Desde a trégua das chuvas, empresa tentou se desvincular da reconstrução do aeroporto
A tragédia climática que assola o Rio Grande do Sul desde maio tem um capítulo dramático: a reestruturação do Aeroporto Salgado Filho. Privatizado em 2017, o aeroporto foi concedido à empresa alemã Fraport até 2042. Com chuvas intensas, a pista e o prédio do aeroporto ficaram completamente alagados, causando danos na infraestrutura. Em meio ao retorno do funcionamento anunciado para outubro, segue-se um jogo de empurra-empurra da responsabilidade pelas obras entre empresa e Estado.
A Fraport é uma velha conhecida dos gaúchos devido às violações aos direitos da comunidade da Vila Nazaré, na zona norte de Porto Alegre. Essa comunidade situava-se nos arredores do aeroporto, onde famílias residiam há décadas, quando as obras de ampliação da pista de pouso e de instalação de sistema de drenagem foram responsáveis por uma ação agressiva da companhia contra a comunidade. Após se utilizar de uma empresa terceirizada para remoção das famílias, em um processo marcado pela violência e arbitrariedade, as 2 mil famílias foram deslocadas para conjuntos habitacionais periféricos e aguardam, até hoje, a instalação de infraestrutura adequada e condições de segurança e serviços públicos para moradia.
Um novo capítulo das violações da Fraport surge com as enchentes que deixaram a pista e o prédio, assim como boa parte da capital gaúcha, debaixo d’água. Desde a trégua das chuvas, a empresa tentou se desvincular da responsabilidade da reconstrução do aeroporto, alegando que as obras caberiam ao Estado, já que administra uma concessão e não é proprietária. Mais tarde, representantes da empresa da Alemanha alegaram que tal declaração foi infeliz por parte da administração brasileira, e que estariam abertos ao diálogo.
O governo federal conduz então as negociações com a Fraport para reabertura do aeroporto. A Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) analisa os custos apresentados pela Fraport para reestruturação, bem como o pedido de revisão contratual apresentado com base no argumento de caso ocasional. Curioso é que a mesma empresa, que faz propaganda sobre sustentabilidade e compromisso com compensação de emissões dos combustíveis da aviação com créditos da suposta preservação e redução de emissões de florestas (REDD), que administra seu aeroporto sede em Frankfurt, na Alemanha, não hesitou em atuar na drenagem da pista do referido aeroporto alemão em 2023, quando da inundação do mesmo. O que muda? A legislação alemã de concessões é mais rigorosa com as empresas transnacionais? Por que há uma atuação tão díspar da mesma companhia em casos semelhantes em diferentes países?
Outras denúncias da empresa envolvem o sistema de proteção contra as cheias. O deputado estadual Matheus Gomes denunciou ao Ministério Público Federal que houve uma redução dos investimentos necessários para as obras do sistema de drenagem do aeroporto por parte da Fraport. Segundo o parlamentar, a empresa não teria seguido as determinações do projeto dadas pelo departamento municipal responsável, o DEP (Departamento de Esgotos Pluviais), que foi extinto em 2017. O Ministério Público Federal investiga o caso.
O Aeroporto Salgado Filho é o nono maior do país, responsável por um intenso fluxo de passageiros, o qual as operações, deslocadas para a base aérea em Canoas desde maio, não conseguem ser atendidas. Este caso configura uma violação aos direitos do povo gaúcho e da livre circulação das pessoas, à medida que não estão asseguradas sua mobilidade em razão de um entrave contratual, assim como foi dificultado o rápido recebimento de doações e solidariedade por via aérea no estado no momento mais crítico das inundações. Evidente é que a prestação de serviços públicos por empresas é apenas focada no interesse da obtenção de lucros.
O caso é paradigma ainda da reprodução das injustiças ambientais e das falsas soluções do capital diante da emergência climática. A concessão, dada logo após o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, pelo então presidente Michel Temer, é parte de um processo de aprofundamento do neoliberalismo no país. A conquista de cada vez mais espaços e serviço públicos pelas empresas transnacionais elucida o embate entre direitos dos povos X direitos das empresas, no qual sempre as transnacionais saem beneficiadas e gozando de impunidade em matéria de direitos humanos e crimes, ou omissões, ambientais.
Mais um caso que reforça a urgência de um Tratado Vinculante sobre empresas transnacionais e direitos humanos, e no âmbito nacional o PL 572/2022, marco nacional de responsabilização às empresas violadoras de direitos que se esquivam de sua responsabilidade histórica com as mudanças climáticas, seja nas ações de mitigação, adaptação ou resposta a perdas e danos causados pelos eventos climáticos cada vez mais intensos e frequentes. Recuperar a democracia, os serviços e a gestão pública e regular as empresas transnacionais faz parte da necessária mudança de sistema para alcançar justiça climática num clima que já mudou.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko