Uso de plantas geneticamente modificadas vem sendo impulsionado para ocupar área agricultável
Nesta semana, em que pese o show oferecido por nossas fontes de orgulho na olimpíada, quando aquelas pessoas pretas, pobres, periféricas e literalmente marginalizadas pela sanha do neoliberalismo, demonstraram ao Brasil e ao mundo que basta um pequeno impulso para que nosso povo se agigante em realizações, esta coluna voltará a tratar das plantas geneticamente modificadas e da instância a partir da qual seu uso vem sendo impulsionado de forma a ocupar de forma massiva a maior parte da área agricultável neste pais.
Não se trata de revisar conteúdos já expostos, mas sim de reabrir uma discussão de interesse coletivo, motivada por correspondência do Dr. Fábio Dal Soglio. Professor titular aposentado da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que atuou na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) entre 2006 e 2007, como especialista em agricultura familiar, por indicação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), ele escreveu o que segue:
“Quem de fato garante que não há riscos na liberação de Organismos Geneticamente Modificados no ambiente?
Atuando como especialista em agricultura familiar, durante algum tempo, percebi que, diferentemente do que se espera de um espaço acadêmico multidisciplinar, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) não se apoia em evidências científicas de diferentes áreas do conhecimento.
Sua composição e normas de funcionamento foram definidas para dar um caráter de relativa segurança das biotecnologias liberadas, com algum respaldo científico, e não para cumprir o que promete, ou seja, a “formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança relativa a organismos geneticamente modificados (OGMs)”.
Para a CTNBio, não há problema na liberação para o uso de tecnologia para a qual existam indícios de possíveis danos ambientais irreversíveis, ao contrário do que estabelece o princípio da precaução, que consta no decreto que a regulamenta. Após análise de pareceres de alguns de seus membros, a decisão ocorre pelo voto, num colegiado de doutores que atuam, majoritariamente, na área da biotecnologia. Assim, não é difícil prever o resultado.
Argumentos com base em aspectos sociais, e até ambientais, considerando que o ambiente é onde vivemos, não são aceitos nos debates acadêmicos, que eventualmente acontecem nas reuniões das diferentes subcomissões da CTNBio. Isso impede que especialistas de áreas sociais e ambientais realmente possam contribuir ns avaliações de riscos das liberações.
Um exemplo claro é a liberação de variedades de plantas resistentes a herbicidas. Estas estão sendo liberadas mesmo com fortes indícios de que os produtos prejudicam a saúde de agricultores e consumidores; que os modos de aplicação provocam deriva e, portanto, prejuízo a áreas próximas, sejam de proteção ambiental ou de outros cultivos; que a utilização desses produtos em áreas extensas e por muito tempo seleciona alvos resistentes; e até de que, muitas vezes, não se provou a segurança desses eventos de transgenia, ou da combinação desses em um mesmo genoma.
A posição dos especialistas que buscam evitar riscos indiretos à saúde humana e animal, e ao ambiente, é, em geral, desconsiderada na CTNBio, pois estariam fora das suas atribuições. A maioria dos especialistas representam áreas que têm interesse direto no desenvolvimento de OGMs, e consideram que a ausência de comprovações de determinados riscos, por parte das empresas proponentes, é prova de que não há risco. Caberia a quem se preocupa com riscos potenciais demonstrá-los cabalmente, o que é uma inversão do ônus da prova que uma tecnologia é segura como entendido no princípio da precaução.
Para a CTNBio, não se deve considerar aspectos não diretamente ligados aos eventos de engenharia genética. A Comissão entende que riscos indiretos devem ser discutidos em outra esfera, a do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS). O CNBS, que é composto pelos Ministros de Estado, é onde os pedidos de liberação comercial de OGMs deveriam ser analisados, a pedido da CTNBio, e com base na “conveniência e oportunidade socioeconômicas e do interesse nacional”. Só que isso não acontece. Não há, nessa esfera política, espaço para discussão e defesa das divergências sobre aspectos das liberações em avaliação.
Temos também que considerar que, mesmo sendo o órgão que deveria formular a política nacional de biossegurança, a CTNBio não se envolve na verificação de se as tecnologias que liberou foram, ou não, de fato seguras. A avaliação continuada das liberações aprovadas deveria, por retroalimentação, aprimorar a compreensão do que é biossegurança. Assim, seria possível reavaliar as liberações, ou, em alguns casos, buscar-se soluções para remediar os impactos ocorridos. Novamente, tendo como exemplo a liberação de plantas resistentes a herbicidas, vemos, hoje, como um grande problema, o impacto da utilização de herbicidas tidos como seguros, à saúde humana e animal, ao ambiente, e até a própria produção agrícola, visto a perda de variabilidade genética e de autonomia na produção de sementes, e a seleção de plantas espontâneas resistentes a esses produtos, como fora previsto por muitos cientistas e especialistas. Da mesma forma, o impacto da liberação de variedades transgênicas de milho que, como previsto, contaminaram variedades crioulas. De nenhuma forma os danos ocorridos modificaram a perspectiva dos que promovem essas tecnologias, pois a CTNBio continua aprovando OGMs que seguem as mesmas lógicas dos que já se provaram prejudiciais.
Assim, sem capacidade de agência política de diferentes áreas do conhecimento, e até de diferentes segmentos da sociedade, no CNBS, a participação na CTNBio das áreas do conhecimento não diretamente envolvidas no desenvolvimento de OGMs, passa a ser uma perda de tempo, e de saúde para os seus especialistas. A multidisciplinaridade na comissão não é entendida como a busca de indícios de riscos na liberação de OGMs, mas sim como uma disputa de pontos de vista, onde a maioria sempre vence. Portanto, ou mudamos a lei sobre biossegurança, para que inclua uma maior perspectiva de justiça social e ambiental nas análises ditas “técnicas” da CTNBio, ou para que se permita uma maior participação política de diferentes segmentos da sociedade no CNBS. Uma vez liberado um evento, não é mais problema nem da CTNBio, nem do CNBS. E, se isso é assim, então de quem é esse problema?” (Prof. Dr. Fábio Dal Soglio)
Penso que esta é uma colocação tão importante que merece ser registrada como questão de interesse público. Vejo naquelas palavras do Dr. Fábio Dal Soglio a expectativa de que em algum momento os esforços deste governo em apoio ao fortalecimento da educação e da consciência nacional realizem, como o fizeram aqueles/as atletas brasileiros/as que surpreenderam o mundo na Olimpíada de Paris, a superação de bloqueios e improbabilidades que nos capturam e mantém como nação subordinada, conformada com o cabresto e os problemas que nos são impostos.
Uma música? A Procissão do Gil.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo