Rio Grande do Sul

CINEMA

Do palco para a tela: atuadores sobem a Serra

Filme híbrido sobre trabalho do Ói Nóis Aqui Traveiz concorre no Festival de Gramado

Brasil de Fato | Gramado |
Paulo Flores em cena do longa que retrata história e cotidiano do Ói Nóis Aqui Traveiz - Foto: Diogo Vaz

A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz vai subir em um palco diferente desta vez. E será com um gosto de estreia especial! Só que a mágica não vai acontecer quando as luzes se acenderem, mas assim que se apagarem.

O filme híbrido “Um corpo só”, assinado pelo cineasta Cacá Nazario, foi selecionado para a Mostra Competitiva de Longas Gaúchos do 52º Festival de Cinema de Gramado. O evento tem sua abertura na noite desta sexta-feira (9) na Serra Gaúcha, com sessão hors-concours (fora de competição) de “Motel Destino”, longa de Karim Ainouz estrelado por Fábio Assunção, que concorreu à Palma de Ouro em Cannes neste ano.

A exibição de “Um corpo só” ocorre na tarde de quinta-feira (15), às 14h, no Palácio dos Festivais, seguido de debate da equipe com o público, às 16h, na Sociedade Recreio Gramadense. Os atuadores estarão presentes na sessão. Vai ser a primeira vez que a tribo das apresentações de rua e sem palco clássico, estando próxima das plateias, vai “ocupar” o pomposo ambiente turístico do município.

O tradicional evento cinematográfico do Rio Grande do Sul ocorre até 17 de agosto na Serra Gaúcha. Os vencedores entre os longas gaúchos serão conhecidos em cerimônia na noite anterior (16), ocasião em que ocorrem as homenagens a Jorge Furtado (Troféu Eduardo Abelin), a Nelson Diniz (Troféu Leonardo Machado), Aletéia Selonk, José Maia e Alexandre Mattos Meireles (Prêmios Iecine de Inovação, Legado e Destaque, respectivamente).

Programação do fim de semana

A programação do festival conta há oito anos com o Conexões Gramado Film Market, braço do evento dedicado ao mercado audiovisual. A programação já começa na manhã deste sábado (10). Às 11h, no Museu do Festival, ocorre um painel sobre comunicação pública e Cota de Tela com representantes da EBC e Ancine.

Até sexta-feira (16), a iniciativa manterá suas tradicionais atividades como palestras, workshops e rodadas de negócios. Nomes como o do cineasta Ansgar Ahlers e da produtora Mariëtte Rissenbeek (ex-diretora do Festival de Berlim que receberá o Kikito de Cristal) são algumas atrações desta edição. 

E a competição dos curtas gaúchos ao Prêmio Assembleia Legislativa ocorre a partir das 13h no sábado e domingo (11). São 16 produções que concorrem aos 11 troféus. Todos os títulos selecionados estão relacionados ao final do texto.

A cerimônia de premiação ocorre na noite de domingo, no Palácio dos Festivais, junto com a homenagem ao multiartista Álvaro RosaCosta, que receberá o troféu Sirmar Antunes.

Mais informações pelo site do evento: www.festivaldegramado.net.

Unidade artística desconstruída e reconstruída


Pôster da obra tem assinatura do talentoso artista Leo Lage, profissional disputado nestes pagos / Arte: Leo Lage

Misto de registros documentais com narrativa ficcional, “Um corpo só” retrata os processos criativos do teatro de vivência promovido há 46 anos pelo grupo. Em primeiro plano, estão Tânia Farias e Paulo Flores, mesclando suas vidas pessoais com a encenação dos diálogos escritos por Jerri Dias para o roteiro da produção.

Focado em evidenciar a linguagem corporal na interpretação, o título é ousado no formato narrativo e brinca com os gêneros, tensionando as expressões artísticas cinema e teatro, flertando com o onírico. “Tem que arriscar, para não se repetir. Acho que há um grau de risco. Eu prefiro errar às vezes a não tentar. Tu não precisas sempre estar no naturalismo para fazer cinema”, reflete o diretor Cacá Nazario.

O cineasta conhecia a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, via Paulo Flores, desde a década de 1980, quando cursou o Departamento de Arte Dramática (DAD) da UFRGS. O ator também participou de um curta do diretor (“Júlia”, de 2006).

Nazario participou da militância política no final dos anos 1970, quando era estudante do Colégio Julinho, em Porto Alegre. “Meu cinema tem ligação com política. Não política partidária, mas com rigor estético, por isso eu gosto do Ói Nóis, eles não fazem política como um panfleto.” O realizador fez um documentário sobre o Cio da Terra, ocorrido em 1982.

Dessa forma, o diretor tinha um projeto antigo de produzir um documentário com o grupo, tendo filmado os registros, já com o diretor de fotografia Bruno Polidoro, no começo da década de 2010. A ideia era viabilizar via Fumproarte, e não ocorreu.

Em 2018, depois de lançar o premiado curta Secundas (2017), retomou a ideia de trabalhar com Paulo Flores. O contexto sócio-político brasileiro, com perseguições a artistas, cientistas e professores (episódio da QueerMuseu está presente no filme), impulsionou a ideia. O projeto "Meyerhold" foi contemplado, então, em edital do FAC/RS no ano seguinte, com um orçamento de R$ 500 mil, para o que seria inicialmente somente um documentário.

Durante a pandemia, Cacá e o montador Matheus Piccoli puderam pesquisar imagens de arquivo, pois o acervo de quatro décadas da Tribo foi digitalizado após um prêmio da Petrobras. Nesse meio-tempo, o filme se tornou um híbrido com potência teatral.

Com somente duas locações (a sede da Terreira na Capital e um sítio em Itapuã), o longa também explora a ideia de territórios culturais, falando do “teto e do chão” da Tribo e relacionando ao Teatro-Oficina de São Paulo, o que se configurou em uma homenagem a Zé Celso Martinez-Corrêa.

Diferentes camadas narrativas

O roteiro contou com a consultoria de Emiliano Cunha e Joel Pizzini. Além da trajetória do Ói Nóis, outra camada da narrativa é a relação do Paulo e da Tânia, conforme Nazario destaca: “As duas camadas já estavam costuradas no roteiro prévio, com diálogos e tudo”.

Segundo Piccoli, o maior desafio na montagem de “Um corpo só” foi “conseguir misturar uma série de linguagens audiovisuais diferentes de forma fluida e que contribuíssem com ainda mais camadas na narrativa”. O profissional lembra que a obra traz teatro, política, história, utopia, mas também relações humanas e de cinema.

Foi vislumbrando a troca desse casal em cena que surgiu o título para o longa, que sempre é difícil para o diretor e este foi ainda mais trabalhoso: “É porque há, como chamo, uma passagem de bastão. Começa o filme com a história do Paulo e do grupo, porque quem tinha que contar era ele, que foi fundador. E quando entra a Tânia, ela entra com uma força tal, que até o diretor de fotografia que me chamou a atenção... Isso acontece em um set de filmagem”.

Para o cineasta, há dois protagonistas: “Eles tiveram uma relação de 20 anos que perpetuaram. Entrei e pedi permissão para entrar. E tinha um conflito ali. Por que quero colocar esse conflito? Porque em uma cena de DR (discussão do relacionamento) no sítio, ela fala no diálogo que quer caminhar sozinha: ‘Não sou um corpo só’. Aí eu achei o título”.

Cacá Nazario conta que ficou tão encantado com a atriz que agora quer produzir um documentário somente sobre a Tânia: “Ela merece! Ela é uma leoa, adoro”. De fato, a força e a visceralidade da atuadora são reconhecidas pela cena local e ganham uma dimensão bem instigante com a forma que o diretor e equipe exploram suas expressões na linguagem audiovisual.

Realidade e ficção


Tânia Farias tem aspectos biográficos seus explorados no roteiro da produção / Foto: Bruno Polidoro

Já Tânia relata que a experiência com cinema foi incrível, que aprendeu muito, mas que de início só pensava nas dificuldades da realização, porque ela e Paulo Flores estavam recém-separados e a proposta de Cacá era justamente fazer um filme sobre eles e a separação.

“Lembro que a primeira vez que a gente leu o roteiro em voz alta foi bem difícil para mim, porque basicamente as partes em que eu e o Paulo discutíamos... Muita coisa daquele texto é ficção, coisas que eu nunca diria ou disse para ele, e vice-versa. Mas também muitas coisas são fruto da pesquisa, cuidado e percepção do Cacá e do roteirista sobre como a gente via e pensava as coisas. Tem um misto bem interessante ali. Eu achava só que ia ser muito difícil fazer. E, de repente, me percebi sentindo muito prazer de fazer, desejando fazer mais cinema, me envolvendo mais”, diz a atriz.

Ela ainda elogiou o profissionalismo de toda a equipe, citando Polidoro e a produtora Cris Reque. “Mas não é um filme fácil, é cheio de linhas muito finas e às vezes quase invisíveis entre a realidade e a ficção. Acho que foi, acima de tudo, um grande prazer e um transbordamento de amor enorme de fazer esse filme com o Paulo, que é uma referência profunda e maravilhosa, é talvez uma das pessoas mais importantes da minha vida. Que alegria ter chamado ele de meu companheiro e meu amante, mas é um companheiro da vida. A gente tocou e construiu, toca e constrói muitos sonhos todos os dias juntos... E que alegria poder chamá-lo de meu amigo, viver esse filme com ele foi sensacional”, recorda Tânia.

Sobre o final do filme, o cineasta reforça que queria deixar leituras abertas: “Não ter isso da mensagem. O cinema não pode se tornar só texto, ficar só no roteiro. Aí temos a literatura, a dramaturgia do teatro. Cinema é imagem e som em um recorte de tempo. A arte não manda mensagem”.

“Entendo que, contemporaneamente, não existe essa diferenciação ‘documentário x ficção’. Apesar do termo “filme híbrido”, penso que toda narrativa é uma grande ficção e o resto são linguagens estabelecidas. Se pensarmos em como são produzidas as fake news, são mentiras contadas em uma linguagem que aprendemos a ler como ‘verdade’, e isso já torna, para alguns, a ficção em fato”, explica o montador. “Esse foi o cerne que conduziu o processo de montagem até a versão final do filme”, completa Matheus Piccoli.

Mostra Competitiva de Longas-Metragens Gaúchos

12/08 ATÉ QUE A MÚSICA PARE | Antônio Prado, Nova Roma do Sul, Nova Bassano e Veranópolis | Direção: Cristiane Oliveira

13/08 MEMÓRIAS DE UM ESCLEROSADO | Porto Alegre | Direção: Thais Fernandes e Rafael Corrêa

14/08 A TRANSFORMAÇÃO DE CANUTO | São Miguel das Missões | Direção: Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho

15/08 UM CORPO SÓ | Porto Alegre | Direção: Cacá Nazario (sobre a Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz)

16/08 INFINIMUNDO | Lajeado, Santa Cruz do Sul e Sinimbu | Direção: Bruno Martins e Diego Müller

Mostra Competitiva de Curtas-Metragens Gaúchos

Sábado (10), a partir das 13h:

A UM GOLE DA ETERNIDADE | Novo Hamburgo | Direção: Camila de Moraes e Paulo Ricardo de Moraes

NATAL | Santa Maria | Direção: Alan Orlando

PASTRANA | Novo Hamburgo | Direção: Melissa Brogni e Gabriel Motta

CASSINO | Rio Grande | Direção: Gianluca Cozza

ZAGÊRO | Bagé e Porto Alegre | Direção: Victor Di Marco e Márcio Picoli

JANEIRO | Porto Alegre | Direção: Boca Migotto

CORRENTEZA | Porto Alegre | Direção: Diego Müller e Pablo Müller

NÃO TEM MAR NESSA CIDADE | Pelotas | Direção: Manu Zilveti

Domingo (11), a partir das 13h:

CHIBO | Tiradentes do Sul | Direção: Gabriela Poester e Henrique Lahude

FLOR | Esteio | Direção: Joana Bernardes

VIAGEM PARA SALVADOR | São Leopoldo e Porto Alegre | Direção: João Pedro Fiuza

POSSO CONTAR NOS DEDOS | Pelotas | Direção: Victória Kaminski

ENTREGA | Porto Alegre | Direção: Luiz Azambuja e Pedro Presser 

NOZ PECÃ | Itaqui e Porto Alegre | Direção: Aline Gutierres

ESTÁ TUDO BEM | Porto Alegre | Direção: Rodrigo Herzog

ENVERGO MAS NÃO QUEBRO | Porto Alegre | Direção: Tatiana Sager


Edição: Katia Marko