Nós somos o barro que contém e definirá o que vai escorrer em nossas cidades, após essas eleições
Este texto, em meu projeto de ontem, trataria do Museu do Ouro, em Bogotá. Pretendia ser um relato baseado em fotos de resíduos da história humana pré-colombiana. Entretanto, na saída do Museu, me roubaram o celular e com isso perdi a oportunidade de usar as imagens que dariam rumo ao texto.
Ainda assim, vou arriscar este comentário a partir de uma impressão que me restou.
Começando pelo que entendi da visita, “nossa” trajetória evolutiva poderia ser seguida pela trilha dos metais. Ela começaria pelo domínio do cobre, passaria pela descoberta do estanho e, com a mistura dos dois, gerando o bronze, lá por 4 mil anos a.C., teria ocorrido um salto “civilizacional”. Apoiado em artefatos de trabalho para a agricultura e de armas para as “conquistas” de territórios, aquele “momento” teria levado à consolidação de divisões de classe baseadas em todo tipo de escravidão. Depois teríamos incorporado os instrumentos a base de ferro, aço, metais radioativos e, agora, ao que tudo indica, a revolução tecnológica dependeria do lítio.
Mas prata e, principalmente o ouro, seriam da idade do bronze. E representariam talvez os primeiros grandes símbolos da diferenciação hierárquica entre os poderosos e “o resto”, aqui interpretado como um “espaço” reservado aos vários níveis de “funcionalidade” servil aos primeiros.
O ouro, pelo brilho solar e escassez relativa iria além da matéria.
Atuando como elemento de ligação imaginária entre aqueles que o “vestissem” e a dimensão espiritual, o ouro conferiria uma espécie de traço de divindade à carne humana. E por isso estaria presente tanto em adereços para uso em vida como em máscaras mortuárias destinadas a ofuscar a eternidade. Em outras palavras, o ouro seria uma espécie de “veja com quem estás falando” e “ponha-se no seu lugar” que, ultrapassando os milênios e as gerações, dispensaria qualquer apresentação. O paralelo evidente entre o que resta nos museus e as bijuterias, os relógios, bolsas e sapatos de grife, os carrões e similares mostrando quem é quem na cadeia alimentar da economia e da política atual, indicam a perenidade daquele processo ilusório e poderia até servir aqui, como elemento de base para uma reflexão de fim de texto.
Mas não se trata disso. Além do mais, quero escrever sobre a imagem de barro que abre a coluna.
Até porque, sem as fotos do celular, perdi a oportunidade de dividir aqui evidências de trabalhos lindíssimos, reveladores da genialidade de artistas do passado que, a exemplo do que parece ocorrer em todas as épocas, fizeram e fazem (desde seu anonimato) mais que se poderia esperar dos poderosos. Restou da visita uma sensação de que os autores/as autoras de tudo que encanta as gerações corresponde a alguns fios de uma rede que vem dos povos e que está além de nossa compreensão. Em seu conjunto aqueles artistas expressariam o fluxo de uma amorosidade criativa que, em sendo desviada pela força bruta, deixaria de escorrer em benefício de muitos, ficando restrita ao usufruto de alguns. Seriam como a parte humana de bens comuns privatizados, ou aqueles tesouros da humanidade desviados para coleções particulares. Seriam como as águas do Cerrado, que envenenadas por agrotóxicos e transformadas em soja e carne de exportação, enriquecem meia dúzia de ignorantes a respeito de valores imateriais.
Pois bem, a imagem da abertura da coluna pretende alertar que o fluxo da vida (o líquido sagrado contido no vaso, o destino de todos, a trajetória universal) depende da união dos diferentes. Depende de concerto entre as lideranças e as populações. Reafirma que os desejos e desígnios das singularidades, das distinções em vida, das relações de interdependências, precisam ser compreendidos e respeitados, ou o mundo se destruirá.
A figura representa que o essencial, no fluir e no fruir da vida, está além da dimensão humana (ânforas com cabeças de animais) e depende de uma moldura comum, afeita a tudo e a todos. Não de ouro. De barro.
Nós somos o barro que contém e definirá o que vai escorrer em nossas cidades, após essas eleições.
Eu, sei que não alcanço compreender e muito menos repassar adequadamente a mensagem que aquelas imagens de artistas do passado remoto deixaram como alerta e orientação para o nosso viver. Mas sei que como cidadão de Porto Alegre em quem vou votar.
E minha música, neste momento, pensando no cenário político, é aquela que fala do Bicho de Sete Cabeças, com Geraldo Azevedo, Elba Ramalho.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira