Olhar para ela de frente é sempre muito difícil. Geralmente, sua presença é encoberta por um véu
A gente corre, corre, corre e, quando menos espera, ela nos alcança. Para uns, o objetivo da vida é apenas evitá-la; para outros, brincar com ela é o que tempera a realidade. Normalmente, ela manda uma carta, avisa que está a caminho, dá tempo para o encontro com os amados, para o balanço do que se conquistou, para o desfrute dos últimos prazeres. Mas, inúmeras vezes, ela vem sorrateiramente, passa uma tranca, e o alvo cai sem saber direito o que lhe atingiu.
Na maior parte do tempo, negamos que ela está a caminho. Talvez essa seja a única possibilidade de seguir sonhando. Criamos histórias para explicar sua vinda, instauramos mitos, trançamos bordas num vazio de sentido, imaginamos um após, aceitamos promessas de que será melhor assim.
Esperamos que ela leve décadas para chegar, que venha sem pressa, que nos abrace quando estivermos dormindo, entregues, grisalhos e satisfeitos com tudo que fizemos. Mas, às vezes, ela se apressa, corre, alcança, devasta.
Olhar para ela de frente é sempre muito difícil. Geralmente, sua presença é encoberta por um véu, uma pequena narrativa inquestionável que traz um mínimo de conforto para o desamparo que ela desperta. Quando ela passa de raspão, sentimos o coração acelerar, a perna tremer e os olhos marejarem. É uma experiência que só sentem os que ainda não a encontraram, até porque os que já se depararam com ela não conseguem mais descrevê-la.
Muitas profissões trabalham incessantemente para afastá-la; outras lucram com ela. Outros ainda a evocam para sustentar um projeto de poder. Nos noticiários, acompanhamos sua chegada antecipada; ela vem pela margem, tem preferência por determinados corpos, cores e formas de amar.
Os que testemunham sua visita sentem um beijo gelado, uma mão invisível estrangulando a carne, uma rajada de vento que carrega a necessidade de mudança de planos. Frente a ela, somos impotentes.
Lembramos que os braços dos outros podem ser a única possibilidade de consolo. É no outro que conseguimos superar minimamente a ideia de que ela passou, pegou o que lhe pertencia e deixou todo o resto para trás.
O que ficou para trás um dia também receberá sua visita. Mas só um dia; todos os outros antes dele, ainda não. E é desse "ainda não" que a sua irmã, vida, se alimenta.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko