Uma queixa recorrente dos realizadores audiovisuais locais é não ter títulos gaúchos (produzidos no RS, com profissionais daqui) na mostra principal do Festival de Cinema de Gramado, que ocupa o horário nobre das sessões noturnas do Palácio dos Festivais, no município da Serra Gaúcha.
O último foi “A última morte de Joana”, de Cristiane Oliveira, em 2021. Nesta 52ª edição, aliás, o novo longa da diretora será exibido na Mostra de Longas Gaúchos, nas sessões da tarde de meio da semana, pois não era inédito (passou no Festival do Rio e na Mostra de SP em 2023).
Independência feminina
Dessa forma, a reportagem tentou esboçar uma cartografia das marcas dos profissionais gaúchos nos longas brasileiros em competição neste ano, cuja concorrência começa na noite deste sábado (10), com “O Clube das Mulheres de Negócios”, de Anna Muylaert (que exibiu Que Horas ela Volta? na abertura do evento em 2015, hors-concours, já premiado e badalado no exterior anteriormente).
A diretora paulista traz um enredo narrado em um mundo imaginário onde os estereótipos de gênero estão invertidos. A ação se passa num dia de folga do Clube de Campo frequentado por poderosas mulheres de negócios.
O elenco que tem oito grandes personagens femininas e conta com duas excelentes atrizes gaúchas: Ítala Nandi, patrimônio do Audiovisual do Brasil, e Grace Gianoukas, referência da comédia no país. Graduada em Realização Audiovisual pela Unisinos em 2007 e bolsista graduada no mestrado europeu em Direção de Fotografia Viewfinder MA em 2019, a diretora de fotografia gaúcha Luciana Baseggio também participou da produção como operadora de câmera.
Nascida em Caxias do Sul e já homenageada em Gramado, Ítala conta que não conhecia pessoalmente a diretora, só seus filmes: “Anna disse que me convidou porque fui uma mulher que lutou pela libertação e independência da mulher brasileira”.
A artista comenta sobre a obra e sua personagem: “Eu diria que é uma tragicomédia, repleta de símbolos que mostram o mundo masculino através de uma turma de mulheres - que não são jovens, esse é um dado importante diferencial. Faço uma participação eu até diria especial, é o único personagem colorido e que não é brasileiro, é uma italiana. O único personagem que transa e não morre. O filme não é feminista, eu diria que é uma clara crítica ao machismo e ao feminismo mesmo, roteirizado com grande inteligência. O que mais me interessou foi o roteiro em si, e a qualidade iluminada do meu personagem que representa a imortalidade do sexo”.
A força das mulheres – parte 2
Nascida em Porto Alegre, Sara é atualmente uma das mais ativas produtoras de filmes no Brasil. Em 1991, fundou a empresa produtora Dezenove Som e Imagens, junto ao cineasta Carlos Reichenbach, e desde então, administra em parceria com a também produtora Maria Ionescu. Juntas, assinam grande parte dos melhores filmes autorais originados nesse país, incluindo títulos das diretoras Anna Muylaert e Juliana Rojas.
Também em competição neste ano em Gramado, “Cidade; Campo”, escrito e dirigido por Juliana, tem mais dois profissionais gaúchos reconhecidos em sua equipe: Rita Zart é a autora da trilha musical e Tiago Bello fez o Desenho de Som.
Juliana Rojas consolidou sua obra nos últimos anos. Os trabalhos solo da cineasta incluem os premiados curtas “O Duplo” e “A Passagem do Cometa”, e o longa “Sinfonia da Necrópole”. Com Marco Dutra, dirigiu os curtas “O Lençol Branco” e “Um Ramo” e os longas “Trabalhar Cansa” e “As Boas Maneiras”.
Sara conta que foi criando um elo muito próximo com a realizadora, pois explica que o seu tipo de cinema, com filmes mais reflexivos, é o que a Dezenove Som e Imagens acredita. “Festivais nacionais e internacionais servem de muito suporte para o lançamento. A produtora está sempre concentrada em realizar esse cinema mais alternativo.”
“A importância do cinema de Juliana Rojas para a cinematografia brasileira é imensa. Essa cinematografia tem a importância pelo fato de ser realizada praticamente por mulheres. Claro que tem inclusões de outros gêneros, mas o importante é mostrar na sua quase totalidade essa composição feminina, o que nos ajuda nessa luta que temos diária, não só da inclusão, mas do respeito, da interação, da aceitação de toda e qualquer etnia. Feminina, gênero, de toda e qualquer manifestação da pessoa humana ser absorvida por esse cinema brasileiro dedicado à diversidade que esse país possui, que também é imensa e a partir dela, nós mulheres brasileiras, de toda sorte, realizarmos nossas obras não só como realização artística, mas educacional. O cinema como educação, como informação, como caminho de chegada, é o que estamos fazendo. A possibilidade de nós mulheres estarmos em qualquer lugar e no lugar que nós queremos”, ressalta a icônica produtora Sara Silveira.
Regional e universal
Reconhecido produtor desses pagos, o gaúcho Beto Rodrigues está na equipe do longa “Filhos do Mangue”, de Eliane Caffé, com a produtora Pé na Estrada Filmes. Filmado no Rio Grande do Norte, o projeto baseou-se em um livro do escritor Sérgio Prado, "Capitão", de 2011, sobre um homem branco explorador de catadores de caranguejos e traficante de mulheres.
Segundo Beto, o maior desafio da produção foi trabalhar com a maior parte do elenco de não atores e não atrizes locais, com os personagens tendo os próprios nomes dos habitantes, pescadores e catadores da Barra do Cunhaú. “A proposta era integrar a comunidade de forma orgânica. Construir esse universo fabular integrando a memória dessas pessoas dentro dessa narrativa, trazendo um certo grau de improvisação nas falas”, explica o produtor.
“É bom entender que essa história tem muito a cara, o perfil, do audiovisual hoje, no Brasil e no mundo, porque mesmo que a gente conte histórias muito locais que busquem uma tratativa, uma narrativa universal, elas cada vez mais integram os profissionais, os fazedores de audiovisual de diferentes regiões.” De acordo com Beto, esse é um longa que teve na sua equipe e no seu elenco representantes de sete estados brasileiros: Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e gente de quatro estados do Nordeste (Bahia, Pernambuco, Ceará e, principalmente, Rio Grande do Norte).
O último, estado em que foi rodado o filme, é onde está sediada a empresa produtora, uma parceria com empreendedores do Sul e empreendedores do Rio Grande do Norte. “Esse título tem essa característica de universalidade, de transposição de fronteiras regionais e estaduais, e dessa integração que tem hoje o audiovisual no mundo, de trabalhar com os estranhamentos culturais, com as diferenças linguísticas, comportamentais, integrá-los e mostrar que o mundo hoje é uma grande aldeia”, avalia o realizador.
O tradicional evento cinematográfico do Rio Grande do Sul ocorre no Palácio dos Festivais até 17 de agosto, próximo sábado, quando serão conhecidos os vencedores dos Kikitos entre os sete longas brasileiros.
Mais informações pelo site do evento: www.festivaldegramado.net.
Competição dos Longas-Metragens Brasileiros
10/08 O CLUBE DAS MULHERES DE NEGÓCIOS | São Paulo | Direção: Anna Muylaert
11/08 ESTÔMAGO 2: O PODEROSO CHEF | Paraná | Direção: Marcos Jorge
12/08 OESTE OUTRA VEZ | Goiás | Direção: Erico Rassi
13/08 PASÁRGADA | Rio de Janeiro | Direção: Dira Paes
14/08 CIDADE; CAMPO | Mato Grosso do Sul e São Paulo | Direção: Juliana Rojas
14/08 FILHOS DO MANGUE | Rio Grande do Norte | Direção: Eliane Caffé
15/08 BARBA ENSOPADA DE SANGUE | São Paulo | Direção: Aly Muritiba
Edição: Katia Marko