No Brasil, a revolução burguesa não se completou, assim como aconteceu na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos e em outros países do hemisfério norte. Por causa disto, temos uma burguesia tardia que nunca teve capacidade de desenvolver um projeto nacional para fazer as reformas estruturais que estes outros países experimentaram, tais como, a reforma agrária, a reforma social e a reforma democrática.
A burguesia brasileira se tornou submissa ao grande capital internacional. Não tem capacidade de desenvolver um mercado de massas regulado, um plano de desenvolvimento tecnológico e muito menos um processo de redistribuição democrática da renda. Serve apenas para enriquecer os abutres do império.
Nesta esteira, no Brasil foram destruídas a indústria metalúrgica, a indústria ferroviária, a indústria de bens de capital, a educação foi relegada a segundo plano e os juros da dívida passaram a enriquecer os especuladores. Nos tornamos fornecedores de matéria-prima barata e compradores de produtos industrializados feitos com esta matéria-prima, mas pagando um preço elevado.
A Trensurb, empresa metroferroviária, localizada na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), que já transportou mais de 200 mil passageiros por dia, no auge do crescimento econômico proporcionado pelos governos Lula e Dilma, foi destruída pelas enchentes de maio de 2024 no Rio Grande do Sul (RS).
Foram afetados seus sistemas de energia de tração, de energia predial, de sinalização, de bilhetagem, de via permanente, de comunicação por rádio, além de equipamentos de oficinas, veículos rodoferroviários e edificações. Toda sua inteligência de Tecnologia da Informação (TI) foi transferida, ainda durante a inundação, para o Serpro, em Brasília.
Cabe agora à direção da empresa reconstruí-la, porém, não se trata de tarefa simples. A falta de uma indústria ferroviária no Brasil exige que os grandes e caros equipamentos sejam importados, mas pior, muitos deles são customizados e levam meses para serem fabricados. Por exemplo, a Sécheron, empresa suíça que fabrica disjuntores extrarrápidos de 3Kcc (três mil volts corrente contínua) pediu 7 meses para repor nossos equipamentos. O mesmo vale para retificadores de tração de 3Kcc, além de outros painéis e equipamentos.
O problema central para a reconstrução da Trensurb não é capacidade técnica (isto a empresa tem de sobra), nem recurso (isto o governo Lula já garantiu), mas equipamentos que são customizados, ou seja, precisam ser fabricados especialmente para a Trensurb no exterior: torno subterrâneo para usinagem de rodas com CNC, socadoras para lastro de via, desguarnecedora de lastro (serviço), dormentes de concreto, sistema de sincronismo horário, sonofletores, disjuntores extrarrápidos de 3Kcc, retificadores de corrente, estação rádio base para telecomunicação dentre outros, que exigem meses para a fabricação.
Mas isto não esmorece nem a direção da empresa nem seu quadro funcional que buscam, de forma emergencial e no menor tempo possível, construir e/ou repor sistemas alternativos até que estes equipamentos cheguem para a recuperação definitiva.
Apesar destas dificuldades, estamos avançando. Dia 30 de maio, enquanto ainda estava tudo alagado na porção mais ao sul da RMPA, inauguramos a Operação Trilhos Humanitários, entre as estações Novo Hamburgo e Mathias Velho, sem cobrar tarifa dos usuários na medida em que nossos sistemas de bilhetagem haviam sido afetados. Inicialmente, devido às condições precárias, operamos das 8 às 20h. Posteriormente ampliamos para as 22h e depois para as 23h, para atender pedido das universidades ao longo da via. No turno manhã, antecipamos o atendimento para as 5h. Depois chegamos à Estação Canoas. Neste trecho já transportamos mais de dois milhões de trabalhadores.
A partir de 13 de julho voltamos a cobrar tarifa de R$ 4,50, porém passamos a garantir o complemento da viagem de forma gratuita, através de fretamento próprio. Antes, o usuário ao descer do trem em Mathias Velho tinha que pagar R$ 6,85. Nesta nova condição, com o Metrô operando das 5 às 23h, os passageiros do trem que descem em Mathias Velho e que desejam seguir até a Estação Mercado da Trensurb, no centro de Porto Alegre, podem desembarcar ao longo do trecho, nas estações Aeroporto e Farrapos da Trensurb. No retorno, durante o pico da tarde está sendo permitindo o embarque nas estações Aeroporto e Farrapos da Trensurb seguindo até a estação Mathias Velho onde acessam o trem.
Temos a expectativa de chegarmos à Estação Farrapos em 20 de setembro e na Estação Mercado no dia 24 de dezembro. A confirmação destas datas depende das tramitações dos projetos em curso e a disponibilidade dos equipamentos.
Cabe anotar que a destruição da Trensurb pela enchente foi mais extensa, volumosa e onerosa do que aconteceu no aeroporto. Lá, inundou 2,8 km de pista, aqui 18 km de via permanente. Lá inundou uma estação de passageiros, aqui foram seis. Lá ocorreram poucos danos com sinalização porque estava, em sua maioria, embarcada nos aviões. Aqui foram 10km completamente danificados ou posteriormente roubados, aqui as oficinas foram duramente atingidas, além da casa de bombas e do sistema elétrico de tração que no aeroporto não existe.
Por óbvio, tanto o Metrô quanto o aeroporto são fundamentais para a economia e para a sociedade, embora a mídia privatista distorça esta realidade. O Metrô transporta trabalhadores e setores populares e o aeroporto carrega as classes médias e os donos do capital. O Metrô retornou sua operação em 30 de maio e o aeroporto fala em retornar em outubro.
Os esforços para a retomada integral das operações são muito expressivos e os trabalhos estão avançando através do dedicado trabalho técnico realizado pelos trabalhadores da estatal federal que tem demonstrado capacidade de resiliência, eficiência, compromisso social e visão estratégica.
Na medida em que a burguesia brasileira não tem capacidade histórica para desenvolver democraticamente nosso país, este papel estratégico e relevante cabe às classes trabalhadoras. É este espírito impulsionador que anima a atual direção da Trensurb e seu corpo funcional, em busca da plena recuperação da empresa e do integral atendimento de seus usuários para assim contribuir com a criação das melhores condições de construção de um Brasil democrático, desenvolvido, socialmente justo e economicamente mais igualitário.
* Chico Vicente é doutor em Geografia e Superintendente de Desenvolvimento e Expansão da Trensurb.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo