O Muro da Mauá é fundamental para o sistema anti cheias de Porto Alegre. Sem ele, seria um caos muito maior do que o ocorrido nos meses de maio/junho. Centro Histórico alagado, Mercado Público alagado, museus, prédios históricos, bancários, comerciais e tantas outras coisas, mesmo com o muro ali, de pé, segurando as águas, que assim mesmo tomaram conta daquela área e de tantas outras contempladas com o muro.
O especialista em meio ambiente e energia elétrica e ex-diretor do Departamento de Águas Pluviais (DEP) Vicente Rauber diz que é uma insanidade pensar em botar o muro abaixo. “Trocar por outra coisa só se for algo muito mais competente, eficiente e perfeito. O que faltou foi conservação, manutenção e cuidados permanentes com os portões, com as comportas, com os diques de contenção e tantas outras coisas.
A garantia de Rauber é reforçada por diagnósticos feitos pela prefeitura de que o paredão foi o único sistema que funcionou no período das enchentes. Os demais (diques, casas de bombas e comportas) falharam amplamente e deixaram partes da cidade alagadas. Mesmo com esta confissão, o governo do Estado admite a substituição do sistema por outro e estuda alternativas, conforme consta no projeto de concessão do Cais Mauá à iniciativa privada.
Dos quatro principais candidatos a prefeito da Capital, consultados pelo jornal ZH, dois se mostram contra qualquer outra alternativa a não ser manter o muro e outros dois são favoráveis a possíveis mudanças, com ressalvas.
O Muro da Mauá tem 2,64 km e existe há exatos 50 anos. Foi inaugurado em 1974 e separa a Avenida Mauá dos armazéns do cais e do lago Guaíba. Sempre alvo de críticas, muita gente quer se livrar da muralha, inclusive autoridades da prefeitura e de vereadores ao longo dos anos.
No edital de concessão do cais, consta a previsão de que o paredão seja derrubado e seja instalado um novo sistema de proteção, composto por dois mecanismos — um fixo e outro móvel. O equipamento fixo teria 1m26cm e seria construído em formato de arquibancada, entre a margem do Guaíba e os armazéns, e serviria de espaço de lazer no cotidiano, como ocorre nas arquibancadas no trecho 1 da Orla, conforme relata ZH.
A segunda parte seria instalada temporariamente em momentos de cheia, com tubos infláveis ou diques móveis, na altura de pelo menos 1m74cm. Dessa maneira, as duas barreiras somadas atingiriam os três metros de contenção cobertos pelo muro atual.
O candidato à reeleição Sebastião Melo (MDB) diz que é a favor da derrubada do muro desde que haja garantias iguais ou superiores ao sistema que for implantado. “Se ele for mais seguro do que o que está aí, eu topo. Mas jamais deixar de ter um sistema de segurança e de proteção de cheias. Se for para sair o muro, só se a engenharia provar que tem um sistema melhor. Esse assunto não está em discussão, ele voltará a ser discutido na concessão do Cais Mauá. Sou favorável (à substituição), mas só se tiver segurança tanto quanto tem com o Muro da Mauá.”
Maria do Rosário, candidata do PT, afirma que é radicalmente contra. “No atual momento eu acredito que nós precisamos do muro, ele demonstrou objetivamente que protege a cidade. No entanto, a falta de manutenção das comportas comprometeu a própria efetividade do muro.”
Juliana Brizola não quer substituição por outra alternativa. “O muro vem cumprindo seu papel. O que não cumpriu seu papel foram outras questões, como as comportas e as casas de bombas. Não que alguns estudos não possam vir comprovando a segurança desse tipo de mudança, mas requer bastante investimento essa mudança.”
O candidato do Novo, Felipe Camozzato, diz que é a favor da demolição do muro. “Sou a favor, desde que garanta igual ou superior proteção, porque precisamos ter uma barreira física ali. Agora, o problema que tivemos é que o muro foi insuficiente. A água entrou por baixo, pelas casas de bombas e pelo sistema de drenagem. O muro virou mais objeto de discussão política e ideológica do que um sistema de proteção. A cota do lado de fora estava igual à cota de dentro da cidade.”
Utilidade
As cheias do Guaíba são observadas pela população desde a fundação da cidade, há mais de 250 anos, como bem registra o escritor Rafael Guimaraens, em A enchente de 41: “Consta que os casais açorianos fundadores de Porto Alegre teriam se encantado com o enorme rio que lhes proporcionaria água abundante e a visão de um pôr-do-sol inigualável. Mas esta beleza toda teria um preço”. Recebendo as águas dos rios Jacuí, Caí, Gravataí e Sinos, além do Taquari, chuvas fortes, mesmo a quilômetros de distância, acabam convergindo ameaçadoramente em direção à capital, que fica suscetível a alagamentos.
Letícia Turcato Heinzelmann, graduanda em Museologia, defende que ao lembrarmos do passado podemos viabilizar a prevenção de novas tragédias. Conforme conta no Jornal da Universidade da Ufrgs, “não há recorrência precisa para o registro de cheias, que podem ser mais ou menos graves a depender de uma série de fatores climáticos. Geralmente, altos volumes de chuvas são registrados em anos de El Niño, fenômeno em que o Oceano Pacífico fica mais quente que a média histórica. Foi o caso em 1914, 1926, 19 40, 1967, 1983, 2015 e 2023, anos em que as águas do Guaíba atingiram níveis de atenção na primavera. Em 1941 e agora em 2024, outros fatores climáticos somados contribuíram para a recorrência de fortes chuvas no outono, ocasionando novas e mais severas enchentes em maio: as marcas históricas, respectivamente, de 4,76m e 5,33m.”
Real função
Para ela, o Muro da Mauá, construído para conter uma cota de até seis metros, tem cumprido sua função. O alagamento da cidade, porém, ocorreu devido a falhas em uma das comportas e em casas de bombas. Isso se deu pela falta de manutenção, uma recorrência ao longo destes 50 anos. Letícia diz que na primeira tentativa de fechamento dos portões, em 1983, eles já estavam enferrujados. No ano passado, a comporta que protege a região do 4.º Distrito e uma bomba já haviam falhado. E tudo indica que não houve reparos desde então, visto o resultado da enchente cidade adentro.
“Se já ocorreu em 1941 – a grande enchente que mobilizou o planejamento do Muro da Mauá –, não era possível saber o que estava por vir em 2024? Mas quem lembrava recentemente da enchente de 1941 e da função do muro?”, pergunta museóloga. “O apagamento de memórias traumáticas após sucessivas gerações é um fenômeno comum, especialmente em catástrofes que podem ter recorrência após longos períodos.”
A pesquisadora Myrian Sepúlveda dos Santos utiliza o termo “pós-memória”, cunhado pela americana Marianne Hirsch, que “caracteriza a experiência daqueles que crescem dominados por narrativas que antecedem seu nascimento, moldadas por acontecimentos traumáticos que não podem ser totalmente compreendidos, recriados; caracteriza, portanto, a experiência daqueles que têm suas próprias histórias afastadas pelas histórias de gerações anteriores.”
A dificuldade de expressar o trauma pode levar a um apagamento do alerta para gerações futuras. Conceitos como memória coletiva e memória social remetem a fenômenos associados à relação entre passado e presente. O termo pós-memória surge para denominar um investimento imaginativo, em que não são transmitidas narrativas, mas sensações e emoções. Esse trabalho é importante para compreender as consequências que um passado traumático tem sobre gerações subsequentes. O impacto da enchente de 1941 era indizível, inarrável, como o trauma do soldado que retorna silencioso do campo de batalhas, exemplificado por Walter Benjamin.
Mas apenas ao lembrar do passado pode-se ajudar na prevenção de novas tragédias. Para isso, é necessário que haja lembretes, marcos que nos confrontem com esse sentimento incômodo. O Muro da Mauá foi construído para proteger Porto Alegre das águas. Sua construção entre 1971 e 1974, no contexto de grandes obras executadas pela Ditadura Civil-Militar, se deu, portanto, sem debate popular – o que gera ruídos até hoje.
Com a redemocratização e o crescente engajamento social e ambiental da população de Porto Alegre, ele passou a ser colocado em cheque e questionado enquanto obstáculo entre a cidade e seu lago. Porém, ele cumpre seu papel e poderia incorporar novas funções simbólicas, como a de preservar as memórias das enchentes, tonando-se patrimônio de alerta, um “antimonumento”, na definição de Márcio Seligmann-Silva: o patrimônio que opera dentro dos sentidos filosóficos de lugar, território e rituais, tendo capacidade de advertir sobre situações-limite enfrentadas por uma população.
Essa nova função de antimonumento exerceria um “trabalho de memória”, definido por Paul Ricoeur como uma exigência vital. Para além de lembrar, a memória precisa ser trabalhada de forma recorrente, obsessiva. Manuel Reyes Mate fala sobre “dever de memória”, em perspectiva originada na filosofia apriorística de Kant.
O Muro da Mauá está lá há 50 anos, de prontidão, mas sem nos informar nada. Diante do aquecimento global e da perspectiva de agravamento de eventos climáticos extremos, não devemos deixar de trabalhar essa memória. Só em alerta iminente estaremos nós também de prontidão para cobrar de autoridades que as necessárias manutenções sejam feitas periodicamente a fim de que nosso sistema nos proteja de futuros traumas.
* Declarações dos candidatos sobre o muro foram dadas para o jornal ZH. Informações sobre o muro e análises de pesquisas foram extraídas de jornal interno da Ufrgs.
Edição: Katia Marko