Rio Grande do Sul

Coluna

Socialismo e democracia participativa: um debate urgente

Imagem de perfil do Colunistaesd
"A democracia interna pode e deve caminhar lado a lado com a radicalidade necessária para organizar e lutar em todos os níveis" - Reprodução/CepChile
Porque a 'esquerda' se contenta em ser a fiadora de uma democracia liberal limitada?

Desde o fim do chamado “modelo soviético” que não existe uma idealização de sociedade a ser buscada. O debate circula, mas nada mais aprumado, mais concreto. A queda de um projeto de Estado com planejamento central, partido único e distribuição de renda sem precedentes deixou um vazio nas esquerdas mundiais, em especial àquelas operando em países da periferia do Ocidente, tal é o caso de nossa América Latina. Mesmo os setores mais críticos à antiga União Soviética (como este que aqui escreve) ficaram com menos referência para se posicionar mais “à esquerda”. A mentira e a desinformação abundantes geraram ainda mais confusão.

Se a “linha de Moscou” pode ser condenada, é no sentido do autoritarismo, na sociedade de controle e não necessariamente no modo de produção. Apesar da existência de uma concentração desnecessária, a diferenciação social (do salário mais alto ao mais baixo) foi a menor na história da humanidade, ao menos a partir da etapa industrial. Em termos de distribuição de direitos socioeconômicos (como estudo, saúde, moradia, transporte, lazer, desporto e aposentadoria) a União Soviética foi um avanço sem precedentes. Seria possível uma sociedade igualitária com liberdade de pensamento individual e pluripartidarismo? Sim. Existe algo assim na atualidade? Não, ou ainda não. A inexistência de um projeto concreto não significa que jamais venha a ocorrer. Assim sendo, porque a “esquerda” se contenta em ser a fiadora de uma democracia liberal limitada?

Invertendo a pergunta. Porque é tão difícil associar um projeto socialista com a democracia como regime fundamental? Talvez pelas experiências do século XX terem tido como vertente central o modelo de partido único, a começar pelo monopólio da força e a supressão da liberdade dos Soviets pelo Partido Bolchevique já durante a guerra civil? Não seria possível pensar uma frente de forças da esquerda revolucionária e um comando unificado ou compartido? Será que ao se fazer governo do Estado Czarista não houve uma amálgama entre a direção do partido e o comando do Estado?

Outro tema, esse pode ser mais próximo de nossos tempos. Recentemente participei de uma transmissão ao vivo ("live" no anglicismo) no brioso canal A Voz Trabalhadora, onde dividi tela com Tebni Pino Saavedra (este chileno e veterano da FPMR e do PC chileno), Nildo Ouriques (UFSC) e o editor Luiz Portinho, um incansável defensor do direito dos aposentados. O debate era sobre a experiência de Allende no Chile e nosso 11 de setembro, o latinoamericano em 1973. Ao final pensei em voz alta e trouxe a seguinte reflexão. Havia quatro partidos políticos comprometidos com a transição ao socialismo: Partido Socialista, Partido Comunista, Esquerda Cristã e Movimento de Esquerda Revolucionária. Logo, se fosse derrotado o golpe e o Chile caminhasse rumo ao socialismo haveria uma guerra civil dentro da esquerda para ver quem exerceria o poder a partir do Palacio La Moneda. Ou o Poder Popular ia ser instalado com partidos de esquerda e representações sociais organizadas – como pobladores (moradores), estudantes, sindicatos, povos originários e demais setores?

Esta vontade de construir um objetivo comum pode se dar a partir do tempo presente? Sim, evidente que sim. O problema da ausência de teoria é que esta gera a ausência de reflexão e possibilidade. Teoria precisa ser testada, realizada em experiências de base, em instituições sociais, em acórdãos políticos em luta. Em geral a confiança política é fruto mais do trabalho em comum, da cumplicidade e do fato de que os acordos tenham sido cumpridos. O inverso é igualmente verdadeiro.

Numa atmosfera pouco fraterna, de realismo cínico como instrumento de legitimação e pouca ou nenhuma ousadia na ação direta, a chance da esquerda ou da luta social virar uma mescla de jogo institucional e disputa interna por parcos recursos é muito grande. E, ao contrário do que se imagina, a democracia interna pode e deve caminhar lado a lado com a radicalidade necessária para organizar e lutar em todos os níveis, sempre conforme as circunstâncias e as possibilidades. Isso dentro de um planejamento. Afinal, organização política de esquerda é para isso, certo? Ajudar a construir um "povo unido e forte" como cantávamos na hoje distante década de 1980.

Este debate não se esgota aqui e embora pareça distante de sua realização, não está longe de muitas discussões que circulam nas vertentes da esquerda mais classista e com experiência real de ação direta e organização de base. Dialoga com as presenças sociais mais sentidas, considerando a multiplicidade de sujeitos sociais e entidades que se organizam em torno de uma luta concreta. Enfim, as esquerdas sempre foram múltiplas e não somente social-democratas ou estatistas, isso desde a Primeira Internacional.

É preciso buscar uma forma de expressar essa diversidade por fora da armadilha das instituições burguesas e pós-coloniais (como o desenho de Estado que temos na América Latina). Vamos em frente.

APOIE ESTA COLUNA E OS PRODUTOS JORNALÍSTICOS DO ICCEP (https://www.youtube.com/@OColetivo) – PIX [email protected]

* Bruno Lima Rocha Beaklini ([email protected] / www.estrategiaeanalise.com.br) é jornalista, cientista político e professor de relações internacionais; é membro do ICCEP / O Coletivo, editor do programa Oriente Médio em Revista, colunista do Monitor do Oriente Médio e participa da luta pela democracia na comunicação social.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

 
 

 

 

Edição: Marcelo Ferreira