"O Bate Folhas do Mercado Público renova as energias fragilizadas pelas lutas, doenças, ansiedades, maus olhados, stress, desânimo, desequilíbrio. É o resgate da fé e da esperança de centenas de pessoas que respeitam e participam desse ritual da 'Encruzilhada do Mercado''', afirma a coordenadora do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma), ialorixá Iyá Vera Soares.
No coração do Mercado Público de Porto Alegre, uma fila se forma. Sobre o mosaico de pedras e bronze, na encruzilhada dos quatro corredores centrais do local, ornamentado com sete chaves em homenagem ao Bará, o orixá, babás e iyás, vestidos de branco, verde e amarelo realizaram, nesta sexta e sábado (27 e 28) o tradicional Bate Folhas de Xangô. A data também é uma celebração e homenagem ao dia de Ibejis (Cosme e Damião). Já 29 de setembro é dia de Xangô (no sincretismo, São João Batista).
“A folha é remédio, cura, é tudo espiritual. Ela faz a psicanálise, massagem. Ela também dá o laço, a vara de marmelo. E aí nós juntamos com o marmelo, juntamos as folhas sagradas, e aí surge um grande projeto chamado Bate Folha, que nasce na Bahia”, comenta Iya Vera, organizadora da celebração.
A ialorixá conheceu a prática e trouxe para o estado, onde a princípio começou de brincadeira e foi tomando forma. “Tinha muita gente que vinha até o Mercado pedindo um axezinho. Então a gente criou a troca com o Axé. Cada terreiro que chegasse trazia uma cesta, uma lembrança de virada de ano. E aí nasce a ideia de organizar a questão da folha, porque nós entendemos e aprendemos com os nossos antepassados que enquanto existe uma folha, existe um orixá. O Centro Memorial de Matriz Africana 13 de Agosto, que é o meu terreiro, a minha casa tradicional, trouxe essa memória e vai continuar para as outras gerações”, afirma Iyá Vera.
Cultura milenar
Nascido com o nome Gersinho Ribeiro de Matos, o babalorixá do Batuque nação Oyó, mestre Cica tem sua criação ligada ao Yorubá e há anos acompanha o Bate Folhas. Para ele a cerimônia tem como uma de suas funções energizar o que precisa de energia. “O Bate Folha é uma tradição muito rica, é uma cultura milenar e está ajudando as pessoas que precisam de ajuda espiritual, para suas vidas materiais serem enriquecidas através da folha. A folha energizada, essa folha macerada, que dá assim líquido, vem dar o fortalecimento, o enriquecimento de tudo o que acontece dentro.”
“Estamos aqui no Mercado não somente com o intuito de atender todas as pessoas da comunidade que vêm aqui, pegar um pouco de axé do Bará do Mercado, mas também estamos aqui demarcando o nosso espaço, que é um espaço nosso, do nosso povo, da nossa comunidade, do povo de matriz africana”, pontua o babálorixa Juliano de Oxalá, da cidade de Viamão, e apresentador do programa Babákeke Força Ancestral.
Conforme reforça babálorixa Alexandre de Ossain, não existe orixá sem folhas. “As folhas fazem parte do nosso axé, representa também a purificação." Para ele o Bate Folhas deveria fazer parte do calendário de Porto Alegre. “Ele tem essa referência no nosso mundo imaterial e no nosso mundo material, representando a nossa cura espiritual e a nossa cura da vida material por si só”, explica.
Para a iya Giza de Oxum Pandá, integrante da articulação Fonsanpotma, a celebração também simboliza o resgate dos que iniciaram o Bate Folhas. Em um contexto de pós-enchente, é também um chamado à natureza. "Todos nós sofremos muito com a enchente. Mas também entendemos o recado da natureza. Nós descuidamos dela. E essa natureza veio cobrar o que era dela. Esse nosso banho de folha é onde nós pedimos à mãe natureza, que nos presenteou com essas ervas, a purificação da alma, o fortalecimento de cada músculo, cada nervo, cada osso. A renovação das nossas células, através das ervas. Isso é nosso. Isso vem de nós. E nós estamos aqui resgatando.”
Luta por direitos e contra o racismo religioso
Diretor da Casa de Iemanjá 11 de Maio, de Porto Alegre, e diretor social da Federação das Religiões Afro-Brasileiras (Afrobras), o babalorixá Mozart de Iemanjá, José Antônio Salvador, enfatiza a necessidade de união do povo afro-religioso em torno de atividades que possam elevar e dar destaque às atividades filantrópicas sociais e de assistência social. “Sobretudo, na questão do engajamento político, porque nós precisamos ter em mente que só a política é que vai conseguir garantir a permanência dos nossos direitos adquiridos até aqui”, pontua.
A Afrobras é uma instituição que conta com 51 anos de fundação em Porto Alegre e atua em todo o Rio Grande do Sul, orientando e amparando juridicamente, liturgicamente, todas as casas que são filiadas. “Nós estamos sempre brigando pelos direitos do nosso povo de religião. E nós não fazemos nada sem a política. Só através dela vamos conseguir atingir os nossos objetivos, com a inclusão também política da nossa comunidade”, afirma o babalorixá e presidente da entidade, José Antônio Salvador.
Entre os direitos e lutas está o combate ao racismo religioso. De acordo com dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em 2023 foram registradas 1.478 denúncias por intolerância religiosa no Disque Direitos Humanos – Disque 100, aumento de 80% em relação a 2022. Segundo o levantamento, as pessoas violadas com mais frequência são pertencentes às religiões umbanda, candomblé e outras declarações de religiosidades afro-brasileiras.
“Nós sempre sofremos com o racismo religioso, continuamos a sofrer e enquanto o nosso povo não souber brigar pelos seus direitos e levar para a delegacia, levar para o Judiciário essas questões, nós não vamos sair do chão. Nós temos que brigar pelos nossos direitos em todos os âmbitos, nacional, estadual, municipal, em todos os momentos da nossa vida”, afirma Salvador.
Conforme complementa Juliano, o Bate Folhas também é uma forma de combater o racismo. "E a gente mostrar para as pessoas que esse país é construído por negros, é construído por muitos dos nossos religiosos, então é uma forma de combater o racismo”, afirma.
Para Iya Vera, o combate ao racismo não está preso na cor da pele, está na consciência da liberdade de expressão dos povos. “Hoje, nós estamos reunidos para pedir, sim, À nossa identidade, que é a nossa língua yorubá. Eu falo por todas as pessoas que acreditam, orixá, cabeça e corpo, que acreditam no axé, que a força é vital, uma humanização que realmente se precisa, o respeito às águas, o respeito ao ambiente. Estamos em um período eleitoral, de disputa. Vamos pensar, voto não tem preço, tem consequência”, ressalta.
Energia
“A fé, ela é muito viva. E quando as pessoas sentem a energia que é transmitida através do Bate Folhas, é muito melhor, é muito gratificante, na verdade, esse trabalho. Porque a gente vê pessoas chegando realmente bem exaustas do seu dia a dia, bem cansadas, e muitas vezes até esmorecidas da sua fé. E saírem daqui melhor”, expõe Juliano.
A comunicadora e produtora cultural ana c. entende que toda energia boa é bem-vinda. "As folhas trazem purificação e os ritos coletivos têm muita força e potência. Tomei o passe na intenção de receber um axé, uma energia boa, de fortalecer uma conexão espiritual nesse rito tão tradicional e acolhedor que é o Bate Folhas”, afirma.
Edição: Marcelo Ferreira