A Frente Feminista 8M Pelotas e o Fórum Aborto Legal RS realizaram uma roda de conversa sobre a relação entre o racismo e a inacessibilidade ao aborto legal. Apesar de garantido por lei, em Pelotas não há serviços cadastrados como referência para realizar o procedimento. Líderes dos movimentos relatam que uma das principais causas para buscar o serviço é a violência sexual. Dados recentes revelam que Pelotas é a cidade da região sul com mais casos de estupros.
Atualmente, segundo a Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul, o Estado conta com 22 serviços cadastrados como referência para a atenção integral a pessoas em situação de violência e sete serviços de referência para interrupção legal da gestação. Pelotas não está na lista.
Mulheres vítimas de violência sexual não são atendidas, também não há nenhum tipo de acolhimento ou atendimento mental ao procurar os serviços de saúde pública. “É um procedimento padrão o Pronto Socorro não atender essas mulheres”, conta Niara de Oliveira, representante do Movimento Feminista 8M Pelotas.
O direito ao aborto legal é garantido no Brasil de acordo com o artigo 128 do Código Penal - Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940, que o permite em caso de gravidez decorrente de estupro ou gravidez que represente risco de vida à mulher. O aborto também pode ser realizado em caso de anencefalia fetal, quando não há desenvolvimento cerebral do feto, de acordo com o julgamento da ADPF (Arguição de descumprimento de preceito fundamental) 54 realizado pelo Supremo Tribunal Federal em 2012.
O debate proposto pelos movimentos expõe a misoginia masculina e também a problemática de que, em Pelotas, os órgãos de saúde pública fecham os olhos para as vítimas ao negar o que lhes é garantido por lei. Além disso, os movimentos declaram que é inaceitável existir a possibilidade de médicos homens julgarem se vão decidir atender ou não mulheres vítimas de violência sexual. “Mesmo que a lei garanta, a palavra da mulher não basta”, afirma Niara.
Em Rio Grande, cidade vizinha com um complexo hospitalar menor, esse serviço é garantido, porém, não suficientemente. Há apenas uma médica responsável por atender uma região inteira, que não inclui Pelotas. A cidade está fora da área de cobertura dos atendimentos porque é considerada com capacidade hospitalar para atender sua própria população com autonomia e que, na verdade, é quem deve dar suporte a outros municípios.
Além de não ser atendida, a vítima não possui nenhuma orientação sobre como prosseguir para realizar o aborto. A falta de sensibilidade por parte dos órgãos competentes é interpretada como uma negação ao direito das vítimas. Não há nenhuma preocupação ou definições sobre como conduzir a vítima para realizar o aborto legal em outra cidade. Niara conta que para isso é necessário um serviço de saúde de referência para tratar dos casos, algo que atualmente não existe em Pelotas.
As lideranças dos movimentos relatam que ao cobrar explicações dos órgãos de saúde pública, a resposta é de que “não há demanda, por isso não há o serviço na cidade”. Contudo, os movimentos relatam haver sim essa demanda, mas que ela só pode ser observada ao olhar de perto essa realidade. “Quando a gente questiona a prefeitura sobre a garantia da oferta do serviço na cidade a resposta é sempre que não há demanda. Só que, na outra ponta, na ponta do movimento feminista a gente sabe que tem a demanda porque os casos chegam. O que os serviços públicos fazem é fechar os olhos pra essa situação”, conta Niara.
Niara também destaca que, quando uma mulher decide realizar o aborto, ela fará de maneira segura ou não. Isso comprova-se através dos relatos que chegam ao SUS de mulheres que, ao procurar os serviços de saúde e não serem atendidas, provocam aborto inseguro. Em desespero, na maioria das vezes porque foram vítimas de violência sexual, elas ainda precisam lidar com as sequelas geradas pelo procedimento. “As mulheres abortam. As ricas em clínicas ou com medicação seguras, sem risco a própria integridade. As mulheres pobres fazem de qualquer forma”, complementa.
Em Pelotas, o aborto legal ocorre em casos de anencefalia ou quando o prosseguimento da gestação pode colocar a mulher em risco de vida. Esses dois casos são emergenciais e, nas palavras de Niara, “tranquilos por parte dos médicos”. No entanto, o acesso ao aborto legal em casos de estupro é negado à vítima. A restrição desse direito age como um incentivo à violência sexual contra as mulheres e segue a mesma lógica de projetos de lei que buscam dificultar o acesso ao procedimento, como o Projeto de Lei (PL) 1904/2024, apelidado de "PL do Estupro".
Violência contra mulher
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2023 houve um aumento de 6,5% no número de vítimas de estupro. No Brasil, uma mulher é estuprada a cada seis minutos. Os dados mostram que 76% das vítimas eram vulneráveis e 61,6% delas com idade até 13 anos.
Além disso, o relatório Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, divulgado no dia 13 de agosto, cita um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), indicando que “apenas 8,5% dos eventos são reportados às autoridades policiais”.
Na realidade do sul do estado esses dados não são diferentes. O levantamento mais recente do Observatório Nosotras sobre violência contra a mulher analisou todo o ano de 2023 e o primeiro semestre de 2024 nos municípios que compõem o Conselho Regional de Desenvolvimento (Corede-Sul) do Rio Grande do Sul. Pelotas lidera todos os rankings de violência entre as cidades da região.
Dados regionais
Durante todo o ano de 2023 Pelotas registrou 66 casos de estupro, o que representa 41,5% do total de 159 casos analisados em todas as 22 cidades do relatório. A segunda cidade com mais casos é Rio Grande, com 32. Somados, os dois municípios representam 61,6% da totalidade. No primeiro semestre de 2024, Pelotas teve 25 casos (31,6%) e Rio Grande 24 (30,3), entre todas as cidades da região.
No ano de 2023 o Observatório da Violência Contra a Mulher da Secretaria da Segurança Pública registrou 2.664 casos de estupro em todo o Rio Grande do Sul. Ao comparar as ocorrências criminais contra mulheres e meninas nos municípios que compõem o Corede-Sul, verifica-se que a região responde por 6% dos estupros registrados no estado. Já no primeiro semestre de 2024 houve 1.054 casos do mesmo crime em todo o estado. Os 22 municípios da região sul são responsáveis por 7,4% desses delitos.
Os números de tentativa de feminicídio também trazem preocupações. O relatório aponta que no ano de 2023 houve 13 tentativas entre todas as cidades da região. Pelotas registrou quatro delas, sendo responsável por 30,7% dos casos. Apenas nos primeiros seis meses de 2024 esse número já se equiparou. Agora, a cidade representa 44,4% do total de nove registros entre as 22 cidades. Em Rio Grande foram registradas quatro tentativas em 2023 (30,7%) e três (33,3%) no primeiro semestre deste ano.
Foi registrada a ocorrência de 236 tentativas de feminicídio em todo o estado em 2023. Os 22 municípios da região sul são responsáveis por 5,5% delas. Já no primeiro semestre de 2024 foram 113 casos em todo o estado e as cidades da região sul representam 7,9% das ocorrências.
Em 2022, Pelotas registrou um caso de feminicídio consumado, enquanto o total de toda a região sul foi de sete. No ano seguinte, Pelotas registrou quatro casos e a soma de todas as cidades foi para 8, um a mais que no ano anterior. Em Rio Grande foram registrados dois casos em cada ano. Já no primeiro semestre de 2024 foram registrados dois casos, um em Rio Grande e um Piratini. A diminuição foi de 69,23%. De acordo com o Observatório Nosotras, essa mudança é um “fator importante que exige a complementaridade dos dados consolidados deste ano e desafia análises mais densas e multidimensionais”.
Em todo o ano de 2023, o estado do Rio Grande do Sul registrou 85 casos de feminicídio consumado, enquanto no primeiro semestre de 2024 foram 28. Os 13 casos dos municípios da região sul representam 9,4% dos delitos no ano passado. Já nos primeiros seis meses deste ano, a porcentagem reduziu para 7,1%.
A partir de dados do Observatório Nosotras, em 2022 Pelotas teve 854 crimes de ameaça. Em 2023, o número subiu para 1020, um aumento significativo de 19,44%. Durante o primeiro semestre de 2024 a quantidade de ameaças foi de 436, o que representa 43% de todos os delitos entre as cidades do relatório.
O número de ameaças em todo o estado no ano de 2023 foi de 33.356. As cidades do Corede-Sul são responsáveis por 7% dos registros. Posteriormente, no primeiro semestre deste ano foram 15.652 casos de ameaça em todo o Rio Grande do Sul. A região sul representa 6,1% desse total.
Por fim, o relatório traz números sobre lesões corporais. Em 2023 foram registrados 1.576 casos entre todas as cidades da região. Pelotas é responsável por 717 deles, enquanto em Rio Grande foram registradas 453 ocorrências. Em comparação com o ano anterior, em 2022 Pelotas registrou 649 casos e a cidade vizinha 342. O comparativo entre os dois anos mostra que o aumento nas duas cidades foi de 10,48% e 32,46%, respectivamente. Em comparação com o primeiro semestre deste ano, Pelotas registrou 326 casos e Rio Grande 234.
Esses dados revelam uma realidade com indicadores crescentes de violência contra a mulher. No comparativo com as demais cidades do estado no ano de 2023, Pelotas é a 13ª cidade com mais casos de feminicídio tentado, a 2ª em feminicídio consumado e lesão corporal, atrás de Porto Alegre nos dois casos. Pelotas também é a 4ª em ameaças e a 8ª em registros de estupro. Apesar dos índices gritantes, pouco se vê políticas públicas voltadas a contornar tal problemática. Além disso, o 190, número conhecido para ligações de emergência à polícia, está fora do ar na cidade.
Denuncie
Ao presenciar ou ser vítima de violência sexual, é possível realizar denúncias para o número 180, na Central de Atendimento à Mulher. Também, em Pelotas, existe a Delegacia de Polícia para a Mulher, localizada na Rua Barros Cassal, 516 - Areal. O telefone de atendimento é 3310-8181.
Edição: RadioCom