Antes de adentrar a porta do terreiro, o pai de santo Leandro Congo de Aganjú, 54, curva seu corpo em direção ao chão. Como um comprimento aos Orixás, ele toca o piso de madeira com a ponta dos dedos e, depois, beija a mão. O mesmo gesto, chamado de Agô, pedido de licença em iorubá, é repetido pelos filhos de santo do terreiro Ijobá Baratyê Shango Aganjú, localizado no Bairro Mathias Velho, em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre. Um grupo de cinco pessoas trabalha diariamente na limpeza e reconstrução da casa de religião que ficou 28 dias submersa na água durante as enchentes históricas que atingiram o Rio Grande do Sul.
O pai de santo caminha no salão, agora já sem o lodo, a lama e a desordem deixadas pelas águas. “Aqui é o assentamento de Oxum”, ele diz apontando para o chão. Mais adiante, mostra onde seria o assentamento de outros Orixás, como Ogum e Oxóssi. Sabe-se, de início, que todo chão de um terreiro é sagrado. No centro do espaço, uma viga de madeira sustenta a cumeeira, ponto central da energia, onde constituiu-se um “axé” referente àquela casa.
Uma imagem de cerâmica de São Miguel Arcanjo repousa neste mesmo lugar, com pedaços quebrados, mas de pé. “Ele foi quem segurou o nosso terreiro”, explica Leandro. De todas as imagens que compunham a casa, apenas quatro foram danificadas pela água que passou dos 2 metros de altura no interior do espaço. A estrutura de madeira, porém, ficou comprometida e a casa se tornou inabitável.
O Ijobá é um dos 254 terreiros totalmente destruídos pela enchente no Rio Grande do Sul, segundo o levantamento realizado pelo Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente (Nega), pelo Curso de Aperfeiçoamento Uniafro, ambos da UFRGS, e pelo Conselho do Povo de Terreiro. Somente em Canoas, a pesquisa mostrou que 69 casas de religião de matriz africana foram destruídas pelas enchentes, e 58 parcialmente destruídas. O estudo entrevistou pais e mães de santo que perderam seus lugares sagrados em mais de 40 cidades do Rio Grande do Sul, e levantou a informação de que 70% das autoridades dos terreiros planejam seguir no mesmo local. Outras 230 comunidades de axé desejam mudar de lugar.
Este é o caso de Pai Leandro e da promotora legal popular Fabiane Iara dos Santos, sua esposa, residente do Mathias Velho desde a infância. Há pelo menos três gerações, mais de cinquenta anos, a família de Fabiane vive na mesma casa, no bairro que, antes da enchente, era o mais populoso de Canoas. O terreiro, erguido em 2008 pelo casal, é uma casa que cultiva tanto o Candomblé Ketu, quanto o Batuque Gaúcho, de nação Cabinda. A junção é chamada de Bàratyê.
Pai Leandro explica que o fato de Canoas ser uma das cidades com mais terreiros atingidos não é por acaso. “Há bacias afro-religiosas muito antigas aqui, em especial no bairro Mathias Velho. As histórias das mulheres negras e dos terreiros é muito forte nessa região”, conta. O que acontece agora com o bairro é, segundo ele, um momento sem volta. “A Mathias passa agora por uma morte”, define. O silêncio que assola o bairro não é muito diferente do momento em que a água assolava o lugar, há cerca de três meses atrás. Dos mais de 43 mil moradores, uma parcela significativa ainda não conseguiu retornar para casa – seja porque a infraestrutura das residências não está mais segura, seja pelo medo de tudo se repetir.
Como é a realidade de muitos terreiros, a casa de religião é também a casa onde a família vive. A perda, então, foi dupla, ou tripla. No dia 4 de maio, quando a família precisou ser resgatada do segundo andar da própria casa pelo telhado, estavam deixando seu sagrado, seus Orixás. No retorno, pai Leandro conta que começaram a limpeza pelos quartos e cozinha, pois ele foi aconselhado pelas próprias entidades a fazer isso: “Eles nos disseram para primeiro cuidarmos de nós, e depois deles”, conta.
Quando a família entrou pela primeira vez no salão onde acontecem as festividades, obrigações, consultas de búzios, e toda a rotina do terreiro, o babalorixá surpreendeu-se. Tudo estava diferente, revirado pela força das águas, e com muito trabalho a ser feito, mas a parte onde os Orixás ficam posicionados dentro do terreiro, as vasilhas de cerâmica que pertencem a cada filho da casa, permaneceram intactas. “É o milagre do axé. Coisas que eram muito mais fortes se quebraram dentro de casa.”
Outro objeto que sobreviveu foi um perfume herdado da mãe de santo de Leandro, Mãe Gêci do Xapanã. Com cheiro de alfazema, e um aroma que, segundo ele, é único, o perfume era uma forma de proteção que a mãe passava sobre a testa em ocasiões especiais. Era como um alento de Oxum. O frasco foi encontrado entre as vigas de madeira do teto, e segue lá. Para Leandro, essa imagem trouxe força e significado, pois os ensinamentos afro-diaspóricos indicam esse movimento: olhar além dos fatos. É como se as raízes da família tivessem segurado o telhado. Ou ainda, protegido o teto sobre as cabeças, os Orís dos filhos.
Com alguns dias de trabalho, os filhos da casa moveram todos os objetos sagrados que ficavam no salão dos fundos para o segundo andar, onde antes a família morava. “Puxamos o axé para cima até encontrarmos o novo lugar onde será a casa”, explica Pai Leandro. Panos nas cores vermelho, azul, e branco já decoravam o espaço, assim como machados de Xangô enfeitavam as paredes do cômodo. De um lado, um canto já estava destinado à Oxum, com um grande espelho e imagens da divindade. De outro, estava Bará, através de uma imagem de Santo Antônio.
Rosane Almeida da Silva, 47, filha de santo da casa, pintava de vermelho uma prateleira que receberia as imagens de Iansã. Ela lembra que a acolhida do terreiro, 14 anos atrás, marca a sua vida. “Foi aqui que eu reconstruí a minha vida, terminei meus estudos, comecei uma graduação. O axé fez eu ver quem eu realmente era”, relembra ela, que hoje acolhe o babalorixá e Fabiane em sua própria casa.
Celvio Derbi Casal, 43, filho de santo da casa desde a adolescência, olha para a Sala de Búzios, agora vazia, e também enxerga sua própria vida nas paredes do terreiro. “Eu olho e lembro da época do meu TCC, do meu mestrado, do nascimento da minha filha. Todos os meus momentos importantes passaram por aqui.” A emoção que toma conta dos filhos da casa é um reconhecimento de que a história de um terreiro nunca é individual, sempre se trata da vida de muitos. E assim como os momentos difíceis são compartilhados, a força também é: “Quando eu vi o meu Baba firme, eu também fiquei”, diz o bibliotecário enquanto abraça Pai Leandro por longos segundos.
O medo de perder uma história
O Ilê Nação Oyó, no Bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre, abriu suas portas em 1964. Mãe Ieda de Ogum, 83, tinha 20 anos quando se “aprontou” na religião, isso é, passou pelo processo de iniciação, consagrando-se filha de Ogum. As paredes do terreiro são como um álbum de fotos de família, pois reúnem registros das festividades, matérias de jornal, fotos de Mãe Ieda, nesses mais de 60 anos de axé. A casa é um templo que reúne três linhas diferentes da espiritualidade afro-brasileira: a umbanda, a quimbanda – que cultiva os Exus e as Pomba-Giras –, e a Nação, também conhecida como Batuque Gaúcho.
Nos primeiros dias de maio, dez filhos da casa estavam encerrando uma obrigação religiosa no chão do terreiro, quando as notícias de que a enchente alagaria Porto Alegre começaram a chegar. Muitas pessoas ligaram para Mãe Ieda, pedindo para que ela deixasse a casa, porque a previsão era de que a água chegaria no bairro. Sem levar nada em mãos, às 2h da madrugada, a ialorixá deixou o terreiro acompanhada do filho da casa Dagoberto. “Quando chove, sempre alaga aqui na rua. Mas, nesse tempo todo, nunca entrou água dentro de casa”, lembra.
A mãe de santo foi para casa de uma irmã, em outro bairro, e conta que não conseguia falar uma palavra sequer nos dias seguintes à entrada da água em sua casa. Os sentimentos de choque, de dor da perda, e do desespero de não poder retornar para o Ilê, que é também onde mora com os filhos, e a irmã Fátima, acompanham Mãe Ieda até hoje. “Entrei em uma depressão profunda com tudo que aconteceu”, relata. “Foi horrível. Praticamente todas as minhas imagens foram danificadas. Tudo que era material, se foi. Encontrei meus búzios no portão. Os santos estavam flutuando na água”, conta Mãe Ieda.
Ao lado da avó, Maria Clara Silva, 18, relembra os momentos de tensão e as dificuldades para retornar ao espaço quando a água baixou depois de duas semanas. “Quando retornamos, o salão estava cheio de lodo. Os bancos dos tamboreiros estavam destruídos. Perdemos quatro freezers, três armários, duas televisões, microondas, os móveis da cozinha. A força da água derrubou a geladeira. As panelas boiavam nos corredores.” Quase três meses após a enchente, quando a reportagem do Nonada visitou o ilê, Mãe Ieda ainda aguardava a aprovação do auxílio de R$ 5.100 repassado pelo governo Federal a quem teve sua casa atingida. Toda a reconstrução da casa tem sido realizada com a ajuda da comunidade e dos filhos de santo.
Maria, e 12 filhos da casa, organizaram um mutirão que aconteceu durante todos os dias da semana, das 8h às 18h, durante cinco semanas ininterruptas, para realizar a limpeza. Só depois que tudo estava mais organizado, ainda que com bastante umidade, é que levaram Mãe Ieda de volta para casa. Os filhos estavam preocupados com a saúde da Ialorixá, e não queriam que ela acompanhasse o tamanho da destruição. A neta conta que temeu o que aconteceria depois das enchentes, e sentiu medo de que o Ilê não conseguisse se reerguer.
“Eu pensava em tudo que a minha vó construiu durante a vida, em toda a nossa história. Fiquei com medo que a nossa história fosse interrompida, e que a vó não pudesse voltar às atividades. Eu pensava que tudo não poderia ser perdido assim, que a enchente não poderia levar nossa história.” Embora grande parte das imagens tenha sido afetada, Maria conta que, quando abriu a cortina vermelha do quarto de santo, deparou-se com um Ogum firme, no mesmo lugar onde costumava estar, e sem danos.
Todos os objetos presentes em um terreiro carregam um passado inscrito. Não existe aleatoriedade, pois tudo tem um sentido para integrar esses espaços. As roupas de religião do Ilê Nação Oyó, por exemplo, têm mais de trinta anos de história. Mesmo tendo conseguido retornar para casa, o processo de limpeza ainda continua, e a recuperação das indumentárias está sendo um dos desafios para a comunidade.
Maria mostra um traje branco de Exú Rei das 7 Encruzilhadas, conhecido por todos como “Seu Sete”, ainda com marcas de lama no tecido rendado. Grande parte das roupas é feita com pedras, bordados, costuras delicadas, e precisam ser lavadas com cuidado. “Tenho roupas aqui desde quando eu era novinha”, conta Mãe Ieda. A neta relembra que a perda também se estendeu ao arquivo de fotos, onde estavam registros dos primeiros cruzeiros realizados para Seu Sete, uma festividade em homenagem ao Exu sempre realizada nos mês de agosto.
Neste ano, a festa vai acontecer, como em todos os outros, o que para Maria significa a continuidade e a força para seguir. O terreiro é uma das casas de religião parcialmente destruídas em Porto Alegre e que desejam permanecer no mesmo local, segundo os dados levantados pela pesquisa da UFRGS. Somente em Porto Alegre, 80 terreiros foram totalmente destruídos, e 19 parcialmente.
Dagoberto Souza de Oliveira, 66, filho da casa há 37 anos, acompanhou de perto o seu Ilê alagado, que é também sua moradia. Ele visitava todos os dias a porta da casa, checando se estava tudo bem. A água batia na altura do pescoço, mas ele insistia em cuidar, e gravar vídeos para a família, mesmo sem poder entrar. “Com chuva, com raio, não importava. Eu vinha todos os dias aqui na frente”, lembra. “Me emociono ao falar, porque eu nunca tinha visto isso na minha vida e não quero nunca mais ver. A gente perdeu muito, mas vai recuperar. O sofrimento fica.”
Ele conta que a comunidade de terreiro é a sua família. “A mãe Ieda é uma pessoa muito importante na minha vida, porque ela é minha mãe de santo e minha mãe mesmo, que eu não tive. O que eu passei de ruim, de bom, ela me ajuda e ajuda todo mundo. As portas são abertas para qualquer pessoa, não importa quem seja”, explica.
Desde 1991, Carlos Renaux, 62, firma seus pés sob o chão do Ilê de Mãe Ieda, que já foi sua avó de santo, e hoje é sua mãe. Ele explica que o terreiro é um espaço de aprendizado. “Na religião de matriz africana, tu estás sempre aprendendo. É uma faculdade de cadeiras infinitas. Essa é a magia e o segredo da religião. Ninguém sabe mais ou menos que alguém, mas tu tem que aprender”, reflete. “Muitas vezes, as pessoas vêem a existência dos terreiros, mas não sabem que tem toda uma história ali dentro”.
Após a limpeza do salão do Ilê, não demorou muito para que o espaço voltasse a ser como de costume: cheio de gente. Em um domingo de julho, cerca de 100 pessoas reuniram-se em mesas para um samba solidário de arrecadação. Mãe Ieda lembra desse dia com alegria e torce para a casa cheia logo se repita.
A antiga luta para permanecer
Para Pai Alfredo de Xangô, 65, os desafios de manter seu terreiro funcionando não começaram com as enchentes. Erguido em uma das casas coloridas da Travessa dos Venezianos, tombada como patrimônio histórico e cultural em Porto Alegre, o Centro Africano São Miguel Arcanjo, fundado em 1980, tem uma história que atravessa gerações, mantendo a memória negra e afro-diaspórica no bairro.
A Cidade Baixa é um território historicamente negro e berço de diversas manifestações culturais afro-brasileiras de Porto Alegre. “Lupicínio Rodrigues andava por essas ruas, o príncipe Custódio que assentou o Bará do Mercado também”, explica o Pai. Ele se refere ao Orixá reverenciado no centro do Mercado Público de Porto Alegre por praticantes do Batuque gaúcho. Um mosaico de pedras e bronze no chão marca a presença da divindade, que recebe diariamente cumprimentos e oferendas.
O babalorixá conta que seu primeiro pensamento quando a água começou a avançar o bairro foi “vamos salvar os santos”. Ele e a esposa, Ana Lucia Dutra Soares, 55, retiraram os Orixás do quarto em que ficam, próximo à porta de entrada da casa, e levaram para o segundo andar. Logo, eles precisaram deixar a casa, porque a velocidade de subida do nível da água foi rápida. “É difícil fechar a porta e sair. A nossa paz está aqui dentro. Atrás da cortina do quarto de santo, está um pedaço de nós, de quem nós somos”, diz Ana.
Embora tenham perdido alguidares, bacias, na parte religiosa, e todos os móveis da sala e da cozinha, o babalorixá explica que sua maior preocupação era que o sagrado fosse preservado. Além da casa na Travessa, o pai de santo também tem um outro espaço no mesmo bairro, onde ficam as entidades de umbanda e da quimbanda. Lá, os danos foram ainda maiores – tambores e santos foram perdidos; três armários, roupas, colchões e objetos pessoais também.
Após a limpeza, os rastros da enchente de mais de 1,5m seguem na casa: as marcas na parede, a umidade por todos os cantos, o inchaço das portas. Construídas no início do século XX e tombadas pelo município, as edificações da rua não podem ser modificadas sem autorização da prefeitura de Porto Alegre, o que deixa Ana e Alfredo em uma situação delicada – seguem convivendo com os danos da enchente, mas não podem fazer reformas significativas. Quando estão cumprindo uma obrigação, os filhos de santo passam de 3 a 7 dias deitados no chão do Ilê. “Como as pessoas vão ficar aqui com essa umidade toda?”, questiona Ana. A família ainda não tem dimensão sobre danos na estrutura da casa.
A principal fonte de renda de Pai Alfredo também ficou comprometida: o jogo de búzios. Ele semanalmente atende pessoas em sua casa, mas parou de trabalhar durante esse período. Embora tenha ido para o litoral gaúcho aguardar a água baixar, ele não conseguia desligar o pensamento sobre sua casa. Nunca havia ficado tanto tempo longe. Em setembro de 2023 e janeiro deste ano, uma chuva de menor proporção já havia alagado o terreiro e eles ainda estavam se recuperando desse momento. A preocupação do casal é que o cuidado com a Travessa dos Venezianos piore após a enchente. “Esses dias, um caminhão passou na rua lateral, o que é proibido, e sentimos a casa tremer”, relata Ana.
A luta para permanecer é antiga, pois, nos últimos cinco anos, a Travessa dos Venezianos passou a integrar a boemia do bairro. Estabelecimentos abriram no local e o som alto diário passou a ser uma realidade para o terreiro, interrompendo atividades cotidianas, como os jogos de búzios, e mesmo as festas de Batuque, que acontecem duas vezes ao ano. Com o tempo, vizinhos deixaram o lugar, e a Travessa, que antes era uma rua de residências, tornou-se quase inteiramente comercial.
Em 2024, Ana e Pai Alfredo são os últimos moradores da rua e contam, que mesmo antes da enchente, tiveram oportunidades de sair. Porém, não querem deixar este chão. O Centro Africano São Miguel Arcanjo é a casa de seus ancestrais, de seus filhos, e Pai Alfredo deseja que o neto Gael Ferreira, 2, possa ainda seguir tocando tambor com os pés plantados neste mesmo chão.
Terreiros ainda têm necessidades emergenciais
Porto Alegre, Canoas, Eldorado do Sul e São Leopoldo são as cidades com maior número de terreiros destruídos, segundo o levantamento realizado pelo NEGA/UFRGS e o Uniafro. No início de junho, esses grupos, junto ao Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul, entraram em contato com 457 terreiros. Pais e mães de santo de todo estado puderam relatar a situação de suas casas de axé, se haviam sido totalmente ou parcialmente destruídas pela enchente, se estavam sendo ponto de doação ou cozinha solidária, e se tinham necessidades emergenciais.
Desses, 254 terreiros foram totalmente destruídos; 176, foram parcialmente; e 27 atuaram como pontos de auxílio. No formulário, as autoridades religiosas de diversas cidades declararam precisar de itens como água, cesta básica, remédios, produtos e equipamentos de limpeza. “O mapeamento mostrou que as necessidades emergenciais ainda precisam ser atendidas”, explica Tanara Forte Furtado, coordenadora adjunta do Uniafro.
O mapeamento dividiu-se em 3 etapas: o preenchimento do formulário, a formação de voluntários para entrarem em contato com as autoridades religiosas, e a qualificação dos dados. As informações foram divididas entre terreiros totalmente atingidos, que se tornaram inabitáveis, e terreiros parcialmente, em que estruturas da casa foram danificadas, como portas, janelas e telhados.
“Para cada uma das situações, vamos precisar de políticas diferenciadas”, explica a pesquisadora. Os dados estão sendo levantados de forma conjunta com as entidades representativas das religiões de matrizes africanas no estado, também reconhecidas como comunidades tradicionais brasileiras.
Para Tanara, isso é importante, pois ela lembra que as pesquisas não podem ser “sobre”, mas precisam ser “com” os terreiros. A capacitação realizada para os voluntários do NEGA contou com a presença de babalorixás e ialorixás, como a Iyá Sandrali de Oxum, mãe de santo da Comunidade de Terreiro Sociedade Afrobrasileira “Ìlé Àiyé Orishá Yemanjá”, em Pelotas (RS), e autora do livro Pelo direito de ser quem sou: um ser coletivo (Zouk, 2022). Ela explica que a destruição desses espaços precisa ser tratada com seriedade, por autoridades políticas e pela sociedade, e ela reforça: “quando um terreiro é atingido, não é só o seu espaço, mas o entorno. São todos que frequentam. Cada um sempre tem vários em torno de si. É como um rizoma.”
Em julho, a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha realizou uma audiência pública sobre os impactos das enchentes de maio nas comunidades tradicionais de matriz africana e Povos de Terreiro, apresentando o mapeamento das comunidades atingidas e como reconstruir o patrimônio material e imaterial desses povos. O encontro foi proposto pela presidente da comissão, deputada Laura Sito (PT). Na ocasião, lideranças apresentaram uma carta aos deputados gaúchos para dialogarem com o Governo Federal a fim de estabelecer em que pedem “Um programa especial para a reconstrução dos Ylês do povo de terreiro e de outras comunidades tradicionais, conforme estabelecido no Decreto Federal 6040 de 2007.”
Para Sandrali e Tanara, é importante que as pessoas que auxiliem in loco na reconstrução, nas pesquisas, e demais projetos, sejam de axé. “As pessoas que pesquisam precisam entender o significado de encontrar um Bará dentro da água, de uma vasilha de Oxum estar cheia de lama e barro”, explica a mãe de santo. “É muito além de quanto recurso será necessário. É um trabalho de reparação”.
Segundo a ialorixá, a relação é indissociável entre as questões climáticas e as comunidades afro-religiosas. “Nós temos uma relação direta com a natureza, pois ela é o nosso altar. Não vivemos nosso sagrado sem a preservação dos rios, das matas. Por menor que seja um terreiro, ele é também uma extensão da natureza”, finaliza.
*Esta reportagem foi realizada com apoio do Pulitzer Center.