Em 3 de maio de 2024, a cidade de Canoas foi atingida por uma tragédia climática sem precedentes que marcou a vida de cerca de 180 mil moradores, transformando profundamente o cotidiano daqueles que residem nos bairros mais devastados. Entre esses milhares, está a história de Aline Machado, de 41 anos. Ela vive na Rua Erechim, no Bairro Mathias Velho, onde há 13 anos construiu uma vida com a sua família. Com a subida da água, ela foi obrigada a abandonar o seu lar, suas memórias e vizinhos queridos. Por 33 dias, sua casa ficou submersa pela enchente. Onde Aline mora, o nível da água atingiu os 6,5 metros.
“Entrar na minha casa depois da enchente foi um momento muito difícil. Perdi meu telhado, todas as minhas coisas. Minha casa ainda está toda bagunçada. Foi chocante, essa é a palavra. Entrei em estado de choque. A única coisa que consegui recuperar foi minha máquina de lavar. O resto eu perdi tudo. A moto do meu filho também ficou na enchente, mas estamos tentando recuperá-la.”
Quando as águas começaram a baixar, ela retornou. E, desde então, sua rotina começa cedo. A poucos passos de sua casa, está situada a Associação de Moradores da Vila Getúlio Vargas, da qual Aline faz parte da diretoria. Os 200 metros que percorre entre sua casa e a Associação – um itinerário antes rotineiro pela manhã – agora carregam um novo significado: o de reconstruir a sua vida e também a sua comunidade.
Tanto a sua casa quanto a Associação sofreram grandes danos com a enchente. Antes de iniciar a reconstrução de seus próprios bens, Aline escolheu direcionar seus esforços para apoiar a comunidade. “Não sei se entrei em choque, mas eu sentia pelos meus vizinhos, amigos, parentes, mas não conseguia sentir por mim”, explica.
Da perda à solidariedade
Diante das necessidades urgentes provocadas pela tragédia, Aline tem se dedicado à Cozinha Solidária da Associação, que agora funciona de maneira improvisada para atender à demanda da população atingida que não tem acesso a alimentos. Todos os dias, às 7h30, Aline, ao lado dos voluntários da associação, começa o preparo das refeições, ajudando a produzir cerca de 600 marmitas diariamente. “Pra mim, é muito gratificante poder levar alimento para uma pessoa que não tem fogão, que não tem como preparar comida. Pode parecer pouco para nós, mas para eles é muito”, enfatiza.
Aline lembra dos desafios enfrentados inicialmente. A Associação possuía só três panelas, sem talheres, e contava apenas com a comida que recebiam de doações. “Mas a força de vontade e a coragem foram maiores do que a nossa falta de instrumentos e utensílios. Foi nesse momento que eu resolvi me dedicar completamente aqui”, conta.
A cozinha começou com a montagem de 200 marmitas e foi aumentando ao longo do tempo. Atualmente, até 600 marmitas são preparadas em dias de alta demanda. “No início, éramos só eu, a cozinheira, e minha filha, que também se voluntariou para me ajudar aqui na cozinha. Mas agora temos a ajuda dos movimentos do MST e do MTD, que estão junto conosco nessa preparação”, relata. Por meio do trabalho na Associação, Aline tem transformado sua dor pessoal em força coletiva.
Reforçando o espírito comunitário, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direito (MTD) têm atuado para revitalizar o espaço da Associação, incluindo a reconstrução do telhado danificado e a preparação do solo para o cultivo de uma horta comunitária. Diariamente, as Cozinhas Solidárias do MST complementam a distribuição da Associação enviando centenas de outras marmitas.
“Quando conseguimos produzir bastante, distribuímos livremente. E quando a produção não é tão grande, acabamos entregando três marmitas por pessoa, e a pessoa traz mais membros da família para levar mais. Eu só tenho a agradecer a cada um que faz parte disso, a cada um que doou, a cada um que dedicou seu tempo para estar aqui.”
Recomeço
Deixando um rastro de destruição, a enchente atingiu 44% da população de Canoas. A cidade está entre os municípios com maior porcentagem da população em domicílios particulares atingidos. Aline faz parte da estatística dessa tragédia. Enquanto enfrenta o desafio de reconstruir o seu próprio lar, ela tem priorizado a levar assistência a sua comunidade.
“Me sinto mais forte. Deixei minha casa, limpei e não fui atrás de móveis ou doações, porque preferi estar aqui. Minhas coisas ainda vão chegar, porque acredito que tudo tem um tempo determinado por Deus. Este é o tempo de eu plantar para colher lá na frente. A gente planta o bem porque sabe de onde vem a nossa recompensa, que vem do alto”, acredita.
Edição: Katia Marko