Rio Grande do Sul

fim de uma era

Van Gogh, bar que varava as madrugadas, vai fechar as portas após 65 anos de boemia em Porto Alegre

Dia 11 de agosto será a última vez que o icônico botequim da Cidade Baixa, em Porto Alegre, receberá clientes

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Cláudio Piovesani, que administra a casa desde 1993, vai se aposentar e entregar o imóvel alugado ao proprietário  - Ro Lopes / Rua da Margem

Anote aí: domingo, dia 11 de agosto de 2024, vai ficar marcado na história de Porto Alegre. 

Será o último dia em que estará de portas abertas o Van Gogh, um dos bares mais tradicionais da cidade e, certamente, o mais antigo da Cidade Baixa (bairro boêmio da capital gaúcha) ainda em atividade.

A bem da verdade, o bar e restaurante localizado na esquina da Rua da República com a Avenida João Pessoa – tido como o melhor fim de noite – faz parte da história de uma cidade que não existe mais.

Durante décadas, foi refúgio de boêmios que não se rendiam ao inexorável passar das horas durante a madrugada, até avistar o raiar do Sol por trás da silhueta das árvores do Parque da Redenção. 

Igualmente, acolhia quem buscava apenas matar a fome fora de hora (era famosa a fumegante sopa de capeletti, ideal para afugentar a ressaca).

Já faz tempo, Cláudio Piovesani, de 65 anos (a mesma idade do bar), que administra a casa desde 1993, pensava em baixar as grades de ferro do Van Gogh de forma definitiva. 

Ele explica que a noite já vinha mudando de perfil desde meados da década passada. 

Não bastasse a crise da economia, que esvaziou os bolsos dos clientes, o horário restritivo imposto pela prefeitura, a partir de 2014, obrigou a maior parte dos estabelecimentos noturnos da Cidade Baixa a encerrarem as suas atividades mais cedo. Sem contar a mudança de comportamento das novas gerações, menos propensas a esticar a noite. 

— A pá de cal foi a pandemia. Aí não deu mais para segurar — explica.

Cavalo branco

Conforme Cláudio, o bar surgiu em 1959 com o nome de White Worse (Cavalo Branco). 

Pouco tempo depois, mudou para Van Gogh por causa da admiração de seu fundador, Zé Catarina (o apelido é por causa da origem no estado vizinho), pelo  pintor holandês, um dos maiores da história da Arte.

— Foi Zé Catarina quem montou o bar. Isso tudo aqui é obra dele — diz Cláudio, apontando para o ambiente ao redor.

O mais incrível é que pouca coisa mudou no design do Van Gogh durante mais de seis décadas. 

É como se o local estivesse preso a alguma dobra do tempo, imune à folhinha do calendário. 

Como acontecia lá atrás, os frequentadores continuam protegidos da claridade vinda dos postes de luz da calçada por grossas cortinas vermelhas.

Cláudio preservou o ambiente de penumbra, mas pouca coisa ali é original, como as madeiras que forram as paredes. Em contrapartida, as cortinas foram trocadas, bem como as reproduções de telas de Van Gogh, como Autorretrato e Girassóis, penduradas nas paredes.

— Se desse uma repaginada, não seria mais o Van Gogh — justifica ele.

A localização geográfica do bar, próximo às paradas de ônibus da Avenida João Pessoa, com acesso às regiões sul e leste da cidade ao longo de toda a noite, ajudou a atrair clientes tardios e, com isso, criar a fama de pronto-socorro das almas. Mas não foi só isso.

— Depois que fechava tudo – bailões, casas noturnas e outros bares –, o pessoal vinha para cá. Sabia que estaríamos abertos e que haveria comida à vontade.

Tanto que, cedo, ali pelas oito da noite, o bar costumava estar quase vazio. Os clientes só apareciam por volta das 11. Quando dava três da madrugada, o salão começava a encher. Às quatro, estava lotado. Aos sábados e domingos, era comum o Van Gogh encerrar o expediente por volta do meio dia, depois de atravessar a madrugada de portas escancaradas.

Um sambista dormindo na cadeira

O local era frequentado por artistas nacionais que se apresentavam em Porto Alegre. Afinal, não havia muitas outras opções de bar e restaurante sem horário para fechar na cidade. Assim, depois dos shows, a nata da MPB – nomes como Alceu Valença, Jorge Benjor e Caetano Veloso – visitava o Van Gogh, como relata Cláudio:

— O Caetano veio duas ou três vezes, sempre acompanhado da turminha dele, com mais seis ou sete pessoas. Não sei como, a esposa [a empresária Paula Lavigne] descobriu o número do bar e ligava várias vezes durante a noite. Ele vinha atender o telefone fixo aqui, junto do balcão. Conversava um pouco com ela e, depois, voltava para a mesa.


Cláudio e Caetano Veloso, anos 2000 / Reprodução/Livro “A Porto Alegre Deles”, de José Luiz Prévidi

Em épocas mais antigas, a velha guarda também batia ponto, capitaneada por Lupicínio Rodrigues, o maior compositor de música popular do Rio Grande do Sul (falecido em 1974).

Estava sempre bem acompanhado, ao lado de gente talentosa da música do Sul, como Plauto Cruz, Túlio Piva, Darcy Alves, Zilah Machado e Lourdes Rodrigues, além dos jornalistas Paulo Sant’Ana e Kenny Braga. 

Outro amigo de Lupicínio que se achegava à esquina da João Pessoa com a República, quando estava em Porto Alegre, era o sambista carioca Jamelão, para muitos, o maior intérprete de sambas-enredo da história do carnaval brasileiro.

— Numa noite, depois de tomar uma sopa, o Jamelão dormiu sentado na cadeira — anota Cláudio.

Em tempos remotos, o Van Gogh mantinha um salão à parte (onde hoje está a cozinha), ainda menos iluminado do que o restante do bar, só para abrigar casais que desejavam ficar à vontade para conversas ao pé do ouvido e trocas de carinho.

Aliás, a prática era comum na vida noturna desses tempos idos. 

Nos anos 1960 e 1970, o bar Estudantil, na Esquina Maldita, por exemplo, tinha também um salão separado, com biombos junto às mesas, para assegurar privacidade aos namorados. No salão à meia luz do Van Gogh, não era diferente.

— Havia gente comprometida, que não queria ser vista acompanhada  e, por isso, preferia se esconder para namorar um pouco — registra Cláudio.

O garçom tangueiro

Como não poderia deixar de ser, célebres garçons passaram pelo Van Gogh. Vamos citar dois que fizeram história na noite de Porto Alegre. 

Um deles, Isake Plents d’Oliveira, era famoso desde os tempos da Esquina Maldita, entre 1973 e 1985, quando atendia os clientes do bar Alaska. Depois disso, vestiu o avental do Van Gogh até se aposentar, em 1988 (Isake faleceu em 2012).

Mais um garçom lendário do Van Gogh foi Clarel Silva, o Lel, que possuía um grande acervo de CDs de tango e, volta e meia, fazia cópias para presentear os clientes.

— Quando o movimento acalmava, Lel vinha até a mesa cantarolar algum tango bonito ou recomendar um intérprete para que a gente buscasse na internet — relata o músico Cristiano Hamssen, que, numa dessas, ganhou cópias de CDs do cantor argentino Edmundo Rivero.

Lel trabalhou no Van Gogh até sofrer um AVC, aos 86 anos, em 2010 (faleceu alguns anos depois).

Cláudio também tem um currículo de serviços prestados na área de bares e restaurantes. Ele é de uma família de descendente de italianos de Putinga, no Alto Taquari e rodou meio Brasil, trabalhando em restaurantes e churrascarias, antes de se radicar em Porto Alegre.

Isso aconteceu em 1980, quando abriu uma pequena lanchonete dentro de um posto de gasolina da Avenida Assis Brasil, com o primo Aldoir. 

— Foi por causa do Aldoir, por sinal, que fiquei em Porto Alegre. Tinha vindo visitar os parentes no interior e, antes de voltar para o Rio de Janeiro, dei uma passada na casa dele. Ele não me deixou ir embora. Fui ficando, e estou aqui até hoje — diz Cláudio.

A lanchonete durou apenas seis meses: o terreno do posto foi comprado pelas lojas Arapuã. Então, Cláudio e Aldoir adquiriram o Peter Pan, na Avenida Salgado Filho, perto da Santa Casa de Misericórdia, barzinho dançante que marcou época na área central da cidade.

Até então, era um restaurante que fechava às oito da noite. Os novos sócios montaram uma pista de dança com lâmpadas de luz negra, que emitem raios ultravioletas, muito usadas nas baladas das décadas de 1970 e 1980 para criar efeitos fosforescentes em roupas e objetos.

Para completar, instalaram uma jukebox, máquina de botar música com fichinhas. 

— Virou uma febre. O pessoal que trabalhava no comércio e nos escritórios do centro aparecia no começo da noite e a casa ficava lotada até altas horas da madrugada, de segunda a segunda — relembra Cláudio.

Quando Cláudio se casou, largou o Peter Pan para abrir uma lanchonete bem-comportada na Rua General Vitorino. Finalmente, no início dos anos 1990, depois que o casamento tinha acabado, assumiu o controle do Van Gogh.

Ele comprou o ponto de Valmir Meneghetti, um dos dois ou três gestores que sucederam Zé Catarina.

— Quando soube que estava à venda, passei para dar uma olhada, mas não fiquei muito interessado. Deixei meu telefone e o Valmir não parou de telefonar até me convencer a fazer o negócio.

Dor no coração

De lá para cá, foram anos e anos puxados de lida noturna. Até 2013, ainda contava com a parceria do irmão, Jair, com quem se revezava no atendimento. Desde então, segura o tranco sozinho.

— Dormir de dia não é igual a dormir de noite. Inverte o sistema da pessoa e, por isso, faz mal para a saúde — admite Cláudio.

O Van Gogh chegou a ter dez funcionários, entre garçons, cozinheiros e segurança, no início do do século 21. Hoje, o dono faz praticamente tudo sozinho, acompanhado somente da cozinheira Maria Garbinatto.

No auge, 30 mesas estavam espalhadas pelos 120 metros quadrados do salão. Com o tempo, Cláudio vendeu parte do mobiliário (sobrou metade das mesas), já que a capacidade estava mesmo ociosa. 

Do cardápio, ele preservou os pratos característicos do Van Gogh – a sopa de capeletti, a canja, o carreteiro e a massa bolonhesa. Acessórios como sanduíche aberto e de pernil, bauru ao prato, pizzas e fritas foram descartados.

— Não dá para manter estoques com pouco movimento. Quando eu peguei o bar, tinha até rim, que hoje não se encontra mais na noite.

Ele já havia colocado à venda o Van Gogh por R$ 500 mil, no começo dos anos 2010. Com a pandemia, baixou para R$ 100 mil. Até apareceu comprador, segundo ele, mas o proprietário do imóvel não quer mais saber de bares por ali. 

Assim, é muito provável que o destino do ponto seja alojar uma farmácia (mais uma!), confidencia Cláudio.

Prestes a se aposentar pelo INSS, a ideia dele é viajar para o interior, circular por aí, arejar a cabeça. Mas não descarta uma nova investida na vida noturna no futuro.

— Quem sabe, daqui uns dois anos, eu abra outro bar — diz, deixando uma fresta de porta aberta. 

Em seguida, Cláudio dá um suspiro:

— Dá uma dor no coração fechar o Van Gogh. É uma parte bonita da história da cidade. Conheci gente boa, e também gente ruim, como em qualquer lugar. Foi uma ótima experiência de vida. Vou sentir muita saudade — conclui.