Em uma viagem pela sua própria história, o diretor Edson Ferreira revisita o legado do pai, um homem preto que fez dos olhares de afeto a sua escola de vida. Primeiro filme do cineasta capixaba a entrar em circuito comercial, “A Serena Onda que o Mar me Trouxe” chega a Porto Alegre nesta quinta-feira (8), na Cinemateca Capitólio (Demétrio Ribeiro, 1085), às 19h. Após a sessão de estreia, haverá um bate-papo com o público presente, com mediação do Coordenador de Artes Cênicas de Porto Alegre, o gestor cultural Jessé Oliveira.
O projeto inicial de um curta-metragem sobre um time de futebol amador de Brasília transformou-se em um longa documental que retrata o amor do pai do cineasta pelas pessoas, o impacto que ele causou naqueles com quem conviveu, e o legado que deixou, mesmo sem ser uma figura pública. No longa, Ferreira visita o passado do pai e redescobre a própria história e a da sua família.
O diretor comenta sobre as alterações na produção: “Este processo de mudança veio com a morte do meu pai. Daí comecei a repensar esta narrativa e a figura dele. Não só o técnico. O pai, o homem negro. Comecei a olhar mais para dentro de mim. A me ver com meu pai. E neste processo de revisitar o meu íntimo, fui atrás de histórias dele. Peguei fotos que eu já conhecia, mas comecei a olhar para elas com outro olhar. Com o olhar do meu pai. Que tinha um jeito de fotografar que nem imaginava. Ele tinha um feeling para a fotografia. E descobri coisas como, ele não aparecia nas fotos porque ele fotografava. Isto mudou o meu jeito de me ver, de me reconhecer. Como homem, como marido, como pai, como artista. Comecei a olhar para o Edson, no mais íntimo dele. Com as inquietações, desde a infância. E isto me ajudou a me redescobrir como homem e como homem negro.”
A primeira exibição oficial aconteceu na capital gaúcha, ao participar da quarta edição do Festival de Cinema Negro em Ação, em dezembro do ano passado. “O Serena é muito especial porque é o meu primeiro filme a ter distribuição comercial. Ele está inaugurando uma etapa fundamental na minha trajetória profissional, depois de 20 anos de carreira”, comemora Ferreira.
A obra já passou também por Salvador, Maceió, Vitória e João Pessoa. Sobre a volta a Porto Alegre, Edson Ferreira diz que tem as melhores expectativas de o longa ser tão bem recebido como em dezembro. “Porto Alegre tem um sabor especial porque foi a estreia mundial do filme em festivais”, destaca Ferreira, ao relembrar o primeiro contato com o público em relação ao título, que já demonstrava como seria o tom nas outras cidades.
“As pessoas saindo da sessão muito emocionadas, querendo conversar, me abraçar. Diziam que queriam ter conhecido o meu pai e eu sempre dizia, sim mas vocês o conheceram ao longo dos 73 minutos. Estiveram com ele”. O cineasta emociona-se ainda hoje com as reações e comentários daqueles que diziam que a primeira coisa que queriam fazer ao chegar em casa era dar um abraço no pai, ou telefonar. “Isso foi muito marcante”, revela.
Para Adriano Denovac (crítico de cinema, historiador e doutorando em História do Tempo Presente na Udesc, com pesquisa voltada para o Cinema Negro), “A Serena Onda…” é a sensibilidade do olhar do cineasta Edson para o pai. “Ao trazê-lo para o cinema provoca uma redescoberta, lançando novos olhares para o passado e o presente familiar, provocando sensações, nessas mesmas dimensões, em quem o assiste”, define.
“A Serena Onda que o Mar me Trouxe” ficará em cartaz na Capitólio até 14 de agosto, sempre às 17h30min. Com distribuição da Borboletas Filmes, a produção Filmes da Ilha foi viabilizada com recursos da Lei Paulo Gustavo, via Edital da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo (Secult-ES), direcionada pelo Ministério da Cultura, Governo Federal.
O filme do diretor Edson Ferreira marca o retorno às salas de cinema da Distribuidora Borboletas Filmes, trazendo ao circuito comercial o terceiro longa realizado por diretor negro, dentre os títulos que compõem o seu catálogo. A Borboletas Filmes é uma produtora e distribuidora de conteúdo audiovisual, voltada também para realização e gestão de projetos culturais, com expertise em temáticas identitárias.
“É muito gratificante circular nacionalmente com filmes que tratam sobre as nossas vivências enquanto indivíduos negros. E poder concretizar esse sonho dos realizadores, de chegar comercialmente em salas de cinemas no Brasil, é algo espetacular”, destaca a CEO da Borboletas Filmes Camila de Moraes. Também cineasta, a diretora acredita que juntos, em um coletivo, é
possível reescrever a trajetória do cinema nacional, no qual, até os dias de hoje, é muito complexa a circulação dessas obras. “Estamos muito empolgados em poder dialogar com o público sobre essa linda história de afeto”, comemora.
Por fim, Ferreira também comenta sobre o visível crescimento do Cinema Negro nos últimos anos no Brasil: “O Zózimo Bulbul falava que nós temos uma arma e nós vamos usá-la. Ele falava da câmera. Então, eu sinto muito que o Cinema Negro é um cinema de abrir câmera, como a gente sente. Inclusive no primeiro frame do filme tem uma cartela ‘Sinto, logo existo‘, que é uma filosofia Kemet, do Egito Antigo. Ao contrário do ‘penso, logo existo’, que também é importante, remete-se também para as artes, para o cinema. Então é uma coisa que a gente sente, vibra dentro da gente e extravasa filmando, atuando, pintando, performando, dançando… Eu tenho muito este sentimento de que o Cinema Preto é um cinema de sentimento, de ação, de ligar a câmera e fazer. Sei que temos uma necessidade muito grande de fazer todo um trabalho de background. Não é só filmar por filmar. Sinto que a concretude do cinema preto se estabelece no momento em que filmamos, em que a gente dá o REC, no
momento em que registramos corpos pretos, as inquietações que nós temos. Então, acredito no cinema preto em que eu olhe pro filme e diga que vontade deu de filmar isto, de mostrar o que está sendo mostrado. É isto que me faz acreditar neste cinema preto e pra onde este cinema deveria ir. É um cinema com alma”.
Edição: Vivian Virissimo