O Uruguai terá eleições presidenciais no dia 27 de outubro. É o primeiro turno. Se um dos três candidatos atingir 50% dos votos mais um estará eleito para substituir Luis Alberto Lacalle Pou. Caso contrário, o segundo turno será em 24 de novembro com os dois mais votados. Três candidatos disputarão as eleições e já estão definidos: Álvaro Delgado (Nacional, direita), Yamandú Orsi (Frente Ampla, esquerda) e Andrés Ojeda (Colorado, centro).
O Uruguai é o menor país da América do Sul, tem 3,6 milhões de habitantes, com perto de 3 milhões de eleitores. As eleições de outubro vão eleger também 30 senadores e 99 deputados. As pesquisas do Instituto Cifra, de Montevidéu, mostram que a Frente Ampla tem 47% das intenções de votos. Aqui, no Rio Grande do Sul, os “doble chapa” – eleitores que votam lá e aqui nas cidades fronteiriças – já estão se movimentando, articulando apoios e apresentando reivindicações, estudos e exigências para a região.
Gustavo de Mello, ex-chefe interino da Casa Civil, ex-chefe adjunto da Casa Civil e ex-presidente da Companhia de Artes Gráficas (Corag) no governo Olívio Dutra, é um dos articuladores e também um dos elaboradores de algumas das metas da região da fronteira. Advogado, filiado ao PT, nasceu em Santana do Livramento, tem 61 anos. Ele fala, nesta entrevista, sobre como são, vivem e aspiram os “doble chapa”. Confira:
Brasil de Fato RS - Como são as relações entre moradores das cidades gaúchas que fazem fronteira com o Uruguai?
Gustavo de Mello - A região de fronteira entre Brasil e Uruguai, especialmente nas cidades de Rivera e Santana do Livramento, apresenta uma realidade única e complexa que difere significativamente de outras regiões do país. A convivência entre brasileiros e uruguaios é marcada por uma integração profunda e harmoniosa, onde famílias de ambas as nacionalidades se entrelaçam, seja através de casamentos, filhos, ou mesmo atividades comerciais.
Essa convivência transcende as barreiras nacionais e cria uma comunidade binacional coesa e interdependente. No entanto, essa realidade social e econômica não encontra respaldo adequado nas legislações vigentes, tanto brasileiras quanto uruguaias, o que gera uma série de dificuldades práticas no cotidiano dessas populações.
BdF RS - Quais as grandes dificuldades das populações destas áreas?
Gustavo - As legislações laborais dos dois países, bem como os tratados internacionais e binacionais, frequentemente não refletem a realidade vivida pelos residentes dessas regiões de fronteira. A interpretação e aplicação dessas normas pelas autoridades competentes de ambos os lados muitas vezes se mostram descompassadas com a realidade local, criando barreiras burocráticas e legais que dificultam a vida das pessoas. Isso é especialmente evidente no setor da saúde, onde tanto os cidadãos quanto os profissionais da área enfrentam obstáculos significativos para acessar e prestar serviços de saúde de forma eficiente e integrada.
Essa convivência transcende as barreiras nacionais e cria uma comunidade binacional coesa e interdependente
A situação é agravada pela falta de um marco regulatório que considere as especificidades dessa convivência binacional. A ausência de normas claras e adequadas que facilitem a cooperação entre os sistemas de saúde dos dois países resulta em desperdício de recursos e em uma qualidade de vida inferior para os residentes dessas regiões. Os problemas enfrentados incluem desde a dificuldade de acesso a tratamentos e medicamentos até a burocracia envolvida na aceitação de profissionais de saúde de um país no outro.
BdF RS - Qual a grande proposta dos municípios para harmonizar e melhorar os serviços aos habitantes?
Gustavo - Diante da realidade atual, surge a necessidade de sensibilizar as autoridades competentes para a urgência de uma interpretação normativa que se alinhe com as necessidades locais. A proposta de um Plano Piloto, a ser implementado nas cidades de Rivera e Santana do Livramento, visa justamente a otimização dos recursos disponíveis em ambos os lados da fronteira. Este plano busca criar um modelo de integração que permita o uso compartilhado de instalações, profissionais e recursos de saúde, melhorando assim a qualidade de vida dos residentes dessas regiões. A implementação desse Plano Piloto não só facilitaria a vida das pessoas, mas também serviria como um modelo a ser seguido em outras regiões de fronteira.
A otimização dos recursos e a melhoria na prestação de serviços de saúde seriam benefícios imediatos e tangíveis para a população local e poderiam gerar um impacto positivo duradouro na convivência binacional. Portanto, a elaboração de um parecer jurídico que aborde essas questões é de extrema importância para orientar as autoridades na criação de um marco regulatório que reflita a realidade vivida nas regiões de fronteira entre Brasil e Uruguai.
A proposta de um Plano Piloto, a ser implementado nas cidades de Rivera e Santana do Livramento, visa justamente a otimização dos recursos disponíveis em ambos os lados da fronteira
BdF RS - Qual a necessidade mais urgente?
Gustavo - A região de fronteira, particularmente nas cidades de Rivera e Santana do Livramento, apresenta características únicas que demandam uma análise jurídica detalhada para enfrentar os desafios decorrentes da convivência e integração. Elaboramos um parecer jurídico sobre a situação, com ênfase nos aspectos legais e regulamentares que impactam a vida dos moradores locais, especialmente no setor de saúde.
A convivência harmoniosa nessas localidades é um fato consolidado ao longo de muitos anos. Famílias binacionais são comuns, e o comércio transfronteiriço é uma realidade diária. No entanto, a legislação vigente em ambos os países não está adequadamente ajustada para refletir essa integração, resultando em diversas dificuldades práticas.
BdF RS - Qual seriam os principais desafios?
Gustavo - O acesso aos serviços de saúde é um dos principais problemas enfrentados pelos moradores. A legislação brasileira, conforme a Constituição de 1988, assegura o direito à saúde a todos os cidadãos (artigo 196). No entanto, a falta de harmonização com a legislação uruguaia gera barreiras burocráticas. Existem tratados internacionais e binacionais que buscam facilitar a cooperação entre os países, como o Tratado de Assunção, que instituiu o Mercosul, e acordos específicos entre Brasil e Uruguai. Contudo, a aplicação prática dessas normas encontra dificuldades devido a interpretação rígida das autoridades.
Então, a Proposta de Plano Piloto em Rivera e Santana do Livramento visa enfrentar esses desafios, buscando sensibilizar as autoridades sobre a necessidade de uma interpretação das normas que facilite a vida das pessoas. O objetivo é otimizar os recursos de saúde, permitindo que os moradores possam ter acesso a serviços médicos de maneira mais eficiente e integrada.
BdF RS - Existem barreiras legais para a implementação de um Plano Piloto para estas regiões?
Gustavo - Para a implementação do Plano Piloto é necessário identificar as barreiras legais atuais e propor soluções. A análise deve considerar as legislações dos dois países do direito à saúde, da organização do SUS, organização e funcionamento dos serviços correspondentes. Também devem ser considerados os tratados do Mercosul para a área e os acordos bilaterais de saúde entre os dois países.
O objetivo é otimizar os recursos de saúde, permitindo que os moradores possam ter acesso a serviços médicos de maneira mais eficiente e integrada
É necessário também promover a harmonização das normas de saúde entre Brasil e Uruguai. Isso pode permitir a realização de novos acordos que autorizam a utilização conjunta dos recursos de saúde, facilitando o atendimento médico transfronteiriço. Adaptação das normas existentes para refletir a integração entre os dois países, criação de mecanismos de governança conjunta para a gestão dos recursos de saúde.
BdF RS - Quais as iniciativas imediatas que deveriam ser tomadas na área da saúde?
Gustavo - Criação de comitês binacionais de saúde, Protocolos de atendimentos conjuntos e Facilitação do reconhecimento de credenciais. Para resolver isso é preciso acordos de reconhecimento mútuo dos profissionais, simplificação dos processos de validação de credenciais, reduzindo toda a burocracia existente atualmente.
BdF RS - A implementação do Plano Piloto trará inúmeras implicações. Na sua visão quais são as principais?
Gustavo - Melhoria no acesso aos serviços de saúde, possibilitando aos moradores da fronteira atendimento mais eficiente, o que vai gerar mais qualidade de vida. Os recursos também serão aplicados conjuntamente, permitindo gestão mais eficiente, o que reduzirá desperdícios. Vai fortalecer igualmente a integração, harmonização das normas e criação de mecanismos de governança bilateral.
BdF RS - Como jurista, o senhor considera possível a adoção deste Plano Piloto com os novos governantes do Uruguai e com a participação ativa do Brasil?
Gustavo - A realidade vivida na fronteira entre Brasil e Uruguai exige uma abordagem jurídica inovadora e flexível. A proposta de um Plano Piloto em Rivera e Santana do Livramento, ampliando-se posteriormente para outras cidades, é uma oportunidade para enfrentar os desafios atuais e promover uma maior integração e cooperação entre os dois países. A análise das barreiras legais e a proposta de soluções práticas são passos essenciais para alcançar esse objetivo, garantindo o acesso eficiente aos serviços de saúde e melhorando a qualidade de vida dos moradores da região.
Nosso parecer jurídico aborda apenas uma parte da complexa questão da integração entre os dois países, focando principalmente no setor de saúde. Outras áreas, como o comércio e a educação, também necessitam de análise detalhada e propostas específicas para enfrentar os desafios decorrentes da convivência transfronteiriça.
Edição: Katia Marko