Rio Grande do Sul

MEMÓRIA

Livro 'Beca, canudo e protesto' resgata a irreverência nas formaturas da Faculdade de Medicina

Em resposta à ditadura e às injustiças sociais, colações de grau na Medicina da UFRGS chocou o país entre 1974 e 1990

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Obra da jornalista Elisa Kopplin Ferraretto e do médico e professor Elvino Barros será lançada nesta quinta-feira (5) - Foto: Divulgação

Será lançado nesta quinta-feira (5) o livro Beca, canudo e protesto – contestação e irreverência nas formaturas da Faculdade de Medicina da UFRGS de 1974 a 1990, da jornalista Elisa Kopplin Ferraretto e do médico e professor Elvino Barros. A obra resgata a irreverência que marcou as colações de grau nos anos que se seguiram ao fim do regime militar no Brasil.

O evento ocorrerá a partir das 10h30min, no Anfiteatro Carlos César de Albuquerque – Hospital de Clínicas de Porto Alegre (Ramiro Barcelos, 2.350) – Porto Alegre (RS).

Escrito em ritmo de reportagem, o livro conta a história de médicos e médicas que se graduaram na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Famed/UFRGS) e que durante o período destacado tiveram formaturas anticonvencionais, distantes das cerimônias solenes e cheias de pompas feitas nos dias atuais. O fato está relacionado ao contexto da época, pela implantação da chamada reforma universitária durante os anos de chumbo da ditadura militar e pelo início do processo de redemocratização do país.

Com base em ampla pesquisa histórica e documental e em mais de 100 entrevistas, o livro traz imagens e relatos para ilustrar esses episódios. A publicação também possui QR codes que dão acesso a vídeos de quatro formaturas da segunda metade da década de 1980 e a um áudio com parte da solenidade de 1975. Esta é uma rara documentação, já que não existe um acervo com registros das cerimônias da época.

O evento de lançamento contará ainda com sessão de autógrafos e um encontro geral dos formandos da Associação da Turma Médica (ATM) de 1974 a 1990, momento em que serão compartilhadas memórias e histórias. Estão confirmadas as presenças de Adamastor Pereira, Valter Duro Garcia, Clotilde Druck Garcia, Gilberto Schwartsmann e Júlio Conte, entre outros médicos e médicas cujos relatos integram o livro.

O projeto editorial foi lançado pela editora Libertos, contém 352 páginas e tem o apoio cultural da Associação Médica do RS (Amrigs), Sindicato Médico do RS (Simers), Unicred Porto Alegre e Fundação Médica do RS (FundMed).


Charge Santiago na Folha da Tarde de 1975 / Imagem: Santiago/Arquivo

Sobre os autores

Elisa Kopplin Ferraretto é jornalista, atua na área de Comunicação em Saúde. É autora de Pery e Estelita na ribalta do espaço, que resgata a história de Pery Borges e Estelita Bell, pioneiros do radioteatro. Com o jornalista e professor Luiz Artur Ferraretto, escreveu Assessoria de imprensa: teoria e prática e Técnica de redação radiofônica. Em 2021, recebeu, da Associação Riograndense de Imprensa, o Troféu Antônio Gonzalez de Contribuição Especial à Comunicação.

Elvino Barros é nefrologista, atua no Hospital de Clínicas de Porto Alegre e é professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É autor, coautor ou organizador de livros técnicos de Medicina, além de uma obra de resgate histórico de sua especialidade, Fragmentos da história da Nefrologia gaúcha.


Com pesquisa histórica e documental e mais de 100 entrevistas, a obra traz também imagens e relatos. Vídeos e áudio de formaturas estão acessíveis no livro via QR-Code / Imagem: Divulgação

Sobre a obra

Profissionais da Medicina que se graduaram na Famed/UFRGS de meados dos anos 1970 ao final dos 1980 tiveram formaturas peculiares, todas elas marcadas por protestos ou algum tipo de irreverência. Durante 17 anos, nenhuma turma escolheu, entre seus professores, um paraninfo, e muitas não tiveram homenageados. Na maior parte da década de 1980, os estudantes se negaram a usar a beca (toga) e a seguir o protocolo formal, promovendo solenidades incomuns.

Estes fatos, relacionados ao contexto da época – passando pelos "anos de chumbo" da ditadura militar e pelo início do processo de redemocratização do país – tiveram grande impacto, por acontecerem em uma das mais tradicionais faculdades gaúchas, onde as formaturas solenes possuem forte simbolismo como ritos de passagem e status. Em três anos ao longo desse período, as cerimônias oficiais chegaram a ser suspensas pela direção da faculdade, inconformada com a sequência de protestos.

Mesmo que tal episódio tenha se estendido por 17 anos, não existia qualquer registro sistematizado a respeito, permanecendo apenas na memória dos protagonistas dessa história. Por isso, para recuperá-la, os autores coletaram mais de 100 depoimentos de médicos e médicas das 22 ATMs formadas no período, e que viriam a ocupar posição de destaque na assistência, ensino, pesquisa e gestão em saúde. Também resgataram convites de formatura, discursos, fotografias, publicações na grande imprensa e em jornais estudantis e institucionais, além de realizarem ampla pesquisa bibliográfica para a contextualização do momento histórico. Há também vídeos de formaturas dos anos 1980 e até o áudio de parte da solenidade de 1975, todos acessíveis no livro via QR Code.

Os documentos históricos também mostram o crescimento do número de mulheres na profissão, que, no início, era quase exclusiva para homens. A primeira turma, graduada em 1904, trouxe o nome de Alice Mäeffer e mais 10 colegas homens. A segunda médica, Noemy Valle Rocha, só ingressou na faculdade no ano de 1912. Aos poucos, elas foram ocupando mais espaços; a ATM 77 contou com 40% delas.

Também a inclusão social no país se refletiu na educação. Os convites mostram que negros, indígenas, deficientes vão deixando de ser exceções e inicia-se uma aproximação da composição étnica e social da sociedade brasileira.


Foto da fachada do antigo Prédio da Faculdade de Medicina (1924-1974) / Foto: Romualdo Ruico Resquim Sicco (1965)/Acervo UFRGS

Um pouco de história

A Faculdade de Medicina da UFRGS, a primeira do estado e a terceira do Brasil, tem mais de 125 anos. Na época do regime militar brasileira (1964-1985), o país se deparou com diversas reformas universitárias. Elas pretendiam alinhar o ensino superior aos interesses do regime. Uma forma de garantir o controle político das federais, na época, focos de resistência à ditadura. Em 1972, a reforma em questão toma conta da Famed - um curso tido como tradicional, elitista e dentro da lei. Porém, tais reformas não foram bem recebidas pelos estudantes entre os anos de 1974 a 1990.

Em 1974, descontentes com a precarização das condições do ensino ao longo do curso de Medicina na universidade – devido, principalmente, à implementação da chamada reforma universitária pelo regime militar – os formandos decidiram fazer um protesto. A forma encontrada, naquele tempo de restrições à liberdade de expressão, foi mexer no rito de um dos mais tradicionais símbolos da instituição: a formatura. A turma decidiu não escolher, entre seus professores, nem paraninfo e nem homenageados – o que foi tão impactante que virou notícia nacional – um tanto distorcida, na avaliação dos estudantes, na revista Veja.

Em 1975, a turma elegeu como paraninfo o professor e ex-diretor Sarmento Leite, falecido 40 anos antes, e, como homenageados, Osvaldo Cruz, Vital Brasil, Carlos Chagas, Adolfo Lutz e Noel Nutel, sanitaristas todos também já mortos. Com isso, os formandos desejaram sinalizar a queda na qualidade do ensino médico e seu distanciamento da realidade social brasileira.

Em diferentes anos do período relatado, houve, ainda, estudantes que preferiram escolher, a título de paraninfo, no lugar de professores, um prédio – a antiga sede da Famed, na rua Sarmento Leite, que deixou de pertencer a ela em 1974 – ou instituições – a Santa Casa de Misericórdia e o Hospital de Clínicas de Porto Alegre – por considerarem terem sido mais relevantes em sua formação.


Cadeiras vazias na formatura de 1975 para homenagear médicos já falecidos / Foto: Álvaro Roberto Crespo Merlo/ Divulgação Capa Livro

Em 1979, inconformada com a sequência de protestos, a Congregação, na época, o órgão diretivo máximo da Famed, suspendeu a formatura. Os alunos, porém, organizaram uma solenidade por conta própria, na Assembleia Legislativa, na qual o orador da turma, Gilberto Schwartsmann, pronunciou um discurso todo escrito em versos. Em 1980 e 1981, também não foram realizadas formaturas oficiais, apenas eventos simbólicos organizados pelos próprios estudantes.

Em meados da década de 1980, os formandos, além de seguirem sem paraninfo, aboliram o uso da beca e introduziram diferentes elementos lúdicos nas solenidades, como forma de expressarem seu anseio por liberdade em meio ao processo de redemocratização do país.

Em 1985, os futuros médicos e médicas planejaram ignorar totalmente o protocolo e transformar a formatura em uma peça de teatro, encenando problemas vividos durante o curso. A ideia só não se concretizou porque o estudante que começava a organizar os trabalhos, Júlio Conte, recebeu convite para apresentar no Rio de Janeiro sua peça que conquistava enorme sucesso, Bailei na Curva, e teve que adiar a conclusão do curso.

Lançamento

O lançamento será nesta quinta-feira (5), a partir das 10h30, no anfiteatro do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS): Rua Ramiro Barcelos, 2350 Bloco A - Av. Protásio Alves, 211 - Bloco B e C - Santa Cecília.

No evento, cinco profissionais graduados no período vão compartilhar memórias sobre suas formaturas e, na sequência, a palavra ficará à disposição de outros ex-estudantes que desejarem se manifestar. Ao final, haverá sessão de autógrafos com os autores.


Evento de lançamento contará com sessão de autógrafos e um encontro geral das ATMs de 1974 a 1990, momento em que serão compartilhadas memórias e histórias / Divulgação

Programa

1974: A turma que cumpriu o corajoso dever da honestidade
Adamastor Pereira – Professor da Famed/UFRGS e cirurgião vascular do Hospital de Clínicas;

1975: Dom Quixote, Sarmento Leite, sanitaristas mortos e uma mesa vazia
Valter Duro Garcia – Coordenador hospitalar de transplantes da Santa Casa de Porto Alegre;

1977: Tempos difíceis para a maior turma da história da Famed
Clotilde Druck Garcia – Chefe do Serviço de Nefrologia Pediátrica da Santa Casa de Porto Alegre e professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFSCPA);

1979: Uma resposta poética  à proibição da formatura
Gilberto Schwartsmann – Oncologista, professor aposentado da Famed/UFRGS e presidente da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre;

1985: Uma ideia inédita para a formatura acaba bailando na curva
Júlio Conte – Psicanalista, dramaturgo e diretor de teatro.


Edição: Katia Marko