Rio Grande do Sul

Papo de Sábado

'O tradicionalismo também precisa ter no seu interior o combate ao racismo', diz deputado

Na Semana Farroupilha, Matheus Gomes reflete sobre o papel do negro hoje e na Revolução dos Farrapos   

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Que a gente não esqueça da traição de Porongos porque tragicamente inaugurou uma perspectiva de violência contra negros e negras no estado - Ilustração: Juan Manuel Blanes

Para o deputado estadual e historiador Matheus Gomes (Psol), um dos expoentes da Bancada Negra, primeiro na Câmara de Vereadores da Capital e hoje da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, o racismo não pode ser tradição.

“Queremos excluir elementos que reforçam um estereótipo de inferioridade do negro”, explica abordando as comemorações de mais um 20 de Setembro, a data que simboliza a Revolução dos Farrapos (1835-1845), quando parte das elites gaúchas se levantou contra o Império, o Rio Grande do Sul se separou do Brasil e virou um país.

“Não é uma luta contra o tradicionalismo”, repara. “Pelo contrário, é uma luta para que o tradicionalismo possa incorporar mais a população negra, que é mais de 20% do povo gaúcho e é parte dessa história.”


"A fragmentação da nossa história nos impediu de sermos parte dessa luta" / Foto: Divulgação

Acompanhe:

Brasil de Fato RS - Neste ano o governo Lula assinou lei que reconhece os Lanceiros Negros como Heróis da Pátria. O que isso significa para a luta contra o racismo?

Matheus Gomes - Significa reconhecimento de que a história do Rio Grande do Sul contou com a contribuição importantíssima de negras e negros no seu evento fundador, do ponto de vista do tradicionalismo, da cultura gaúcha, que é a Guerra dos Farrapos. Por muito tempo, foi apagado o papel dos Lanceiros Negros. Hoje temos reconhecimento e isso é um elemento importante para compreender aquele período, porque de fato existiu uma guerra dos grandes fazendeiros do Rio Grande do Sul contra o Império do Brasil. 

Mas a grande divisão da sociedade naquele momento era entre escravizados e cidadãos livres. E os Lanceiros Negros se inserem aí. Então, eles são parte central dessa história e precisam do reconhecimento, não só em nível local, mas nacionalmente também, como componentes do grande espectro de rebeliões e lutas de negros e negros contra a escravização. 

O que também vem ao encontro da questão contra o apagamento histórico que temos muito forte ainda...

Exatamente. O Rio Grande do Sul é uma expressão disso porque, por décadas, se construiu um imaginário do tradicionalismo gaúcho sem falar de Lanceiros Negros. E hoje, graças à luta do movimento negro, isso já não é possível. 

Em 2018, construiu-se uma senzala no Acampamento Farroupilha

Pensando no episódio dos Lanceiros, como vê as comemorações da Semana Farroupilha?

Elas são uma expressão de um cultura que moldou grande parte da identidade do povo gaúcho a partir de meados do século 20. Acredito que é um fenômeno popular de amplo reconhecimento em todas as classes sociais. No entanto, reproduziu por muito tempo expressões do preconceito racial. Lembro que, em 2018, construiu-se uma senzala como uma forma de homenagear negros e negros no Acampamento Farroupilha. 

E bem, nós, nos últimos anos, estamos fazendo uma reflexão de que o tradicionalismo também precisa ter no seu interior o combate ao racismo. E a valorização do papel do negro na construção dessa cultura, da história do Rio Grande do Sul. 

A síntese dessa nossa ação é que o racismo não pode ser tradição. Ou seja, queremos excluir elementos que reforçam um estereótipo de inferioridade do negro. Questões de preconceito racial no ambiente cultural gaúcho. Essa é a nossa batalha. Não é uma luta contra o tradicionalismo. Pelo contrário, é uma luta para que o tradicionalismo possa incorporar mais a população negra, que é mais de 20% do povo gaúcho e é parte dessa história.

Nos últimos anos, houve um crescimento do debate sobre a questão dos Lanceiros. Isto já se reflete em melhoria no que diz respeito ao combate ao racismo na sociedade gaúcha?

Reflete uma maior conscientização de negros e negros e também de não-negros sobre a necessidade de combater o racismo. Eu conheci a história dos Lanceiros Negros em sala de aula. É uma expressão da importância de ter leis como a 10.639 e outras. Ou mesmo as ações afirmativas que incluíram não só negros e negros nas universidades, mas trouxeram demandas curriculares de pensar também como abordar a questão racial no Brasil dentro do ensino superior. Porque, a partir disso, a gente pode conhecer mais a nossa história e, a partir daí, ter consciência dos desafios da realidade.

Nossa história foi sistematicamente apagada porque a nossa vinda ao Brasil é oriunda de um grande crime contra a humanidade

A história, para todos os segmentos étnicos dos imigrantes no Rio Grande do Sul, é sempre valorizada. Agora estamos aí vendo os 200 anos da imigração alemã. Então, o povo que veio para o estado em condições de extrema pobreza, muitas dificuldades, cultua seus grandes feitos, valoriza a nossa história como uma forma de olhar para futuro. E nós, negros e negras, temos o direito de fazer o mesmo. 

A grande diferença é que a nossa história foi sistematicamente apagada. Porque a nossa vinda ao Brasil é oriunda de um grande crime contra a humanidade, que é a escravização. Então se tentou, por muitos anos, impedir que a gente trouxesse a nossa versão dos fatos. Porque fomos os alvos desse crime. 


"Não há um ambiente cultural, social do Rio Grande do Sul em que a gente não esteja fazendo a nossa contribuição"  / Foto: Divulgação/Piquete Lanceiros Negros Contemporâneos

Conheceste a história dos Lanceiros na escola. Nesse sentido de apagamento, a primeira romancista brasileira foi uma escritora negra, Maria Firmina dos Reis, e que só recentemente teve esse reconhecimento...

Exatamente. A história da população negra no Brasil é fragmentada. Não conseguimos ainda ter uma compreensão a nível nacional de como que o povo negro viveu a luta contra a escravização, atravessou o século 20 numa situação de extrema desigualdade e exclusão social. E agora, no século 21, olha para o futuro e tenta se constituir como parte real mesmo, integrada da nação brasileira. É uma luta ainda em aberto. 

A fragmentação da nossa história nos impediu de sermos parte dessa luta. Não é à toa que a gente está vivendo hoje bancadas negras (nos legislativos de Porto Alegre e do estado), o movimento negro está mais forte. Porque, 50 e poucos anos atrás, se iniciou todo o movimento pela consciência negra. 

É isso: noção de onde a gente veio, de quem nós somos e para onde a gente vai é consciência, é um projeto político. E isso, a história, um reconhecimento da nossa importância cultural, econômica, política, é fundamental. 

Somos o estado que acabou dando  origem ao movimento pelo 20 de Novembro

Um tema que costuma causar estranhamento é o fato do RS ser o estado com maior número de terreiros de religiões afro no Brasil. Como se explica esse dado e o que revela?

O que explica esse estranhamento é justamente a negação do papel que a população negra tem no Rio Grande do Sul. Historicamente e também do ponto de vista social, do que a gente representa nas relações que se estabeleceram no nosso território desde a sua constituição. A presença negra sempre foi um fato. Então, a partir daí, se criou também os elementos próprios de uma variação da religiosidade de matriz africana, o batuque no Rio Grande do Sul tem uma história incrível, que extrapolou a população negra em si. É algo que hoje atingiu diferentes camadas sociais, pessoas brancas, não negras, que são adeptas dessa expressão religiosa. 

E isso reflete também um elemento da organização de negras e negras no Rio Grande do Sul. Sempre existiu de maneira muito intensa. Por isso somos o estado que acabou dando origem ao movimento pelo 20 de Novembro (Dia de Zumbi), junto com o Grupo Palmares, com o (poeta e militante negro) Oliveira Silveira. E hoje é feriado nacional por conta de um movimento que surgiu aqui. 

Então, creio que a explicação para isso é o grau de resiliência, de inventividade política, de articulação que a comunidade negra desenvolveu. Isso se expressa em vários aspectos. Temos clubes negros que são muito antigos, uma imprensa negra que tem uma tradição. A cultura negra está presente em tudo, seja na musicalidade do tradicionalismo, no samba, no carnaval, no hip-hop, nas artes cênicas, enfim... 

Não há um ambiente cultural, social do Rio Grande do Sul em que a gente não esteja fazendo a nossa contribuição. A não ser aqueles da elite econômica, da burguesia gaúcha, porque essa, sim, realmente é muito fechada à contribuição do povo negro.

O tema dos quilombos urbanos também tem uma história com o Rio Grande do Sul

Outro fator também é a presença dos quilombos urbanos no estado. Porto Alegre, por exemplo, é a capital com o maior número de territórios entre as capitais...

O tema dos quilombos urbanos também tem uma história com o Rio Grande do Sul, desde o momento em que o Movimento Negro Unificado (MNU) começa a discutir esse conceito até a luta pela garantia de territórios negros na cidade (serem) reconhecidos como quilombos também. Temos essa peculiaridade de termos colocado a ideia dos quilombos urbanos em cena, em nível nacional, e garantido também que eles se constituíssem como territórios, integrando toda essa estrutura de comunidades quilombolas.

Alguns desses quilombos estão em áreas nobres da capital. Os bairros negros eram onde hoje temos (os bairros) Bom Fim, Rio Branco, Montserrat. A comunidade negra vivia ali onde hoje estão (os bairros) Petrópolis e Bela Vista, considerados de classe média
ou mesmo de elite. 

Houve um processo de segregação territorial, de expulsão das comunidades negras da área central para as periferias. E muitos quilombolas que têm os seus territórios constituídos como quilombos urbanos hoje em Porto Alegre são oriundos desse processo. Mantiveram-se ali, como é o caso do quilombo da família Silva, no bairro Três Figueiras. Já foi um dos metros quadrados mais caros de Porto Alegre. Ainda é, na verdade.

A Bancada Negra é a principal expressão da renovação da política progressista, democrática, de esquerda

Você acha que 2024 pode repetir 2020 e Porto Alegre eleger outra bancada negra na Câmara de Vereadores?

Espero que sim. Estou lutando para isso. Acho que a bancada negra é a principal expressão da renovação da política progressista, democrática, de esquerda, no Rio Grande do Sul, e por isso merece se expandir. Não só em Porto Alegre mas por todo o estado. Ter mais representação negra no parlamento, fortalecer os mandatos que estão hoje na Assembleia Legislativa, no Congresso Nacional, até no Senado. 

Há um fortalecimento da representação negra no Rio Grande do Sul e eu espero que a população reconheça a importância do trabalho feito para a população negra e o estado como um todo. Nós lideramos aqui, na Assembleia Legislativa, a discussão sobre a crise climática, temas que envolvem tecnologia e produção científica, debate sobre orçamento, educação, transporte público.

A Bancada Negra, para quem tinha algum medo de que ficasse restrita à questão que muitos chamam, entre aspas, de identitária, mostrou-se capaz de transmitir uma visão da população negra sobre o conjunto dos temas que constituem a política gaúcha. Então, espero que a gente tenha uma vitória nessas eleições.

A Defensoria Pública do Estado lançou recentemente uma cartilha sobre o letramento racial. Como vês essa iniciativa?

A população negra é uma das que mais utiliza o serviço da Defensoria Pública do Estado. É um modelo de acesso à justiça que tem um viés social. É fundamental que os defensores e defensoras estejam preparados para lidar com a questão racial, não só nos casos de racismo que envolvem injúria e agressões, de maneira tipificada diretamente. Mas também olhando para a situação de negros e negros no mercado de trabalho, das famílias negras e as suas especificidades que precisam ser tratadas no âmbito do direito cível. Em todos os aspectos temos questões específicas para pensar o antirracismo. Saúdo muito entusiasmado, essa ação da DPE. 

Que a gente não esqueça da traição de Porongos

Ação que deveria ser reproduzida em outros órgãos, como a segurança pública, como a saúde...

A gente luta para que a Brigada Militar, a Polícia Civil e toda a estrutura de segurança pública tenha uma política intensa de letramento racial. Assim como na saúde, a educação também. 

Tu falaste anteriormente na questão do 20 de Novembro, que está logo aí, que mensagem deixarias...

É a primeira vez que o 20 de Novembro vai ser feriado (nacional) na história do Brasil. Precisa ser um dia de reflexão, de debates aprofundados sobre a situação política de negros e negras. A estratégia que precisamos ter para avançar do ponto de vista econômico, de uma ascensão social que seja coletiva, que consiga produzir novos sentidos para as relações econômicas, para o desenvolvimento urbano, para o olhar
de preservação da natureza e do enfrentamento da crise climática.

Tem que ser um dia de muita integração e celebração cultural também. Feriados têm essa intenção e espero que a gente consiga culminar tudo isso com grandes celebrações.

Voltando aos Lanceiros, que outro ponto tu destacarias? 

Que a gente não esqueça da traição de Porongos (massacre das tropas negras da Revolução Farroupilha ocorrido em 14 de novembro em 1844, onde hoje é o município de Pinheiro Machado, no Sul gaúcho. Os Lanceiros Negros teriam sido surpreendidos pelos imperiais após serem traídos pelos próprios farrapos) porque tragicamente foi um momento que inaugurou uma perspectiva de violência contra negros e negras no estado. E, até hoje, vivemos essa situação de opressão, de super-exploração, de muita desigualdade aqui.

Então, Porongos precisa fazer com que as instituições do estado e a sociedade compreendam a necessidade de saldar uma dívida que realmente existe para com os negros e negros do Rio Grande do Sul.


 
 

 

 

Edição: Ayrton Centeno