A autodeclaração do prefeito de Porto Alegre e candidato à reeleição, Sebastião Melo (MDB), como “pardo” após 20 anos se apresentando como “branco” causou estranheza e críticas da Bancada Negra da Assembleia Legislativa do RS.
Ex-vereadora da capital e hoje deputada estadual, Laura Sito (PT) considera “absurdo” o fato de alguém, após tantos anos, “alterar a sua identificação autorracial sem nenhuma coerência com o seu processo histórico”. Também ex-vereador em Porto Alegre, agora deputado estadual, Matheus Gomes (PSOL) registra o contraste entre a autodeclaração tardia e o descuido com a promoção da igualdade racial pelo prefeito.
Para Matheus, “uma coisa é usar as palavras para dizer que é contra qualquer atitude racista. Outra é ser prefeito de uma capital, ter a caneta na mão e no orçamento, como aconteceu em 2021, e apresentar apenas R$ 11 mil para políticas de combate ao racismo”.
Veto aos Territórios Negros como patrimônio da cidade
Também integrante da Bancada Negra, Bruna Rodrigues (PCdoB) retoma o tema para observar que o prefeito bolsonarista “reduziu o orçamento para políticas de igualdade racial em Porto Alegre de R$ 380 mil para R$ 11 mil”.
Ex-vereadora, ela é autora do projeto Selo de Igualdade Racial, que busca promover, junto à iniciativa privada, mais oportunidades de emprego às pessoas afrodescendentes. “Foi sancionado pelo prefeito. Porém, até o momento, foram poucas as reuniões realizadas acerca do tema”, reclama.
Bruna acentua que Melo vetou integralmente projeto de lei seu e das vereadoras Karen Santos (PSOL) e Daiana Santos (PCdoB) que classifica os Territórios Negros – entre eles o Largo Zumbi dos Palmares e o Mercado Público - como Patrimônio Cultural da Cidade.
Prefeitura tentou desalojar quilombo urbano
Deputada federal, Daiana Santos (PCdoB/RS) uniu-se ao coro para sustentar que, em nenhum momento, Melo teve “um olhar sensível” para a pauta da igualdade racial. Ressaltou que a bancada governista na Câmara de Vereadores é contrária ao feriado do 20 de Novembro. “Não houve sequer alguma negociação para que o Dia de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra pudesse ser celebrado em Porto Alegre, que é a terra de Oliveira Silveira, criador da data”, reforça.
No seu entendimento, a mudança na autodeclaração visaria o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e o Fundo Partidário, que beneficiam partidos com maior número de candidatos afrodescendentes. “Não é uma 'correção histórica'. É interesse financeiro”, interpreta.
“Ao longo desses quatro anos de governo Melo, tivemos muitos retrocessos na pauta étnico-racial”, expõe Karen Santos (PSOL), também da Bancada Negra mas que permanece vereadora. “Como o retrocesso de 50% do investimento previsto no orçamento da pauta de combate das discriminações étnico-raciais aqui no nosso município”, exemplifica.
Karen também destaca o caso do quilombo Kédi, situado no bairro Boa Vista, de alta classe média. “Porto Alegre é a capital com a maior quantidade de quilombos urbanos em processo de titulação. E tivemos uma ação por parte do município atuando junto à Defensoria Pública para a desocupação daquele território, mesmo entendendo que estava em processos de confecção dos laudos e dos estudos por parte do Incra”.
Potencializando a segregação
Ainda segundo ela, a prefeitura também negou a utilização do espaço da Epatur, a antiga sede da empresa, para a instalação do museu e da cultura do povo negro. “A gente entende que aquele território faz parte desses territórios negros que vêm sendo negociados pela especulação imobiliária. No entorno, a gente tem o Largo Zumbi, o Quilombo Mocanbo, o território da Lupicínio, a antiga Ilhota”. Ela avalia que está em curso um projeto de higienização dos Territórios Negros que trazem a marca da presença e da cultura afrodescendente.
“Politicamente (Melo) também não atuou para fazer a proteção dos territórios, da matriz africana, da cultura, do carnaval, dos slams, de tudo aquilo que remete à presença negra na nossa capital. Atuou enquanto prefeitura, sobretudo para negociar esses territórios, para potencializar ainda mais a segregação dentro da nossa cidade”, diz.
Laura Sito afirma que “ainda que a prefeitura tenha uma Coordenadoria de Direitos e Promoção de Igualdade Racial (CDPIR), da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), a agenda antirracista, da promoção da igualdade racial não se expressou em momento algum na atual gestão”.
“Se você fizer uma busca no site da Câmara Municipal – desafia Bruna - com a palavra 'racismo' ou 'negro' encontrará pouquíssimos projetos de lei protocolados por parlamentares vinculados à base do prefeito. E esse é um reflexo do descompromisso real e concreto da prefeitura com a nossa gente”. E prossegue: “Basta olhar para o primeiro escalão da prefeitura: quantos secretários/as negros/as temos? A cidade mais segregada racialmente é, ainda, a cidade que mostra o reflexo da falta de um compromisso antirracista”.
MDB diz que mudança é “correção histórica”
Eleita em 2020, mesmo ano da eleição de Melo, a Bancada Negra constitui um ponto fora da curva na Câmara local. Pela primeira vez cinco parlamentares negros e vinculados a partidos de esquerda chegavam à vereança. Em 2022, Laura, Matheus e Bruna elegeram-se para o legislativo estadual, enquanto Daiana chegou ao Congresso. Embora com mais votos do que 28 deputados estaduais eleitos, Karen não conseguiu se eleger por conta do PSOL não alcançar o quociente eleitoral.
A resposta da campanha do prefeito e do MDB de Porto Alegre sobre o episódio é sucinta. Afirma apenas que a sigla fez “uma correção histórica em relação à cor do candidato à reeleição, Sebastião Melo”. Antes, o caso mais comentado de político autodeclarando cor/raça ocorreu em 2022, quando o então candidato ao governo da Bahia, ACM Neto, apresentou-se como “pardo”. A novidade sacudiu a campanha, açulou os adversários, produziu memes e o herdeiro eleitoral do clã Magalhães, até então favorito, acabou perdendo a disputa.
40 mil trocaram de cor e raça
Além de Melo, mais de 40 mil candidatos mudaram a declaração de cor e raça no país justamente na véspera das eleições deste ano. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a maior parte das mudanças envolveu concorrentes que se identificaram como brancos em 2020 e agora se autodeclararam pardos, totalizando, até o momento, 40,4%.
“Esses 40 mil que alteraram sua identificação racial demonstram muito o desafio que é a implementação das políticas afirmativas nos processos eleitorais, que nascem para afirmar a necessidade da presença desses grupos no espaço de poder e decisão”, pontua Laura. “O desafio dos órgãos de controle do TSE é poder garantir condições de aferir essas autodeclarações e garantir que, de fato, a política sirva para a efetiva mudança no quadro de representações públicas do Brasil.”
Edição: Marcelo Ferreira