Cem dias atrás, 11 pessoas morreram e 15 ficaram feridas em um incêndio na pousada Garoa, na avenida Farrapos, entrada de Porto Alegre, que acolhia moradores de rua e pessoas em situação de vulnerabilidade. Apesar de todo o tempo transcorrido, a tragédia soma mais perguntas do que respostas. Neste domingo (4), três meses e dez dias depois dos fatos, não se sabe como está a apuração das responsabilidades. Nem mesmo se conhece a identidade de cinco dos mortos.
A pousada vendia vagas para a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), um órgão municipal. Funcionava com uma certidão que dispensa alvará o que, portanto, deixa a fiscalização menos rigorosa.
As mortes chocaram a cidade e levantaram questionamentos quanto à gestão de tema tão delicado pelo governo Sebastião Melo (MDB). Mas o drama na imprensa foi engolfado por evento ainda mais grave: as cheias que inundaram a Capital em maio.
“Até o momento, não tivemos acesso aos documentos oficiais”, explica a defensora pública Gizane Medina Rodrigues, do Núcleo de Defesa da Igualdade Étnico-Racial, da Defensoria Pública/RS. Diz que a Defensoria acompanha a apuração e que, em julho, requisitou aos órgãos responsáveis pela investigação do incêndio as informações sobre as conclusões preliminares, porém ainda sem retorno.
De acordo com ela, o órgão, junto com os movimentos sociais da população em situação de rua, realiza um levantamento de todas as pessoas atingidas pelo incêndio, especialmente aquelas pessoas que sobreviveram e tiveram sequelas físicas, perdas materiais ou abalo moral.
Extintores de incêndio com carga vencida
No Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH/RS), outra das instituições que busca esclarecimentos sobre o incêndio, o quadro não é diferente. Indagada sobre as responsabilidades tanto da pousada quanto da prefeitura, a conselheira Marina Pombo, representante do Conselho Regional de Psicologia (CRP), admite que essa informação permanece fora de seu acesso.
Quatro dias após o sinistro, uma visita da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, juntamente com outras entidades e parlamentares, às casas usadas como abrigo pela Rede Garoa constatou unidades em funcionamento sem ventilação, sem limpeza, com divisórias de madeira e fiações elétricas improvisadas. Além disso, todos os extintores de incêndio estavam com carga vencida. À época, a prefeitura comprava 320 vagas nas diversas casas da cadeia de hospedagem.
Presidenta da Comissão, a deputada Laura Sito (PT) conta que o Ministério Público está investigando o evento porém “em sigilo”. Explica que, dias atrás, recebeu informação do MP de que houve avanços no caso. Outra informação aponta que o contrato em vigência com a pousada não foi renovado.
“Vamos seguir lutando pela responsabilização dos culpados, principalmente para que o caso não caia no esquecimento e que parcela vulnerável da nossa população não sofra ainda mais com o descaso. Os danos às famílias e às pessoas precisam de respostas e é esse o nosso papel enquanto instituição, dialogar, fiscalizar e fazer a mediação para que tragédias como essa jamais se repitam”, prometeu.
Silêncio sobre as responsabilidades
“No momento, não há notícia de que a prefeitura, a Garoa ou a FASC estejam sendo responsabilizadas”, adianta Júlio Alt, presidente do CEDH-RS. Explica que “está havendo uma desmobilização do convênio com as pousadas Garoa”. Os moradores que recebem os "vouchers" migram, através do acompanhamento dos serviços de assistência, para o auxílio moradia ou para abrigos.
Naquele 26 de abril, fazia quase três anos que a Garoa, rede com 35 casas, dirigida por André Luis Kologeski da Silva, prestava serviços para o município. Fora contratada em 2021, primeiro ano da gestão de Sebastião Melo.
Na madrugada, o fogo irrompeu e se alastrou rapidamente na unidade da Farrapos, que tinha 60 vagas, das quais 16 custeadas pela prefeitura.
“Eu tava deitado, quase pegando no sono. Um rapaz do outro lado começou a gritar, a gente pensou que era briga. A hora que eu abri a porta, tava pegando fogo em tudo”, relatou à época Tiago de Almeida de Sousa, 35 anos, ao site Sul 21. “Tava já com fumaça, não dava pra enxergar nada. Só sei que tive que sair correndo e caí no chão, aí meio que engatinhando saí para a rua.”
Outro incêndio no centro da Capital
Sousa escapou do fogo, mas Silvério Roni Matim, Dionathan Cardoso da Rosa, Maribel Teresinha Padilha, Julcemar Carvalho Amador e Anderson Gaúna Corrêa não tiveram a mesma sorte. Dias depois, mais um óbito: João Batista Ebani, que estava hospitalizado em estado grave por inalação de fumaça, morreu em 6 de maio.
Não era a primeira vez que a Garoa aparecia no noticiário envolvida com fogo e morte. Em novembro de 2022, um incêndio na moradia que mantinha na rua Jerônimo Coelho, no Centro Histórico, matou um homem. O deputado estadual Matheus Gomes (PSOL), ainda em abril, entregou dossiê à Defensoria Pública/RS sobre a rede de pousadas. Nele, constam denúncias registradas já em 2021 e 2022.
A prefeitura e a rede fecharam acordo durante a pandemia. Foi quando Melo abriu edital visando habilitar hotéis, pousadas, pensões e hostels para prestar de serviços de hospedagem que atendessem à FASC. O prazo do edital se esgotou e somente a Garoa enviou documentação para credenciamento.
O primeiro contrato foi fechado até o final daquele ano ao preço de R$ 800,1 mil. Mas, antes do fim do ano, outro acordo foi firmado, este no valor de R$ 1,1 milhão para 2022. Um terceiro contrato de 12 meses acabou sacramentado. E, em dezembro de 2023, houve uma renovação, esta ao custo de R$ 2,7 milhões e válida até o final de 2024.
O que diz a prefeitura
Em nota enviada ao Brasil de Fato RS, a prefeitura de Porto Alegre afirmou que prossegue com a desmobilização gradual de vagas na Pousada Garoa. Afirma que, atualmente, a FASC só mantém 40 vouchers ativos na hospedagem – a expectativa é de absorver este contingente na rede do município no curto prazo e, após, encerrar o contrato.
A força-tarefa das vistorias realizadas pela prefeitura ocorreu entre o fim de abril e o início de maio. Foram identificados problemas estruturais, de higiene e de segurança em parte das 23 unidades da empresa.
Audiência pública
Sobre a investigação, pontua que há uma Investigação Preliminar Sumária (IPS), para apurar os fatos no âmbito da prefeitura sobre o contrato com a Garoa. Está na fase de coleta de depoimentos e documentos. Também prosseguem as investigações sobre o incêndio na Polícia Civil.
No próximo dia 14, a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos vai promover uma audiência pública sobre o incêndio e já chamou as instituições envolvidas para prestarem informações. “Os danos às famílias e às pessoas precisam de respostas”, reclama a deputada.
Edição: Ayrton Centeno