Rio Grande do Sul

NOSSO BEM COMUM

'A mudança climática é uma manifestação de um problema civilizatório', destaca ambientalista 

Organizado pelo CAMP evento realizado neste final de semana reuniu movimentos sociais para debater a cidade que queremos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"A humanidade está caminhando cada vez mais para um cenário de não sobrevivência. Só superando o capitalismo é que nós vamos ter condições de plena de vida" - Foto: Katia Marko

Com o auditório do Plenarinho, da Assembleia legislativa do Rio Grande do Sul, lotado, o Centro de Assessoria Multiprofissional (CAMP) promoveu, na última sexta-feira (2), a abertura do Ciclo de Debates "Porto Alegre: Nosso Bem Comum”.

O painel “O desafio que nos convoca: mudança climática, democracia e inclusão no futuro de Porto Alegre” contou com a participação do ex-governador Olívio Dutra, o ambientalista Francisco Milanez e a doutora em Planejamento Urbano e Regional Betânia Alfonsin, e foi coordenado pela economista e conselheira do CAMP Lúcia Garcia. Evento também foi de celebração dos 40 anos da entidade, com uma abertura cultural com a cantora Renata Pires e o violinista Vladimir Rodrigues.

No sábado (3), a entidade realizou grupos temáticos. No dia 16 de agosto acontece uma Plenária final, das 18h às 19h30, no Plenarinho da Assembleia Legislativa, onde será lida e validada a Carta – Porto Alegre: Nosso Bem Comum, fruto dos debates realizados durante os dois dias.

Na abertura do evento o deputado estadual Leonel Radde (PT) destacou que depois do desastre climático de maio, o tema passou a ser pauta pauta central nos debates das eleições de 2024, frisando que a situação já vinha se agravando quando das enchentes do ano passado. “Infelizmente, precisou de uma tragédia para que essa pauta viesse à tona. Sabemos que é uma janela de oportunidades extremamente pequena e que se nós não aproveitarmos agora, tudo vai se transformando na normalidade, e as alterações que nós buscamos não são feitas. É assim que funciona. O Brasil, infelizmente, é sempre reativo, ele reage imediatamente, depois vai se passando o tempo, e vai se esquecendo.”

Segundo pontuou o parlamentar, o Rio Grande do Sul é um dos pontos centrais sempre vulneráveis por conta da sua localização geográfica. “Então, esse debate é extremamente importante. Porto Alegre está no centro do debate internacional e por isso é tão relevante esse evento organizado pelo CAMP”, afirmou. 

“Maior crime do Código Florestal foi tirar a definição de leito maior sazonal”

Na abertura de sua fala o ambientalista Francisco Milanez destacou as soluções simplórias que estão sendo bombardeadas sobre a questão climática. “Esse é o grande desafio que nós temos que enfrentar, não tem como uma comunicação simples e telegrafa que se usa hoje, falar de questões complexas. Obviamente que só o ambiente democrático pode dar conta de construir soluções complexas. A mudança climática é uma manifestação de um problema civilizatório, uma opção de desenvolvimento fracassada”, pontuou. 

Conforme ressaltou, o Brasil, em sua avaliação, é o país mais rico quando se trata de recursos naturais, como energia, água, biodiversidade, minérios. Ao mesmo tempo é o pátio de diversão de alguns interesses internacionais. “O que está em risco não é uma mudança climática, não é a próxima enchente, que certamente virá. É a nossa alimentação. Nós ainda somos, de alguma forma, o celeiro brasileiro.”

A desorganização climática é um crime contra a alimentação, frisou Milanez, afirmando que estamos trocando o maior regulador climático (pela quantidade de água) internacional, que é a Amazônia.


"O que está em risco não é uma mudança climática, não é a próxima enchente, que certamente virá. É a nossa alimentação", destacou Francisco Milanez / Foto: Rafa Dotti

É preciso atacar as causas das enchentes

Ao abordar a situação do Rio Grande do Sul e os eventos climáticos que vêm acontecendo nos últimos meses no estado, destacou que ás aguas chegaram muito rápido, sem que os rios dessem conta de drenar. Para ele, entre os pontos que contribuíram para isso é o desmatamento “Se houvesse a floresta, além de tirar uma parte que é absorver para o solo, renovar o lençol freático, ela garante que nós não tenhamos as três secas que nós tivemos nos últimos anos e que teremos nesse verão, provavelmente. Ela ainda atrasa a água que chega no rio dando tempo do rio escoar. Diminuiria muito a enchente”, expôs.

Milanez também chamou atenção para o Projeto de Lei (PL) 145/2024, que cria a Política Estadual de Apoio e Fomento ao Desassoreamento de rios, arroios, açudes, lagos, lagoas, lagunas e canais. De autoria do deputado Guilherme Pasin (PP), o projeto, segundo seu relator, tem como objetivo a prevenção e minimização dos efeitos e danos causados por enchentes, inundações e alagamentos no território gaúcho, bem como a melhoria da navegabilidade, da qualidade da água e da fauna aquática. 

Para Milanez o desassoreamento é o sintoma. “Se a gente parar com o que provocou o assoreamento, que chama-se erosão, o rio leva o assoreamento embora. Foi o que ele fez a vida inteira. A água criou os rios, criou as bacias dos rios, mantêm eles limpos há milhões de anos, muito antes da nossa estupidez chegar aqui. E eles funcionam como? Tem a mata ciliar que protege o rio de ser assoreado. Depois da mata ciliar tem a várzea.”

Segundo o ambientalista, a várzea é o leito maior sazonal. “Isso foi destruído no Código Florestal, silenciado. O maior crime do Código Florestal foi tirar a definição de leito maior sazonal. Nós temos dois tipos de problemas gigantescos envolvidos que pioraram muito essa enchente. O problema urbano e o problema rural. Enquanto nós mantivermos drenadas as várzeas urbanas e as rurais, nós vamos ter um grande agravamento dessa situação.”

Conforme frisou, não há sentido em dar incentivo fiscal para o desassoreamento, uma vez que já é uma atividade lucrativa. “Temos que investir hoje em replantar as florestas, as matas ciliares, revisar a nossa agricultura para o bem dos próprios agricultores”, pontuou. 

Porto Alegre, nosso bem comum

Betânia parabenizou os 40 anos de trabalho do CAMP. Na sequência explicou o conceito sobre os bens comuns. “Na discussão internacional sobre os comuns, as águas, as florestas, o ar que a gente respira, as praias, o conhecimento, são reconhecidos como bens que são de toda a humanidade. É uma discussão que rechaça a apropriação econômica desses bens por qualquer tipo de cerceamento. Nas cidades, os comuns são os espaços públicos, as ruas, os largos, as praças, os parques, as orlas, as matas urbanas, as árvores das vias comuns.”

Ainda, segundo ela, comum não é só o bem na sua materialidade, é também a sensação que as pessoas estabelecem. “É a legitimidade das pessoas que fruem desse bem em reivindicar o direito de participar dos processos de tomada de decisão sobre esses comuns. O comum é um princípio político, uma prática coletiva que coloca um bem na esfera do comum. Ele só existe com a participação e o envolvimento das pessoas de forma cooperativa amorosa reivindicando esse bem comum. Para a nossa discussão sobre Porto Alegre, essa ideia é fundamental”, ressaltou. 

Betânia fez um resgate do protagonismo da capital gaúcha nos momentos em que envolvimento e participação foram práticas cotidianas. “Um momento nos quais a cultura associativa e o sentimento de pertencimento à cidade colocaram as pessoas em movimento para reivindicar uma cidade para todos, para todas, para todes. O período de 16 anos da Administração Popular, que começou com a coragem de mudar do governo Olívio. Foi um período de uma experiência política muito intensa de construção do direito à cidade com o direito coletivo.”

Citou como exemplo as primeiras edições do Fórum Social Mundial e a experiência do Orçamento Participativo. “Éramos um laboratório a céu aberto de notáveis práticas humanas de tomada de decisão sobre a cidade. Esse ciclo é uma referência muito importante para nós. Só que a nossa realidade política mudou. Porto Alegre está perto de completar 20 anos de governos que progressivamente foram se afastando desse ideário para abraçar um ideário neoliberal. A partir do governo Marchezan e agora do governo Melo, a população porto-alegrense sofre toda a violência desse projeto neoliberal, que implanta aqui um modelo que prioriza a função econômica da cidade sob todas as funções sociais que ela deve ter. Privatizações, Estado mínimo, encolhimento do Estado.”


“As pesquisas mostraram que a mancha da enchente atingiu mais a população de menor renda e o povo negro na cidade. O racismo ambiental e a injustiça climática foram reforçados no pós-enchente” / Foto: Rafa Dotti

Racismo ambiental

“A gente teve um negacionismo climático absurdo do governo Melo nesse momento. Ele expôs a cidade aos efeitos catastróficos nessa enchente. Não fez a manutenção de proteção da cidade contra as inundações, nem do Muro da Mauá, nem dos diques, nem das casas de bombas, e destruiu a mata ciliar do Guaíba.” 

De acordo com ela, a pesquisa do Observatório das Metrópoles fez um cruzamento entre os dados do Censo de 2022 e a mancha da enchente. “As pesquisas mostraram que a mancha da enchente atingiu mais a população de menor renda e o povo negro na cidade. O racismo ambiental e a injustiça climática foram reforçados no pós-enchente.” 

Por outro lado, destacou Betânia, Porto Alegre ainda possui uma forte mobilização popular que conserva autonomia e dignidade para confrontar essas lógicas do governo. “Porto Alegre pulsa, é solidária, tem cultura de auto-organização e precisamos nos reconhecer. Resgatar essa cultura política e nós podemos contribuir para isso, inclusive com a renovação de repertórios para essas práticas. Essa eleição que se avizinha, coloca dois projetos em disputa. De um lado o projeto que está governando a cidade para poucos, fazendo da Administração Pública uma máquina dos interesses do capital. E de outro lado, o projeto que pretende lembrar à população que Porto Alegre é nosso bem comum e de implementar de forma radical o direito à cidade.”

A cidade é um indivíduo

Com sua frase célebre de que a política é uma construção do bem comum com o protagonismo das pessoas, o ex-prefeito de Porto Alegre, ex-ministro das Cidades, ex-presidente nacional do PT e ex-governador Olívio Dutra ressaltou que a cidade é um indivíduo. “Ela se muda, se altera.”


“Nós queremos a construção coletiva e solidária das coisas, inclusive da política. Essa construção coletiva não elimina a individualidade. A democracia não é um catecismo, uma obra pronta" / Foto: Katia Marko

Em sua intervenção resgatou o surgimento do Orçamento Participativo, sua construção, desdobramentos, como foi se perdendo e a necessidade de retomá-lo. “Tivemos essa iniciativa solidária, comum, coletiva, singular. É fundamental para a democracia que o orçamento público nos três níveis, antes de ir para os legislativos, passe por uma discussão com a cidadania. Vamos construir a possibilidade de retomar essas experiências, e fazê-las ir mais longe. Para a política ser aquilo que a gente sonha que deveria ser sempre, a construção do bem comum com o protagonismo das pessoas”, destacou.

Ao Brasil de Fato RS, Olívio destacou que o debate das mudanças climáticas é um tema de ontem, de hoje e é de amanhã. “A mãe natureza que é mãe de todos nós, não é mãe só de alguns. A democracia que também tem que ser vivida por todos e não só por poucos, e o Estado de direito democrático, republicano, que não deve ser propriedade dos governantes, dos seus amigos, dos seus familiares, dos seus partidários, dos seus financiadores de campanha. Tudo isso está sendo provocado por esse encontro”, pontuou. 

“Nós queremos a construção coletiva e solidária das coisas, inclusive da política. Essa construção coletiva não elimina a individualidade. A democracia não é um catecismo, uma obra pronta. É uma obra aberta e precisa sempre ser aperfeiçoada. Eu acho que aquela semeadura do Orçamento Participativo, ela pode ser retomada, aprofundada, aperfeiçoada e radicalizada.”

Carta – Porto Alegre: Nosso Bem Comum

A coordenadora do CAMP, Daniela Oliveira Tolfo, destacou que o encontro conseguiu reunir nesses dois dias uma diversidade grande de movimentos e organizações da sociedade civil, de vários campos de luta. “Temos a possibilidade de construção de propostas de políticas públicas para essa Porto Alegre democrática, para fazer esse enfrentamento a essa crise climática que está aí e todas as outras questões sociais e políticas e econômicas que envolvem a gente poder construir uma cidade do bem viver”

Segundo Daniela, a carta a ser lançada no próximo dia 16 de agosto será fruto da sistematização dos dois dias de encontro, tanto das falas dos painelistas no primeiro dia, assim como os depoimentos das pessoas dos movimentos sociais, e depois o aprofundamento que foi feito nas cinco rodas de conversa. 

O documento será enviado a todos os candidatos à prefeitura de Porto Alegre. A coordenadora pontua que uma das questões fundamentais da democracia é a participação social. “A gente espera que essas candidatas e candidatos respeitem esse espaço que foi construído por uma organização da Sociedade Civil com outras parcerias e levem em consideração, sim, e que coloquem isso em debate em outras esferas.”

Para Mauri Cruz, sócio e colaborador do CAMP, é preciso que Porto Alegre retorne ao seu papel de modelo de um projeto que supere o capitalismo e a necessidade da própria humanidade reencontrar um caminho de sobrevivência.

“A gente tem um olhar do mundo para Porto Alegre por causa disso, porque não foi só Porto Alegre que viveu essa experiência, o mundo viveu essa experiência a partir de Porto Alegre, a partir das experiências do Fórum Social. A humanidade está caminhando cada vez mais para um cenário de não sobrevivência e o capitalismo se aprofunda cada vez mais e só superando o capitalismo é que nós vamos ter condições plenas de vida, de qualidade, de respeito e dos direitos. Acho que isso está bastante combinado.”


Edição: Katia Marko