Precisamos revisitar vivências, que reergam nossa crença na possibilidade de tempos melhores
Semana futurista ao pior estilo Blade Runner.
Dias sem sol, chuva ácida, conformação de um destino de decrepitude acelerada para pessoas de todas as idades. Tendência clara de expansão das frustrações e dramas relacionados à impotência dos adultos, em relação ao sofrimento de suas crianças e idosos.
A poluição do ar nos níveis absurdos que estamos vivenciando, indica mais do que a fragilidade das possibilidades de defesa da maioria, incluindo aí todos os seres vivos, contra o egoísmo, a maldade, a estupidez e a ganância de uma minoria bem postada na hierarquia de todos os poderes constitucionais da República Federativa do Brasil. Indica a certeza de impunidade, por parte de donos da terra que se julgam no direito de “poder fazer” o que bem quiserem em territórios escriturados em seus nomes. Mas não se resume a isso.
Há um conluio maior (destinado a impedir a retomada da democracia) que tem a ver de imediato com as eleições de outubro e, a médio prazo, com as eleições de 2026. Seus articuladores, que trabalham pela minimização e ocultação de sucessos do governo Lula, com esta situação (as queimadas e suas repercussões) estão garantindo um tsunami de insatisfações coletivas que se estenderá até 2026. Podem fazer isso porque confiam na lentidão das investigações da PF, na calhordice das bancadas golpistas no Congresso, na postura tradicionalmente omissa da Procuradoria Geral da República, ou até mesmo no clima de anistia aos “patriotários”, na ocultação histórica de seus titereiros, e, em poucas palavras, acreditam que, façam o que fizerem, ficarão impunes.
Pois bem, foi neste contexto que de repente e de maneira coordenada, simultaneamente e em milhares de locais supostamente desconexos, proprietários de terras interessados na redução de custos relativos à limpeza de suas áreas de cultivo, tocaram fogo no mundo. E com isso passamos a viver em cidades que de repente compõem os espaços mais poluídos do planeta. Das partículas em suspensão na atmosfera surgirão doenças respiratórias com implicações sobre o sistema circulatório, o sistema nervoso e sistema imunológico, agravando o estresse coletivo e provocando surtos de desespero e violência social. Da acumulação de dramas familiares emergirão questões tão relevantes como explosão de demandas e o esgotamento da capacidade de atendimento do SUS. Haverá então necessidade de redirecionamento de recursos públicos, com redução de investimentos em áreas produtivas e implicações sobre o custo dos alimentos, a inflação, as taxas de emprego e o crescimento da economia.
Quem ganha com isso? Rigorosamente, não há ganho. Porém os mentores do caos parecem acreditar que deste quadro resultará a expansão do medo e da insegurança que definirão resultados eleitorais (de 2024, certamente... mas talvez até de 2026). Se trataria, neste sentido, de estratégia criminosamente voltada à exacerbação de frustrações e sentimentos de desamparo, a serem metamorfoseados em ódio “contra tudo isso que está aí”. A responsabilização de golpistas sumiria da agenda política e isso permitiria a renovação de suas representações nas câmaras e prefeituras municipais. Em outras palavras, o fogo e suas consequências ilustrariam uma aposta no caos, com expectativas de revalorização das mitologias que alimentam o discurso dos fascistas que habitam entre nós.
Por que eles podem fazer isso? Difícil responder.
Especula-se que a vitória de Lula sobre Bolsonaro foi decisiva para sustar a queda, mas insuficiente para deter o assanhamento dos inimigos de um Brasil soberano comprometido com os direitos e necessidades da população. E está claro que o governo Lula, sem o apoio da população nas ruas, e com tantos golpistas-fascistas-bolsonaristas incrustrados em áreas chave do sistema (e até do governo), tem pouco poder real. Basicamente, pode reagir ao fogo e pagar o pato pelas consequências, mas assim como está impedido de fazer muitas das coisas que dele esperamos, também não pode punir os responsáveis pela articulação que estaria dando unidade às queimadas.
Como isso se repete em várias dimensões, avança entre nós um sentimento de cansaço e desânimo em relação às possibilidades de vida digna, para a maioria, em uma sociedade como a nossa. Pode ser temporário, mas atua para além da desilusão com o sistema eleitoral que construímos, e está a exigir uma renovação de horizontes. Pensando nisso me ocorre que nos faltam referências, exemplos de lucidez e coragem que em outras épocas estavam no limiar de compromissos morais orientados pelo respeito à coletividade. Na ausência daqueles parâmetros o imediatismo e o clientelismo estão se impondo como resultados que permitem o sucesso de pessoas como Sebastião Melo e outros “direitistas de verdade”, que mostrando os dentes se beneficiam politicamente das tragédias que ajudam a acontecer. Eles, se alimentam de nossa covardia. E a covardia é contagiosa.
Como a saída pacífica exigirá nosso envolvimento com o processo eleitoral, e acreditando que isso depende de nosso envolvimento com a dimensão amorosa que nos escapa, vou me atrever a fazer uma sugestão: precisamos revisitar experiências, vivências, que reergam nossa crença na possibilidade de tempos melhores. Crer para conseguir enxergar os caminhos que podem levar até eles. Crer para ver. E colocar a mão na massa, para fazer o pão nosso de cada dia, como recomenda a Comissão Pastoral da Terra. A trilogia da mudança: Ver, refletir e agir.
Os exemplos estão na história. Ela nos mostra para onde estamos indo e ela nos garante que aqueles que se beneficiam das injustiças, desde os primeiros feitores até os modernos CEOs, e inclusive os impérios, se mantém apenas enquanto isso lhes é permitido.
Para despertar a discussão, e especialmente para quem vive em Porto Alegre, recomendo o filme MADA e BIA. A produção será exibida no próximo sábado (14) na Cinemateca Capitólio (R. Demétrio Ribeiro, 1085), às 18h, com entrada franca, e debate onde participarão Dagmar Talga (diretora), Salete Carollo (MST), Murilo Mendonça de Souza (PPGEO/UEG), Mauro Kano (coordenação da Agenda Latino Americana), Katia Barfknecht (Associação de Amigas e Amigos do Cinemateca Capitólio (AAMICCA) e Renato Barcelos (Coletivo A Cidade que Queremos). Também haverá exibição no dia 17 de setembro, às 16h, no Anfiteatro Milton Santos, bloco 17, UFSM (Av. Roraima - 1000 – Camobi/Santa Maria – RS).
O filme (que após a pré-estreia e superada esta fase temporária de apresentação em festivais) poderá ser visto nas redes de streamings, retrata a vida de duas mulheres comprometidas com a emancipação humana. Companheiras de Padre Josimo, dom Pedro Casaldáliga, dom Tomas Balduino e muitos heróis anônimos, elas nos inspiram a não desanimar diante dos desafios que se colocam em oposição à construção de um mundo melhor.
E fundamentalmente, elas nos mostram: a coragem contagia!
Quem vê e reflete sobre o que está enxergando, precisa agir.
Uma música – O sal da terra. Beto Guedes.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko