Rio Grande do Sul

JORNADA DE LUTAS

Atingidos e atingidas pela enchente saem às ruas de Porto Alegre por moradia e direitos

A ação marca o Dia da Amazônia, celebrado todo 5 de setembro, e um ano da primeira grande enchente no RS

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Com faixa, cartazes, acompanhados da bateria do Levante da Juventude, os manifestantes cobravam moradia e auxílio para atingidos - Foto: Jorge Leão

As ruas do centro de Porto Alegre foram tomadas na manhã desta quinta-feira (5), por atingidos e atingidas pelas enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul desde setembro do ano passado. Organizada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a manifestação reuniu, em frente à Usina do Gasômetro, moradores da região Metropolitana, Vale do Taquari e demais regiões que tiveram suas casas danificadas ou destruídas. O ato encerrou em frente ao Palácio Piratini.  

Com faixa, cartazes e acompanhado da bateria do Levante Popular da Juventude, os manifestantes cobravam por moradia, assim como auxílio para atingidos. O ato além de celebrar o Dia da Amazônia, marcou um ano da primeira grande enchente no RS. 

Conforme pontua o MAB, as enchentes devastaram comunidades inteiras na região do Vale do Taquari. Mais de 40 mil pessoas ficaram desabrigadas e de 3 mil residências foram destruídas, o que gerou prejuízos superiores a R$ 500 milhões. 

Quatro meses após a grande inundação de maio, 2.411 pessoas seguem fora de suas casas, espalhadas por 58 abrigos, em 28 municípios. A maioria delas na região Metropolitana e Vale do Taquari. 

Entre as pessoas atingidas na região Metropolitana está a costureira Solange dos Santos Salazar, 43 anos, moradora do bairro Sarandi, um dos mais afetados de Porto Alegre. “Onde nós moramos estamos acostumados com alagamentos tanto que minha casa tem 70 cm de altura a mais em relação ao pátio. Mas nunca imaginamos que fosse chegar a mais de um metro no segundo piso.”

Ela conta que além da casa, seu comércio também foi impactado. “Eu sou costureira faço roupa para vender. Perdi praticamente 100% da casa e do comércio. Eu tinha ido várias vezes lá de barco para tentar salvar minhas máquinas, mas quando eu abri a porta vi o estrago que a água tinha feito, foi um choque. Estou desde o dia 7 de julho em função de limpeza, organização, e tem muita coisa pra fazer."


Solange dos Santos Salazar, moradora do Sarandi / Foto: Jorge Leão

Solange pontua que graças a uma reforma que fez no imóvel ano passado, sua casa ficou em pé, diferente de algum de seus vizinhos que não tiveram para onde voltar quando as águas baixaram. 

A costureira recebeu o auxílio do governo federal no valor de R$ 5,1 mil, mas não o auxílio do estado. Assim como não recebeu auxílio para o seu trabalho. “Acho um absurdo porque muita gente no Sarandi é costureira. Quem é MEI paga imposto, mas não tem direito. Não veio ninguém perguntar, não tem uma estrutura para ajudar o pequeno comércio a recomeçar.”

Solange espera que através da mobilização venha alguma resposta referente a esse auxílio. “90% das casas teve algum estrago, porque foram 36 dias que as casas ficaram dentro da água, apodrecendo. Viemos tentar reivindicar uma ajuda maior, porque só esse R$ 5,1 mil ou para quem recebeu os R$ 2 mil, totalizando R$ 7,1 mil, não tem como fazer nada. Não tem como tu reconstruir, arrumar. Ou tu faz uma coisa, ou tu faz outra.”


Com faixa e cartazes os manifestantes cobravam por moradia, assim como auxílio para atingidos / Foto: Jorge Leão

Moradora do bairro Harmonia em Canoas, Patricia Dias, 36 anos, mãe de dois filhos, João, de 14 anos, e Maria, oito anos, expõe que quando voltou para casa, a impressão era de que ela havia passado por um liquidificador. No dia da enchente a família estava dormindo e nunca imaginaram que a água subiria tanto. “A gente conseguiu só sair com a roupa do corpo e os documentos.”

Assim como Solange, Patrícia também sofreu impacto em seu comércio. “Eu tinha um brechó e perdi tudo. Meu carro, ainda bem que ele ficou dentro da garagem. Se tivesse ficado na rua, tinha detonado totalmente. Mas foi bem triste, ver as lembranças se perderem. O que mais me doeu, pode ser uma besteira, foi botar as mochilas deles fora. Agora que a gente tá conseguindo reconstruir um pouco, mas ainda é algo assim, tu procura e não tem mais aquele copo, camiseta, calça, que tu gostava. As crianças não têm brinquedo. Eles lembram e dói muito.”


Patricia Dias é moradora do bairro Harmonia em Canoas / Foto: Jorge Leão

Patricia pensa em ir embora do local, não por medo de outra enchente, mas sim pelas recordações. Ela recebeu o auxílio federal, mas não o do estado. Para ela o auxílio não foi suficiente. “Tem que arrumar a casa, que tem rachaduras, tem que comprar cama, tudo, tudo. Minha geladeira que estava funcionando, pifou.”

Moradora da ilha Grandes Marinheiros, em Porto Alegre, Alessandra Lacerda, 24 anos, ressalta que a região convive com a enchente todos os anos, contudo não tão intensa como as registradas no último ano. “Tem pessoas que nem pra casa retornaram ainda, não conseguiram voltar e não tem nem como voltar.” Desempregada, ela está fora da sua residência desde setembro do ano passado. “Estou fora de casa porque eles não liberaram nossa estadia solidária. No momento eu estou em Cachoeirinha.”


Alessandra Lacerda ainda não conseguiu voltar pra sua casa na ilha Grandes Marinheiros / Foto: Jorge Leão

A casa onde ela atualmente reside é alugada. Valor que ela retira do próprio bolso, através do auxílio que recebeu do governo federal. “Estou tirando do meu próprio bolso porque o nosso prefeito até agora não deu nada. Espero que esse ato traga uma resposta positiva. A realidade é essa, é o povo pelo povo, porque se depender dos governantes, a indignação é maio."

Ela conta que não pretende voltar para a ilha. “Eu pretendo agora, se a gente conseguir a compra assistida, ir embora da ilha, porque a gente sempre foi um povo esquecido. Eu espero uma vida digna pra todo mundo, pra todos nós moradores que foram atingidos e aqueles que também não foram atingidos.”

A aposentada Miguelina de Freitas, 65 anos, veio de Estrela para o ato na Capital. Ela lembra que quando vieram as enchentes morava no bairro Moinhos, o primeiro bairro “fantasma”, da cidade. “A enchente levou a minha casa e não tem opção de morar em outro lugar, né? Porque a gente não pode pagar aluguel.”

Atualmente ela vive em outro bairro destruído do município, o Indústrias. “Saí de um onde a enchente pego e vim para outro que também pega enchente.” Ela mora de aluguel social. Miguelina conta que ela, vizinhos e amigos que moravam nos bairros perderam tudo. Moradora há 32 anos em Estrela, a aposentada diz que após a primeira enchente que atingiu a região do Vale do Taquari ano passado chegou a voltar para casa, e que na ocasião limpou e aproveitou o que sobrou. “Essa última enchente não sobrou nada. Nem casa e nem nada mais.” 

Ela comenta que não há informação nenhuma do Poder Público sobre as casas provisórias. Como resultado do ato Miguelina espera que venham boas notícias. 


A aposentada Miguelina de Freitas, 65 anos, veio de Estrela para o ato na Capital / Foto: Jorge Leão

Presente ao ato, a deputada estadual Sofia Cavedon (PT) destacou a situação da escola municipal do bairro Moinho, em Estrela, a qual foi devastada na última enchente. De acordo com a parlamentar não se sabe ainda o que acontecerá com ela. “Eu já conversei com vários atingidos, a gente já vem acompanhando, e os governos não dizem nada. Os alunos não têm transporte. Os governos não conversam com a população para dizer o que vai acontecer. Isso é uma coisa gravíssima.”

Outro tema que aparece aqui muito forte é o tema da reconstrução. “A limpeza da casa eles fizeram. Mas precisa trocar energia elétrica, precisa botar móveis. As pessoas com R$ 5,1 mil fizeram o básico do básico. Estamos pleiteando para quem tem um salário fixo um financiamento, isso está pautado pelo governo federal. Um valor a mais para as pessoas e elas fazem chover.”


Durante o ato os manifestantes ressaltaram a responsabilidade tanto do governo do estado quando do prefeito de Porto Alegre / Foto: Jorge Leão

Um ano de espera

Em novembro do ano passado o MAB, juntamente com a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH), pelo CDES Direitos Humanos e pela Acesso Cidadania e Direitos Humanos, realizaram a Missão de Monitoramento no Vale do Taquari, onde foram relatadas uma série de violações. 

Presente ao ato desta quinta-feira, o presidente do CEDH, Júlio Alt, relembra que na ocasião a falta de política pública e de pensamento sobre a questão do meio ambiente naquelas regiões já era tangente. “Teve o planejamento urbano municipal que licenciou uma boa parte das moradias que foram atingidas. Vemos muitas contradições e falta de planejamento urbano, plano diretor, políticas ambientais nos municípios do Vale da Taquari e que, infelizmente, através dessa tragédia que foi a enchente de maio atingiu de forma grave mais pessoas. Estamos preocupados com a situação e também com as propostas de reconstrução no estado do Rio Grande do Sul.”


"Estamos visualizando possíveis novas violações de direitos humanos graves para essas populações que já estão acossadas e sofrendo”, ressalta Júlio Alt / Foto: Jorge Leão

Entre as preocupações está a questão das “cidades provisórias”. “Possivelmente vão violar muitos direitos humanos, tendo em vista todos os acordos, toda a reflexão sobre o que é uma moradia adequada, com saneamento básico, escola, saúde. Acreditamos que isso não se faz em um curto período como está apresentado. Estamos visualizando possíveis novas violações de direitos humanos graves para essas populações que já estão acossadas e sofrendo.”

”Um ano depois da primeira enchente do Vale do Taquari a gente precisa ter força popular pra pautar o caminho da reconstrução do estado do Rio Grande do Sul. Porque da maneira como o governador Eduardo Leite e a maioria dos prefeitos vêm apresentando, nós vamos ter um aprofundamento do modelo neoliberal que infelizmente é incapaz de garantir o grau de proteção, de prevenção a desastres, de transição energética, econômica, de qualificação da infraestrutura que a situação da emergência climática permite”, ressalta o deputado estadual Matheus Gomes (Psol). 


Atingidos do Vale do Taquari participaram da manifestação em Porto Alegre / Foto: Jorge Leão

Para o parlamentar é preciso ter uma força popular para apresentar um projeto que realmente consiga ser socialmente justo e ecologicamente sustentável. “Nós precisamos urgentemente que, a partir do governo federal, nós tenhamos o recurso necessário para reconstruir toda aquela região. Construído obviamente de maneira democrática junto com as comunidades que lá vivem, e que construíram a sua vida ao longo de gerações. Não podemos impor uma saída às pessoas de maneira autoritária.”


A manifestação contou com a participação de diversos movimentos sociais / Foto: Jorge Leão

Negacionismo climático 

“O clima tem tudo a ver com o que está acontecendo com os atingidos. As pessoas que estão aqui hoje, eu inclusive, somos uma das pessoas que foram atingidas pelos eventos climáticos não só do ano passado, mas desse ano também, que não conseguem ter as suas casas. E hoje estamos aqui reivindicando os nossos direitos, muitas pessoas ainda estão em abrigos”, afirma a voluntária da Ong Eco pelo Clima Renata Padilha. 

Conforme reforça a ativista, a organização vem há anos denunciando o que iria acontecer com o Rio Grande do Sul. “Que era esperado maior volume de chuvas, mais enchentes, isso os especialistas sempre falaram. E a gente sempre fala que nós seremos mais impactados pela crise climática, mas a gente nunca está preparado para quando esse dia chega. O que acontece hoje, não só no Brasil, mas no mundo inteiro é um extremo negacionismo. E nós que somos afetados diariamente estamos sofrendo com o avanço do aquecimento global.”


Manifestantes reivindicam casa e auxílio para recomeçar / Foto: Jorge Leão

Seguiremos na luta 

”Eu também sou atingida. Então além de estar aqui como atingida, estamos aqui juntos, como organizações sociais, lutando por uma transição justa e também já por ações para que as populações possam recuperar as suas casas, ações de recuperação e também ações de mitigação”, afirma a presidente do Sindicato Petroleiro do Rio Grande do Sul, Míriam Ribeiro Cabreira. O Sindicato juntamente com o MAB organizou o ato. 

Moradora do bairro Mathias Velho em Canoas, a dirigente relata que o bairro foi completamente devastado. “Na minha casa foram 3 metros e 75 centímetros. Então foram muitas perdas, mas estamos unidos buscando uma solução coletiva para que a gente supere esse momento de dificuldade.”


"Foram muitas perdas, mas estamos unidos buscando uma solução coletiva para que a gente supere esse momento de dificuldade”, afirma Miriam Ribeiro Cabreira / Foto: Jorge Leão

“Esse ato para nós é um ato histórico do movimento, um movimento que agora é ampliado, também com os atingidos por enchentes. Os atingidos por enchente organizados no MAB nunca tinham feito um ato assim com outros atingidos de outras regiões atingidas por barragens. É um ato que anima a luta. A gente tem dito que é só assim que a gente vai conseguir avançar na garantia do direito”, afirma a coordenadora do MAB Alexania Rossato.  

A dirigente lembra que em julho do ano passado o movimento entregou para o governador, para o Ministério da Reconstrução, para os prefeitos pontos de reivindicação. "Esse é o dia da Amazônia, mas também é o dia que marca um ano da enchente do Vale do Taquari. Nem tudo está resolvido aqui com essa manifestação. Vamos seguir organizados, fortalecendo a organização dos atingidos, fortalecendo o MAB, e se precisar, vir outras vezes para Porto Alegre, para pressionar os órgãos responsáveis, o Estado, o Governo Federal, os municípios, nós viremos.”

O movimento marcou agendas com secretários do governo Leite e audiência com a Caixa Econômica Federal, que vem operacionalizando as moradias populares. 


"Vamos seguir organizados, fortalecendo a organização dos atingidos, fortalecendo o MAB", ressalta Alexania Rossato / Foto: Jorge Leão

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Edição: Katia Marko