Duas análises essenciais sobre a eleição em Porto Alegre foram publicadas nos últimos dias. Não pelo mainstream e sim por veículos alternativos. Não pelo jornalismo empresarial que, sabemos todos, tem muito mais de empresarial do que de jornalismo. Nenhuma novidade. De onde menos se espera é dali mesmo que não sai nada, como ensinava o Barão de Itararé, ele próprio jornalista e alternativo.
Distintas entre si, cada uma aborda uma fatia do problema, esmiuçando o caráter da eleição, seus protagonistas e as forças nela envolvidas. E ambas enfocam pontos cruciais que, até então, jaziam nas sombras, como sujeitos ocultos da batalha eleitoral.
Uma é do destemido Jornal Já que, no papel ou no digital, a tudo resiste – e esse tudo abarca um processo absurdo e infinito movido pela família Rigotto. Seu crime? Fazer jornalismo. O Já completará 40 anos em 2025. E ostenta o que os impérios guascas de comunicação nunca conquistaram: um Prêmio Esso Nacional de Reportagem.
Outra é do site Matinal que cobre os movimentos da prefeitura e da Câmara de Vereadores, levantando pautas das quais a mídia corporativa foge como o diabo da cruz.
No Já, Elmar Bones descortina a postura da imprensa na construção de um quadro eleitoral em que o prefeito que afogou a cidade nada de braçada nas pesquisas de opinião. Critica a cobertura pífia dedicada ao pleito de Porto Alegre, sublinhando que, ao longo de quatro anos, Sebastião Melo foi tratado a pão de ló. Entregue na boquinha.
Jornais, rádios, TVs e meios digitais dos grandes grupos passaram pano incansavelmente para erros, omissões, tragédias, denúncias de corrupção e negócios muito mal explicados – entre eles a estranhíssima compra de R$ 100 milhões em livros fora da agenda pedagógica.
Questionar o prefeito que funciona como uma espécie de despachante dos donos da cidade, sobretudo da área imobiliária, nem pensar. No máximo, uma matéria delicada e pontual, seguida do torpor do esquecimento.
No Matinal, Juremir Machado da Silva acerta ao cutucar um nervo exposto da mentalidade preconceituosa. E acerta ainda ao afrontar o machismo e suas sequelas na disputa pelo voto.
Sua personagem é Maria do Rosário, a candidata do PT, cuja rejeição é atribuída por ser mulher dentro de um sistema onde quem dá as cartas e joga de mão é o patriarcado. O mesmo fado de Dilma Rousseff, Manuela D'Ávila, Luciana Genro e outras mulheres de esquerda na política.
Na conta da rejeição também entra, com destaque, sua condição de inabalável lutadora pelos direitos humanos. Maria do Rosário é repelida por ficar ao lado da civilização contra a barbárie. Como alguém que defende o certo, o bom e o justo poderia ser repudiada?
Bem, a Declaração Universal dos Direitos Humanos não foi redigida por Maria do Rosário. Foi obra de todos os países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) e um dos seus primeiros signatários foi o Brasil. Perante a carta, os humanos têm, por exemplo, direito de não serem submetidos à escravidão ou à tortura, de igualdade perante a lei, de constituir família sem restrição de raça, religião ou nacionalidade, ao devido processo legal, ao repouso e ao lazer, à solicitação de asilo etc.
Quem pode ser contra isso? É um instrumento de proteção da vida. De todas as vidas humanas.
No entanto, em Pindorama, o senso comum identifica os paladinos dos direitos humanos como “defensores de bandidos”. Por certo, o chorume punitivista que escorre de certos programas de rádio e TVs é acionista majoritário dessa elaboração mental.
Mesmo não sendo sociólogo ou cientista político, vou me permitir extravasar e ir além das minhas humildes chinelas. Percebo que aquilo que incomoda algumas cabeças não são “os direitos humanos” em abstrato. Até porque elas gostam deles, valem-se deles e não estão dispostas a deles abrirem mão sob hipótese alguma.
O que desagrada alguns espíritos cevados na intolerância é o socorro a quem tem seus direitos humanos pisoteados no Brasil. Pessoas a quem ninguém ajuda e que, manda a lei, devem ser tratadas igualmente. Uma das frases mais repetidas e mais estúpidas busca a equivalência entre “direitos humanos” e “direitos de bandidos”. Mas também é reveladora.
Quem são “os bandidos”? Se formos acreditar na preferência das abordagens policiais, “bandido” ou “suspeito” é sempre um homem preto, pardo e pobre. Não há bandidos loiros no Brasil.
A polícia não entra sem autorização judicial em uma casa suspeita de gente rica e branca no Moinhos de Vento, no Leblon, nos Jardins. E entra com bons modos, pedindo licença e dizendo “por favor”. Portanto, não viola os direitos humanos dos moradores.
Nas vilas miseráveis de Porto Alegre, Rio ou São Paulo o nome do mandado é pé na porta, não raro acompanhado de tapa ou tiro. Aqui, há violação dos direitos humanos que precisam de quem acolha os ofendidos para que a Constituição seja obedecida e a justiça feita.
Não há operações policiais com direito à bala perdida ou chacinas nos bairros chiques. Massacres são privilégio da população periférica que é, de novo, pobre, preta e parda. E com seus direitos humanos ignorados, mesmo sendo maioria absoluta no país.
Logo, a ira contra os “direitos humanos” dos brasileiros de 2024 não visa contestar uma noção imaterial elaborada em 1948 sob a dor da culpa do Holocausto na Nova York do pós-guerra. A verdade nua e crua é que existe gente que não aceita – até sem saber disso - que pobres, pretos e pardos sejam sujeitos de “direitos humanos”. O que é uma maneira de recusar-lhes, implicitamente, sua humanidade.
Maria do Rosário, ao contrário, reconhece neles a condição humana negada. E por isso é alvo da fúria dessa modalidade brutal de negacionismo.
Na nação que abrigou a mais numerosa – cinco milhões de indivíduos – e a mais duradoura experiência de escravidão – quatro séculos – da história mundial, dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam que, em 2023, quase 70% da população encarcerada era negra, um atestado eloquente do racismo estrutural. Em 2020, o censo do IBGE constatou que 55,5% dos brasileiros e brasileiras são pardos ou pretos. Para eles e elas, direitos humanos como educação, emprego, moradia, saúde, liberdade, segurança e respeito sempre foram e continuam sendo escassos ou ausentes.
Defensores dos direitos humanos nunca tiveram vida fácil. Trabalham para o próximo e não para si mesmos. É apostolado que não gera renda ou prestígio. Gera incompreensões, desaforos, ameaças e atentados. Não facilita o alpinismo social nem abre caminhos para o dinheiro.
Muitos deles se tornaram mártires. Há uma extensa listagem no Brasil e no mundo. No Sul dos Estados Unidos dos anos 1960, brancos que apoiavam a população afrodescendente na reivindicação de direitos civis - outro nome de “direitos humanos” – eventualmente eram assassinados. Eram tratados como “amantes de negros”. Pouco lhes importava. Sabiam que estavam do lado certo da História.
Maria do Rosário também está.
* Jornalista
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira