Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

‘A política da esquerda no Uruguai é a distribuição da riqueza’, afirma Javier Miranda

Ex-presidente da Frente Ampla adverte para o avanço da ultradireita e conta como está a campanha eleitoral no país

Brasil de Fato | Montevidéu |
O professor universitário, advogado, ex-secretário nacional de Direitos Humanos, Javier Miranda, analisa a eleição no Uruguai - Foto: Esme Molina

Militante desde sempre, professor universitário, advogado, ex-secretário nacional de Direitos Humanos, Javier Miranda, 60 anos, é filho de um desaparecido político no Uruguai. Fernando Miranda Pérez, também professor universitário, foi detido na Operação Morgan, levada a cabo por uma divisão do exército, em 30 de novembro de 1975, e conduzido a um centro de tortura da ditadura civil-militar vizinha. Seus restos mortais foram localizados em 2005 no prédio do Batalhão de Infantaria nº 13 e identificados através de exame de DNA.

Neste diálogo com Brasil de Fato RS, em Montevidéu, Miranda conta um tanto dessa herança, do trabalho com familiares de desaparecidos, do crescimento da extrema direita no continente, do perfil político do povo uruguaio e das próximas eleições presidenciais quando a Frente Ampla, a qual presidiu de 2016 a 2021, almeja retornar ao poder. 

Brasil de Fato RS - Começa contando sobre a tua trajetória, tanto na política quanto na defesa dos direitos humanos no Uruguai.

Javier Miranda - Minha origem está na defesa dos direitos humanos mais do que no trabalho na política partidária. Sou filho de um desaparecido político. Meu pai foi preso em 1975 pela ditadura e desapareceu. Recuperamos seu corpo em 2005, com o primeiro governo da Frente Ampla, de Tabaré Vázquez. Então, meu compromisso histórico, desde os 17 ou 18 anos - hoje tenho 60 - foi integrar o grupo de mães e familiares de uruguaios detidos e desaparecidos.

Em 2010, quando (o presidente) Pepe Mujica assumiu o governo, fui designado diretor de direitos humanos do Ministério da Educação e Cultura. Naquele momento, entendi que não poderia estar na organização não governamental e, ao mesmo tempo, no governo, trabalhando com direitos humanos. Então, com muita dor no coração, porque sempre tive muito carinho pelas senhoras mais velhas, deixei a organização de familiares. E por culpa do Brasil - que já tinha, naquela época, o Plano Nacional de Direitos Humanos 3 e havia criado a Secretaria de Direitos Humanos, subordinada ao Executivo - me pareceu que esse modelo de colocar a Secretaria no governo e no Executivo, e não em um ministério, era uma boa alternativa.

Tive a ideia ousada, meio louca, de me candidatar a presidente da Frente Ampla

Lembro de ter conversado muito com (o secretário) Paulo Vannuchi e propus no Uruguai a criação de uma Secretaria de Direitos Humanos subordinada à Presidência. E, finalmente, em 2013, conseguimos. E lá fui eu, como secretário de Direitos Humanos onde estive até 2016. Tive a ideia, em 2016, ousada, meio louca, de me candidatar a presidente da Frente Ampla. A Frente Ampla realizava eleições periódicas, elegendo suas autoridades de forma regular e por voto aberto dos seus filiados. 

BdF RS - De quantos em quantos anos?

Javier - Aproximadamente a cada cinco anos. Em 2016, me candidatei à presidência da Frente e ganhei. Meus eleitores são uns inconsequentes (risos)... Fui presidente de setembro de 2016 a julho de 2021. Minha presidência na Frente ocorreu durante o segundo governo de Tabaré Vázquez, e perdemos as eleições em 2019.

BdF RS - E hoje você é professor na universidade?

Javier - Sou militante da Frente Ampla. Bem, nunca deixei de ser professor universitário. Em qualquer cargo que ocupei, o único compromisso que nunca deixei foram minhas aulas. Leciono na Universidade da República, que é a maior do Uruguai, na Faculdade de Direito, uma matéria terrível chamada Direito das Obrigações. Há alguns anos, também dou aulas de Direito na Universidade CLAE, o Centro Latino-Americano de Economia Humana, cuja faculdade está em Punta del Este.

Os partidos tradicionais não têm eleitorado para formar uma maioria. Então, se aliaram à extrema direita 

BdF RS - Qual é tua avaliação sobre o processo eleitoral deste ano?

Javier - A Frente Ampla tem 40% ou 42% dos votos, distribuídos em metade da população em Montevidéu e parte do Interior. Em outubro, teremos eleições e a situação é bastante competitiva. Veremos como vai evoluir. Caso não se obtenha maioria absoluta, ou seja, 50% mais um dos votos válidos, haverá um segundo turno no último domingo de novembro. Com seu candidato Yamandú Orsi, a Frente disputará a presidência muito provavelmente com o candidato do Partido Nacional, hoje no governo.

Atualmente, o presidente é Luis Lacalle Pou, eleito no segundo turno de 2019, formando uma coalizão. Todos os partidos que não são da Frente Ampla se aliaram para derrotar a Frente, que vinha de 15 anos de governo, e tiveram sucesso.


"A Frente Ampla tem 40% ou 42% dos votos, distribuídos em metade da população em Montevidéu e parte do Interior", prevê Javier / Foto: Esme Molina

O governo que comandou o Uruguai de março de 2020 até hoje, e que se encerrará em 1º de março de 2025, tem como principal sigla o Partido Nacional, um partido histórico, do século 19, fundador das estruturas democráticas no Uruguai. Sozinho, o Nacional não tinha votos suficientes para o segundo turno, então se aliou ao também histórico Partido Colorado, hoje muito pequeno, com cerca de 10% do eleitorado.

O Partido Nacional é conservador, com maioria de centro-direita ou de direita. São conservadores/liberais. Conservadores em termos morais, de concepção de vida, mas liberais em termos econômicos, neoliberais.

O Cabildo Abierto não é Milei, não é Bolsonaro, não é Trump, esses espécimes de zoológico

BdF RS - Não se assemelha à extrema direita da Argentina ou do Brasil?

Javier - Não é extrema direita. Tenho enormes diferenças ideológicas com eles, mas são democratas, sem dúvida. Os partidos Nacional e Colorado, este de centro ou centro-direita, não tem eleitorado para formar uma maioria, então se aliaram, agora sim, a um partido de extrema direita. 

BdF RS - Ah, sim?

Javier - É o Cabildo Abierto, fundado para as eleições de 2019 por um ex-comandante do exército, Manini Ríos. Talvez no discurso o Cabildo Abierto não seja um partido fascista antidemocrático, mas tem dentro de suas fileiras pessoas ligadas ao golpe de Estado de 1973 e à repressão. Tem forte vínculo à tradição militar repressora, antidemocrática. É difícil classificar o Cabildo Abierto como extrema direita, mas tem componentes de extrema direita. Agora, não é Bolsonaro, não é Milei, não é Orbán, não é Trump, esses espécimes de zoológico... 

BdF RS - Conversando com algumas pessoas aqui no Uruguai questionei qual o motivo para aqui não se constituir essa extrema direita. Elas disseram que é porque o povo é muito progressista...

Javier - Sim, pode ser. Não estou tão convencido de que o povo uruguaio seja progressista, acho que é um povo conservador em geral. É verdade que o progressismo teve boa aceitação, bom arraigamento social, principalmente em Montevidéu, que é o principal espaço eleitoral, onde vive metade da população, e onde a Frente Ampla é governo desde 1990, ou seja, o governo de Montevidéu foi ganho pela Frente Ampla em 1990 e nunca mais foi perdido, e, por enquanto, continuará ganhando.

Notoriamente, a população de Montevidéu apoia a Frente Ampla, está sempre acima de 50%, mas é a Capital. Agora, vive metade do país aqui. O Uruguai é um país pequeno, a distância mais longa que existe entre um ponto e outro no território nacional é de 600 km. Somos 3,5 milhões de habitantes, muito poucos, somos um bairro de São Paulo.

As pequenas comunidades excluem os extremos ou os contêm rapidamente

Isto faz com que haja muito controle social, além de ser difuso, e isso também faz com que os extremos sejam difíceis de sustentar. As pequenas comunidades excluem os extremos ou os contêm rapidamente. Isso não quer dizer que estamos livres. Na realidade, tenho uma enorme preocupação com a transição das democracias liberais, porque estamos vendo uma deriva para fenômenos extremos, principalmente de extrema direita, muito mais do que de extrema esquerda, e isso está hackeando a própria democracia, colocando-a em questão.

A emergência de um Bolsonaro no Brasil não era esperável ou, se era, nunca imaginamos que um anormal desses poderia presidir a principal potência da América Latina. Mesmo em um Brasil que vinha de golpes de Estado, que vinha da ditadura de 1964 em diante. Nunca acreditei que Bolsonaro pudesse ganhar as eleições no Brasil, francamente... 

As democracias liberais estão dando oportunidades àqueles que estão dispostos a destruir a democracia

BdF RS - Nem nós…

Javier - E aí temos o fenômeno Trump, insisto, o fenômeno Orbán na Hungria, os fenômenos da Aliança para a Alemanha, a AFD, o Vox na Espanha, a extrema direita na França, Giorgia Meloni na Itália. As democracias liberais, e não digo isso de forma despectiva, reivindico a democracia liberal, estão dando oportunidades àqueles que estão dispostos a destruir a democracia. É realmente suicida.

O Uruguai é uma comunidade muito pequena, e isso torna mais difícil, mas não quer dizer que estamos livres. Em 1973, dizíamos que não poderia haver golpes de Estado militares, e tivemos um. Não pensávamos que o fenômeno que aconteceu no Brasil em 1964 e a instauração de uma ditadura de segurança nacional pudesse ser transferido para o Uruguai. E aconteceu. Ah, nós temos uma tradição democrática... O Uruguai é um país democrático e pode deixar de ser. No dia em que deixou de ser, tivemos uma ditadura que foi de 1973 a 1985 e que prendeu ilegalmente, torturou, desapareceu, executou e mandou pessoas para o exílio. Nenhuma democracia está a salvo.


"Nunca acreditei que Bolsonaro pudesse ganhar as eleições no Brasil, francamente" / Foto: Esme Molina

BdF RS - Esse partido, criado em 2019, cresceu durante este governo? 

Javier - Teve ministros de Estado. Acho que vai ter um mau desempenho nas próximas eleições. Nas eleições de 2019 teve 13% dos votos. As pesquisas estão dando (hoje) 3% ou 4%. Pode chegar a 8%, mas vai diminuir. Entre outras coisas porque não há novidade. O fenômeno Cabildo Abierto em 2019 está justificado também por sua novidade. Era algo novo. Boa parte do que está acontecendo em nossas democracias liberais é que há uma reação frente ao establishment, seja ele qual for. E isso explica o fenômeno Milei.

BdF RS - É uma coisa inimaginável na Argentina, não?

Javier - Inimaginável em qualquer lugar do mundo. Esse tipo não pode governar nada. O que aconteceu na Argentina foi o voto de reação ao que estava. O voto da raiva. Para tirar esses outros. A lógica que se instalou nas democracias ocidentais e liberais, de rejeição ao establishment, faz com que apareçam outros tipos. E este é o discurso permanente da extrema direita hoje. 

O que a extrema direita está fazendo é canalizar o descontentamento, mesmo que o projeto seja nenhum

BdF RS - Os antissistemas... 

Javier - Exatamente. Não são fascistas no sentido do fascismo como foi Mussolini, nem mesmo Hitler. São fenômenos de reação que canalizam o descontentamento. Mussolini chega ao poder em 1922, canalizando o descontentamento de uma Itália que havia saído da Primeira Guerra Mundial sem nenhuma recompensa. Foi um desastre. Hitler canalizou o descontentamento da República de Weimar.

O que a extrema direita está fazendo é canalizar o descontentamento, mesmo que o projeto seja nenhum. Claro, tudo isso com uma estrutura bem trabalhada de comunicação, de fake news, de aproveitamento das redes sociais. Você ouve Trump. A entrevista, entre aspas, que Elon Musk fez com Trump outro dia no X, é uma vergonha. É uma vergonha porque não é uma entrevista. É um amigo falando com outro com o qual ele concorda. Além disso, Trump mente descaradamente. E não acontece nada. Mente descaradamente e isso é aceito. É antissistema.

Acho que a esquerda perdeu uma enorme capacidade de contestar o sistema. A queda da União Soviética, o projeto de socialismo real, com todos os seus efeitos, teve, entre outras consequências, para toda a esquerda, não apenas para os partidos comunistas, a ausência de um projeto alternativo ao modelo imposto pelo capitalismo liberal e pelo capitalismo financeiro, sobretudo.

Em 1971, a Frente Ampla foi o único lugar do mundo onde a democracia cristã fez aliança com um PC marxista-leninista

BdF RS - Qual é a diferença, hoje, entre a Frente Ampla e um partido tradicional? 

Javier - Basicamente, a redistribuição da riqueza. A Frente Ampla também é uma coalizão que tem mais de 50 anos. Foi fundada em 1971 e fizemos uma aliança que, a princípio, era uma aliança eleitoral para se opor ao autoritarismo do Partido Colorado no momento final dos anos 1970. Quando se funda convoca os comunistas e os democratas cristãos.

É o único lugar no mundo onde a democracia cristã faz aliança com o Partido Comunista, um PC típico da terceira internacional, marxista-leninista, dependente da União Soviética. Uma democracia cristã inspirada no Concílio Vaticano II, fortemente influenciada pelos inícios da Teologia da Libertação, que está lendo (o bispo Dom Pedro) Casaldáliga. E do espectro que vai de um partido marxista-leninista até a democracia cristã, no meio aparecem o Partido Socialista, o Partido Social-Democrata... 

BdF RS - Os Tupamaros... 

Javier - Claramente. O MLN é claramente um movimento socialista, mas nacionalista. Se é que é possível que isso exista. O que diferencia hoje o progressismo ou a Frente Ampla dos outros partidos? Temos um programa comum, predefinido? Sim. A diferença central está em um tema que identifica a esquerda - e isso é segundo (o filósofo italiano) Norberto Bobbio - a luta pela igualdade de direitos em todos os campos. Igualdade de gênero, mas também igualdade econômica, a luta contra as desigualdades ou por razões raciais. Isso define a esquerda: a luta pela igualdade. A direita sempre diz ´Ah! Sempre houve pobres e ricos, e sempre os haverá`.

A direita continua reivindicando a ideia do puro mérito. Ascende-se por mérito, segundo suas capacidades, o que é uma injustiça, não só porque não partimos todos do mesmo ponto, mas porque também é impossível que partamos do mesmo ponto. Uma pessoa que tem síndrome de Down, efetivamente, não tem as mesmas possibilidades e nem ponto de partida que os demais.

O sistema econômico que temos hoje é insustentável do ponto de vista ambiental

As políticas atuais da esquerda no Uruguai, e foi nossa história nos 15 anos de governo, são a redistribuição da riqueza. Estamos muito mais preocupados com a redistribuição da riqueza, contra o discurso da direita liberal, que diz que o que se trata é de crescer economicamente, e depois que crescemos, então distribuímos.

O sistema econômico que temos hoje é insustentável do ponto de vista ambiental. Não podemos continuar crescendo indiscriminadamente porque temos um limite ecológico. O que vamos fazer com os monitores que descartamos? Com os celulares que trocamos a cada quatro anos, com a economia do carvão para produzir energia, obviamente não renovável? A lógica de crescimento tem um limite claro, o ecológico, sem dúvida, não se pode crescer, crescer, crescer porque não é sustentável neste planeta.


"Não podemos continuar crescendo indiscriminadamente porque temos um limite ecológico" / Foto: Esme Molina

BdF RS - Como vimos no Rio Grande do Sul atualmente...

Javier - Claro. Até quando vamos desmatar a Amazônia? Até não termos mais Amazônia? Mas também me irrita muito quando os europeus vêm nos dizer ´Não desmate a Amazônia, a Amazônia é um patrimônio da humanidade`. Sim, mas era patrimônio da humanidade a Floresta Negra também. A economia do carvão cresceu desmatando a Floresta Negra, não?

O sistema capitalista é infinitamente mais justo do que o sistema medieval feudal, mas tem um limite e vai cair porque não se pode continuar crescendo assim.

BdF RS - No Uruguai, o Estado é forte nas políticas sociais. Não há a possibilidade, por exemplo, de privatizar serviços, ou acabar com leis como, por exemplo, sobre o aborto ou a legalização das drogas? 

Javier - Há uma forte tradição estatista no Uruguai. Tem a ver com a nossa história. No início do século 20, o Uruguai teve uma transformação muito forte a partir do governo de José Valle de Ordóñez. A partir de 1903. Foi um governo que hoje chamaríamos de social-democrata. Então, separação entre Igreja e Estado, criação de empresas públicas de energia elétrica e de água potável, nacionalização da empresa de ferrovias, antes nas mãos dos ingleses. Temos uma longa tradição de seguros, não só seguros de vida, seguros de acidentes de trânsito, seguros por doenças profissionais, seguros por acidentes de trabalho. 

Temos um mecanismo de democracia direta que é o referendo. Quando uma lei é aprovada, só posso derrubá-la através de um referendo

BdF RS - Tudo público?

Javier - Tudo público. Empresas fortes. Isso se manteve. Quando retornamos à democracia, depois de 1985, houve tentativas de privatizar na onda neoliberal. O exemplo mais paradigmático é (o presidente Carlos) Menem, da Argentina, com privatização da telefonia e da energia elétrica. No Uruguai, temos um mecanismo de democracia direta que é o referendo. Quando uma lei é aprovada, eu posso convocar o corpo eleitoral a derrubar essa lei através de um referendo. E houve um referendo sobre empresas públicas nos anos 1990, quando se tentou privatizar a telefonia e o refino de petróleo. Vencemos o referendo e impedimos a privatização. O principal banco do Uruguai é o Banco da República. É um banco comercial, mas é do Estado.

Também criticamos as empresas estatais, pois são ineficientes em muitos aspectos, mas temos um setor comercial e industrial estatal muito poderoso. Além disso, herdamos um regime de Seguridade Social fortemente estatizado. Então há uma tradição forte. E depois, é mais difícil no Uruguai porque somos, afinal, também um país conservador. Então, uma vez que temos certas conquistas é difícil que sejam revertidas.

Tem a ver com os direitos. A lei do aborto foi muito discutida. Tabaré Vázquez, sendo presidente da República de um governo progressista, vetou a lei que havia sido sancionada pelo Parlamento sobre o aborto. Foi um problema interno sério. Quando vem o governo de Mujica, a lei é reavaliada e aprovada. Não é um aborto livre, exigindo toda uma regulamentação.

Fomos muito famosos pela lei da maconha. Pensam que a maconha está totalmente liberada e que fumamos um baseado em cada esquina e não pagamos... Não é assim.

É uma lei que permite o cultivo e a comercialização de maconha com fins recreativos em farmácias. Não significa que não haja um circuito ilegal de drogas, inclusive de maconha. A maconha das farmácias tem um THC (tetraidrocanabinol, substância ativa encontrada na Cannabis) mais baixo do que a maconha comercializada. E o efeito psicoativo da maconha nas farmácias não é igual ao da maconha clandestina, por assim dizer. Agora, isso também permitiu o cultivo de maconha para fins medicinais. É uma indústria interessante, ainda incipiente. Há capitais canadenses, sobretudo, observando o que está acontecendo no Uruguai. Diria que a lei da maconha nos tornou populares por uma questão que é muito marginal na política.

Sem dúvida, o reconhecimento da igualdade de direitos, o casamento homossexual, o reconhecimento da união estável como legal, são avanços sociais dificilmente reversíveis.

O narcotráfico acaba no dia em que não seja um negócio ilícito

O que aconteceu com o governo de direita, que não concorda com nada disso? Não pôde reverter. É muito difícil, como se pretende na Argentina ou na Espanha ou outros países dizer ´Não, temos que voltar a ser mais duros na repressão ao aborto, voltar a tornar um fenômeno clandestino`...

O narcotráfico acaba no dia em que não seja um negócio ilícito. No dia em que se puder comprar cocaína na esquina, acaba o negócio da cocaína. Estou dizendo que vamos fomentar o consumo de cocaína? Não! Não quero, de forma alguma, fazer isso. O que digo é que, se faço disso um comércio ilícito, gero o mercado ilegal que permite os grandes lucros dos narcotraficantes. Que, no fim, acabam hackeando a própria democracia porque, para manter o negócio ilícito, o pior para o narcotraficante é a legalização da droga.

Provas estão aí. O preço internacional da cocaína caiu no mercado ilegal. Rapidamente, as organizações ilícitas se voltaram para o tráfico de armas. Porque não é um problema, isso é um problema de mercados, basicamente.

Se eu tirar a clandestinidade com a qual (a droga) se torna um mercado regularizado, rapidamente vou para outro mercado ilegal, como o de armas ou de ouro. E o Uruguai, nesse sentido, é um país bem complexo. Não temos produção de cocaína, apenas algo de produção de pasta base. Mas também somos um país de lavagem de dinheiro do narcotráfico por causa do nosso sistema bancário, de proteção da praça financeira. Somos um país de tráfico de armas. Chama muita atenção ver na fronteira de Jaguarão (Brasil)-Rio Branco (Uruguai), a quantidade de lojas de armas do lado uruguaio. Isso não é casual.

BdF RS - Inclusive passamos por uma loja em que se vendia queijos e armas...

Javier - Bem, em um país de 3,5 milhões de habitantes quantas armas são vendidas? São vendidas para uma população como a de Rio Branco, que tem cinco mil habitantes?

O Uruguai, nisso, é um país muito complicado porque temos dois grandes países ao lado, Brasil e Argentina, que têm mercado e muito desenvolvimento econômico.

Quando perguntaram ao (ex-presidente brasileiro Fernando) Collor de Melo onde ele havia investido (seu dinheiro), ele disse que fora em uma sociedade anônima financeira uruguaia. O Uruguai vendia sociedades anônimas pré-fabricadas para a lavagem de ativos do Brasil. A lei de sociedades anônimas financeiras de investimento acabou revogada. Mas, claramente, nossa função era lavar o dinheiro ou permitir a evasão fiscal no Brasil. Fazemos isso com a Argentina desde sempre.

Os paraísos fiscais pululam dentro de uma economia de capitalismo financeiro

A instabilidade econômica na Argentina sempre beneficiou o Uruguai em alguns aspectos. Entre outros, porque os argentinos retiram seus capitais (dos bancos de seu país) e os colocam no Uruguai. E têm investimentos imobiliários. Isso é Punta del Este. O Uruguai é um país bastante hipócrita nesse sentido. Tem um sistema financeiro muito delicado, com alta bancarização, mas que também permite fugas fiscais para os países vizinhos. O Líbano faz exatamente a mesma coisa com as capitais no Oriente Médio. Luxemburgo faz isso com a Europa. O Panamá tenta fazer isso na potência máxima em toda a América Latina. Ilhas Cayman, Ilhas Virgens Britânicas. Os paraísos fiscais pululam dentro de uma economia de capitalismo financeiro. 


"Uruguai e a Frente sempre tiveram uma política de integração muito forte. Em particular com o Brasil" / Foto: Esme Molina

BdF RS - A partir da eleição da Frente Ampla poderemos avançar na integração do Mercosul?

Javier - Uruguai e a Frente sempre tiveram uma política de integração muito forte. Em particular com o Brasil. Pepe Mujica quando assumiu o governo apoiou muito a integração regional. Para nós, o mercado brasileiro é básico. Entrar no Brasil sem tarifas ou com tarifas baixas é essencial. Nosso arroz, nosso leite, vai para o Brasil. É natural. Assim como a erva-mate vem do Brasil.

Mas além da integração econômica, (é preciso) integração política. Para a esquerda é fundamental a integração e a coordenação. Insisto, econômica sim, mas não só. Então, o que podemos fazer concretamente? Ah, eu acho que podemos fazer muito.

Na própria fronteira, temos políticas comuns. Você cruza de Santana do Livramento para Rivera e não há nenhuma diferença. Chuí e Chui (fala duas vezes, uma com a pronúncia em português e outra com a espanhola para nominar a mesma localidade fronteiriça). É a mesma comunidade. O hospital público de Rivera é excelente. Como vamos integrar a saúde entre Rivera e Livramento? Temos que nos integrar. Temos que dar a possibilidade para que os habitantes de Santana do Livramento, da região Sul, do Rio Grande do Sul, possam também ter acesso à saúde. Colaborar na assistência à saúde comum. E que o trabalho não seja clandestino. Quantos uruguaios trabalham do lado brasileiro? Quantos uruguaios vivem do lado brasileiro? O que significa ser uruguaio na fronteira? O que significa ser gaúcho na fronteira? Se somos os mesmos? O que significa a nacionalidade em uma fronteira onde temos uma cultura comum e até mesmo uma cultura própria?

A Frente tem irmandades. Com o PT, com o PSOL. E isso se chama internacionalismo

As fronteiras não deixam de ser um fenômeno artificial criado pelos Estados nacionais. Sem destruir os Estados nacionais, nessas fronteiras temos que ter políticas de articulação comum. Em termos eleitorais, e agora baixando para a eleição. Facilitar em um país como o Uruguai, que não tem voto no exterior, que os uruguaios que vivem no Brasil, e que são muitos, venham votar no seu país. Esse é um acordo que deve ser feito.

Além disso, a Frente tem irmandades. Com o PT, com o PSOL. Todos têm tradições comuns. Temos concepções. E isso se chama internacionalismo. E talvez a esquerda deva retomar a ideia de internacionalismo. Hoje discuto com meus amigos do PT. Gaúchos, paulistas, pernambucanos. E temos uma linguagem comum. Porque falamos de distribuição de riqueza. Da defesa dos trabalhadores e dos seus direitos, de melhorar os salários, de igualdade de direitos para homens e mulheres. Como não vamos colaborar?

Meus amigos gaúchos estão preocupados com a eleição no Uruguai. Por que o Uruguai é a vanguarda da revolução mundial? Claro que não. Mas se a esquerda ganha no Uruguai, não é a mesma coisa que se a direita ganha. Também não é para o Brasil e para o governo Lula.


Edição: Ayrton Centeno