Rio Grande do Sul

Sem moradia

Melo fez o menor investimento em habitação popular dos últimos 20 anos em Porto Alegre

Levantamento aponta que, das cerca de 1,4 mil casas construídas no período, só três são dos últimos quatro anos

Sul21 |
Três casas pré-fabricadas na comunidade que busca reconhecimento como Quilombo Mocambo seriam as únicas construídas na atual gestão - Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Com base na Lei de Acesso à Informação, a reportagem do Sul21 solicitou à Prefeitura de Porto Alegre um levantamento sobre os investimentos feitos pela administração municipal em habitação popular nos últimos 20 anos. O documento registra uma soma de R$ 126 milhões no período, entre os anos de 2004 e 2024. O valor resultou na construção de aproximadamente 1,4 mil unidades habitacionais, além de algumas obras de infraestrutura.

O período contempla cinco diferentes gestões. A atual administração, do prefeito Sebastião Melo (MDB), tem apenas dois registros no levantamento: a construção de três casas pré-fabricadas e o serviço de manutenção predial preventiva em um apartamento no bairro Jardim Leopoldina. As casas ficam na área da Associação Comunitária Amigos e Moradores da Cidade Baixa e Arredores, cuja comunidade local busca reconhecimento como Quilombo Mocambo.

A reportagem apurou que as residências são moradias temporárias, enquanto a questão legal não avança. A construção dos imóveis e o cercamento do terreno foram feitos com uma verba de R$ 300 mil destinada através do Orçamento Participativo da região. A Prefeitura não informa no documento e também não quis responder à reportagem o montante investido em cada uma das obras. Mesmo assim, é possível apontar que, segundo o levantamento, se trata do período com o menor investimento em construção de habitações populares dos últimos 20 anos.

Em penúltimo lugar, aparece a gestão de Nelson Marchezan Júnior (PSDB). A tabela não detalha o número de unidades habitacionais construídas pelo então prefeito, mas aponta a soma total dos seus quatro anos de governo: R$ 3,6 milhões, uma quantia obviamente superior ao valor mobilizado na construção de três casas pré-fabricadas. Para se ter uma ideia, apenas o ano de 2004, o último do governo João Verle (PT), teve 435 casas construídas, somando R$ 9,6 milhões, conforme o levantamento.

Em artigo publicado na imprensa em 15 de janeiro deste ano e reproduzido no site da Prefeitura de Porto Alegre, o ex-secretário municipal de habitação e regularização fundiária André Machado admite que “há quase 30 mil pessoas inscritas no Departamento Municipal de Habitação (Demhab) em busca de uma casa”.


Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Porém, o número hoje deve ser muito maior segundo o Movimento Nacional da Luta pela Moradia (MNLM), que tem participação no Conselho Municipal de Habitação. “O cadastro da Prefeitura tinha 64 mil pessoas em dezembro de 2023. Daí decidiram fazer um recadastramento virtual, via aplicativo 156, com problemas técnicos, poucas ações presenciais e sem divulgação. Resultado: 34 mil pessoas cadastradas. Como não foram entregues casas no período, isso demonstra o quanto estão escondendo a demanda habitacional do município. Se não foram entregues casas, o número não pode diminuir”, defende Douglas Cordeiro, coordenador municipal do MNLM. A estimativa dele é que, após a enchente de maio, o déficit deva ultrapassar 100 mil pessoas.

O estudo Déficit Habitacional e Inadequação de Moradias no Brasil, realizado pela Fundação João Pinheiro em 2021, aponta que a Região Metropolitana de Porto Alegre — e não apenas a Capital — registrava um déficit de moradias de 90.585 unidades, o que incluía 31.619 habitações em situação precária, 10.116 famílias em situação de coabitação e 48.849 que pagavam um aluguel com valor excessivo para suas realidades financeiras.

“Não há hoje uma política pública de enfrentamento do déficit habitacional da cidade”. A frase é do professor do Departamento de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFRGS Eber Marzullo. Ao analisar os dados obtidos pela reportagem, em especial a falta de investimentos na construção de unidades habitacionais nos últimos oito anos, ele avalia que há uma evidente contradição, diante da crescente demanda por moradia.

A secretária de Habitação e Regularização Fundiária, Simone Somensi, inicialmente, num primeiro contato por e-mail, se colocou à disposição para fornecer dados e explicar a política habitacional executada pela pasta. Porém, posteriormente, depois de receber uma orientação do Departamento de Comunicação da Prefeitura, voltou atrás e decidiu não falar. Dos investimentos feitos na atual gestão, a reportagem conseguiu confirmar apenas que, nos últimos três anos, a Prefeitura teria auxiliado mais de 400 famílias na compra de imóveis, principalmente através do Bônus Moradia. A lei que deu origem ao projeto é uma iniciativa da gestão do ex-prefeito José Fortunati (atualmente no PV) e garante financiamento de até R$ 127 mil para a compra de unidades habitacionais pelos beneficiados.

O professor Marzullo vê com ressalvas o modelo de financiamento. Ele salienta que, muitas vezes, o valor oferecido aos beneficiários não permite ao cidadão comprar um imóvel próximo ao local onde vive e trabalha, levando parte da população para áreas ainda mais periféricas da cidade. Com menos serviços do Estado próximos – como escolas e hospitais – e também com custos maiores de transporte, a vida fica mais cara e difícil. O resultado é que alguns acabam se desfazendo da casa nova e voltando para o status anterior, ou pior ainda, para uma moradia até mais precária. “Tem um fluxo, tem um pêndulo, muitas vezes migratório das famílias pobres que experimentam a nova situação e passam por um entendimento que não valeu a pena e aí retornam. A tendência (quando isso acontece) é não funcionar.”


 Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Douglas Cordeiro não considera os programas de financiamento como políticas de habitação. Para tal, ele defende que o auxílio para a compra de imóveis deveria vir acompanhado de um estudo técnico que avaliasse as condições sociais e econômicas estabelecidas a partir do novo endereço. “São famílias bem humildes. Muitas vivem, por exemplo, de reciclagem. Você simplesmente comprar um apartamento e largar essa família dentro não resolve. As pessoas precisam da renda que tinham com a atividade que faziam. As pessoas têm os laços de território, as redes de apoio, a vaga na escola, os custos de transporte. Tudo muda”, explica.

O ex-prefeito José Fortunati, que esteve à frente da administração municipal entre março de 2010 e dezembro de 2016, investiu R$ 67,1 milhões na construção de mais 500 unidades habitacionais, entre outras obras de infraestrutura. Com isso, foi a gestão com mais verbas destinadas à construção de casas populares no período analisado. O valor significa quase metade do registrado entre 2004 e 2024. Em segundo lugar, aparece o ex-prefeito José Fogaça (MDB) com R$ 45,7 milhões e mais de 400 casas construídas, entre outras obras de infraestrutura.

“A pauta dos governos sempre foi entregar casas como contrapartida à política de remoções, de retirada das pessoas da região central da cidade. Com o avanço do neoliberalismo e da especulação imobiliária, esse atual governo (Melo) deixou de fazer a contrapartida. Só restaram as remoções. Essa é Prefeitura do despejo, é a Prefeitura que não investe em moradia”, conclui Douglas.

Edição: Sul 21