de 1941, tornando-se o maior desastre ambiental e socioeconômico já registrado na história do RS. 

Injustiça ambiental

“Estamos vivenciando não só no Brasil, não só no Rio Grande do Sul, mas no mundo inteiro, um movimento de injustiça ambiental. Em que as relações de poder se sobrepõe, a questão da humanidade e do quanto o antropocentrismo vem tomando conta da realidade social do mundo inteiro”, afirma a presidente do Conselho Nacional de Ouvidorias das Defensorias Públicas do Brasil (CNODP), Maria Aparecida Lucca Caovilla. 

A carta sintetizada no final do evento diz: “Para combater a tripla crise planetária, que abrange crise climática, poluição e perda de biodiversidade, a questão ambiental deve ser ressignificada e revalorizada pela sociedade e pelas instituições de justiça do país, devendo dar atenção aos conflitos socioambientais derivados da integração de conhecimentos jurídicos e tradicionais para uma defesa eficaz das comunidades ainda mais vulnerabilizadas pela emergência climática”.

Segundo reforça Maria Aparecida, é preciso trabalhar de maneira não só a garantir, mas efetivar políticas públicas que vão de encontro a esse movimento que luta por um progresso ilimitado. “Nós temos a responsabilidade de garantir o acesso à justiça enquanto acesso a uma ordem jurídica justa para todas as pessoas e não somente para algumas. O Estado elitizado precisa ser desconstruído. O Estado para o mercado precisa ser desconstruído. E nós precisamos garantir que as pessoas em vulnerabilidade social ou as pessoas vulnerabilizadas consigam ajudar a reerguer um processo de reconstrução a partir dos seus próprios saberes, da sua cultura, da sua identidade, da sua raça e numa relação de respeito à diversidade.”

Repensar o modelo econômico

Para o ouvidor-geral da Defensoria Publica da União, Gleidson Renato Martins Dias, a  humanidade está com os dias contados. “O que nós, povos tradicionais, avisávamos há 30 anos chegou muito mais cedo. Não dá mais para esperar. Não dá mais para a ONU fazer que não existe. Não dá para nós pensarmos uma discussão sustentável sem enfrentar o capitalismo, sem enfrentar a ganância, sem enfrentar esse conceito de desenvolvimento que acaba acabando com a natureza. Isso é urgente”, defende.

Ligado ao Movimento Negro Unificado e natural de Pelotas (RS), Gleidson é o primeiro ouvidor-geral negro da DPU. “Ou nós temos a consciência de que nossos filhos e netos terão uma vida horrorosa com esse clima, ou nós mudamos toda a plataforma, inclusive o conceito de desenvolvimento”, enfatiza. 

Neste sentido, a carta pontua que, para entrar no caminho da justiça ambiental, é necessário mudar urgentemente o modelo econômico de desenvolvimento, os comportamentos individuais e coletivos, o padrão e a forma de consumo e muito mais. “Além disso, são necessárias políticas públicas efetivas de fiscalização e responsabilização, visando a proteção e reparação do meio ambiente para ir além, rompendo estruturas sociais racistas, machistas, patriarcais e expansionistas que mantém, com o modelo econômico, a injustiça social. De outra forma, os ganhos continuarão indo para uma pequena parcela da sociedade, enquanto os passivos são sentidos pela maioria e agravam e multiplicam os casos de racismo e injustiça ambiental”, diz outro trecho do documento.

Sobre o encontro

O Encontro Nacional de Ouvidorias de Defensorias Públicas reuniu o conjunto de ouvidoras e ouvidores externos de defensorias públicas em Porto Alegre.Esteve em debate a crise climática e a reconstrução do estado. "As emergências climáticas estão afetando o país e o mundo e a Defensoria Pública, como instituição que garante o acesso à justiça dos vulnerabilizados, não está se eximindo de enfrentar este debate”, afirma o ouvidor-geral da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE/RS), Rodrigo Medeiros.

Segundo ele, as ouvidorias externas trouxeram experiências, testemunhos, debates técnicos e articulações na sua busca pelo aperfeiçoamento e fortalecimento da instituição. “O encontro ainda propiciou que defensoras e defensores públicas/os de outros estados pudessem se reunir com as/os do Rio Grande do Sul e debatem-se estratégias e atuações articuladas."

Para a coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH) da DPE-RS, Alessandra Quines Cruz, o encontro do CNODP gerou uma grande movimentação em torno do tema da justiça climática. Uma pauta antiga dos movimentos ambientalistas, mas ainda incipiente para o sistema de justiça. "O grande mérito do evento foi abrir espaço para a interlocução entre ambientalistas, movimentos, e integrantes do sistema de justiça, em especial da Defensoria Pública”, pontua. 

Além da interlocução, foram destacadas a responsabilização da Defensoria, conforme suas atribuições. “As discussões nos mostraram que os efeitos da crise climática atingem de forma desigual diferentes segmentos da sociedade e que é preciso um olhar especializado, o que é dever da Defensoria em termos constitucionais.  A partir de agora, está estabelecido um espaço de discussão sob a orientação da Carta de Porto Alegre, o que o Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH), em conjunto com a Ouvidoria, pretende transformar em ações permanentes no âmbito da nossa instituição", completou Alessandra.

Ficou encaminhado a realização de uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados, assim como uma recomendação conjunta com várias instituições sobre o caso da retomada indígena de Viamão. A carta pode ser conferida na integra neste link.


Edição: Marcelo Ferreira