As eleições na Venezuela tem levado muitos de nós ao dilema sobre a democracia. Creio que o primeiro passo para a boa análise seja evitar o “movimento de manada”, antecipando-se a consolidação dos fatos e deixar de repetir defesas acaloradas para ambos os lados: há dois lados que defendem a sua visão e percepção democrática.
O segundo passo seria entender que a democracia de cada povo é resultado direto do seu processo sócio-histórico, vivido em cada território e, neste sentido, será sempre um processo latente e que gerará disputas acirradas em torno da sua conformação e destinos do país, por isso e neste sentido, os processos que regem a democracia norte-americana não é igual à brasileira, que por sua vez não é igual à britânica ou francesa. Tem elementos comuns, mas distantes em serem iguais.
Terceiro passo é compreender que o que está em disputa na Venezuela não são modelos, tipos ou a própria soberania popular, o que está em jogo são os rumos do país e a destinação de sua riqueza maior, portanto, nenhum dos lados entendem a Democracia Liberal como valor de uso. Ninguém tem elementos para afirmar quem ganhou estas eleições, há uma dupla acusação.
A oposição não pode ser mais golpista, não tem nenhum amor nem a democracia liberal, realizou o golpe contra Hugo Chávez e o manteve preso acusando-o de corrupção e roubo eleitoral, golpe que não se sustentou por insurreição popular e apoio militar. O atual candidato-presidente Edmundo González Urrutia, tem acusações que atuou na embaixada de El Salvador prendendo, torturando e matando, inclusive padres que ajudavam nas fugas de perseguidos do regime. Essa turma não tem amor a valores democráticos.
Elon Musk com muita naturalidade afirmou que vão desestabilizar e golpear onde for necessário para garantir o acesso às riquezas minerais. A crise econômica Venezuelana tem matriz e é produto de sanções econômicas onde inclusive foram roubadas as suas reservas internacionais, há um enfrentamento direto com as maiores potências do mundo.
A esquerda hegemônica no Brasil, há muito abdicou do conceito de poder popular e ruptura institucional revolucionária, o que Hugo Chávez conseguiu levar a cabo, ganhando cada embate político construindo capital político e social, consolidando uma ampla hegemonia dos princípios do Socialismo 21 inaugurado por ele. Já Nicolás Maduro, opera mais no campo do controle e da força, mas não é isso que incomoda a oposição venezuelana, os Estados Unidos, Javier Milei, Jair Bolsonaro, toda extrema direita no mundo e a mídia comprometida com status quo, mas sim o projeto que ainda representa o bolivarianismo para a América Latina. Se topasse entregar o petróleo e assumisse a agenda social liberal, sem problemas Maduro seria presidente, mesmo que fraudando eleições.
No campo das relações internacionais, sempre temos poucos elementos para vaticinarmos uma posição como absolutamente correta levando em conta os acontecimentos pontuais. Sempre procuro levar em consideração nas diferentes diferentes democracias e processos, o que contribui ou não para a multipolaridade internacional e o que dialoga com marcos para uma sociedade pós-capitalista. Desconheço experiência de transformação social que tenha sobrevivido ao seu próprio tempo, tendo como modelo a democracia liberal capitalista.
Sim, também temos nossos corações e mentes dominados pela intensa propaganda de valores como se universais fossem, como dizem diversos autores, nossa “mentalidade” também foi colonizada e a “decolonialidade” faz-se necessária para interpretarmos os fenômenos sociais do nosso tempo, com o rigor na interpretação da materialidade dos fatos, para resistir aos padrões e reelaborar conceitos e horizontes que foram impostas aos “subalternizados” desde os Impérios até os dias de hoje. Somos e pensamos também a partir dessa construção.
Eu conheci a Venezuela com Chávez ainda presidente, pude conviver e conversar com feirantes, camelôs, cooperativados, donas de casa e participar de Círculos de Base de professores universitários e campesinos. A Venezuela representa mais do que barris de petróleo, mas sim uma experiência de construção de um novo modelo político, fora do liberalismo, isso pode ser incompreendido, mas afirmou-se como uma possibilidade de futuro dentro e diferente do capitalismo. Isso sim é o grave para a extrema direita.
Nos 25 anos do bolivarianismo, foram 30 eleições e apenas duas foram reconhecidas pela oposição, sempre com denúncias de fraude. Quando a oposição venceu e teve maioria no parlamento, Chávez reconheceu e chamou a unidade, talvez falte a Maduro um pouco mais de Chávez, mas cada tempo tem seus desafios e a História há de julgar. Admitindo a tese de ditadura, o povo escolherá entre a de Maduro ou a teleguiada norte-americana, pois nunca mais abrirão mão do petróleo venezuelano.
O conhecimento sempre nos leva a ter mais dúvidas do que certezas, mas uma coisa é certa, nem María Corina Machado e nem Maduro espelham nossas inspirações democráticas, mas é sempre importante saber no moinho de quem estamos impulsionando.
Está difícil ter uma posição sólida, sim, estamos vivendo um massacre midiático, afeta a percepção de todos, mas até o momento não surgiram provas; temos denúncias, pesquisas que indicam a favor e contra, mas nenhuma prova contundente até o momento, talvez com a divulgação das atas, possamos ter evidências reais sobre a realidade, até lá temos um histórico importantíssimo de tentativas de golpe e dois horizontes e apenas a partir disso podemos nos posicionar.
* Alonso Coelho é graduado em História, especialista em Gestão Pública e mestre em Desenvolvimento Regional.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo