Rio Grande do Sul

Coluna

Um canto por Pachamama

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"Agosto é o mês de abrir espaço aos poetas do monte como Aguero, Atahualpa, Violeta, e os cantores que ainda espalham as sementes vivas de Abya Yala" - Arte: Paloma Aguilar
Que dia 1º de agosto nos encontre enamorados de nossa pele ameríndia

O folclore latino-americano conseguiu guardar em tonadas, cuecas, zambas, landós, milongas, polkas, huaynos, choros, em contos e costumes, toda uma maneira de viver, que desprezada pela invasão colonizadora, resguardou em suas entrelinhas a fecundidade de Abya Yala.

Eres uno y todos, comiendo el alimento
de todos, en la fiesta del almuerzo tranquilo;
la Mazamorra dulce que es el pan de los pobres,
y leche de las madres con los senos vacíos.
  
Cuando la comes sientes que la tierra es tu madre, más que la anciana triste que espera en el camino tu regreso del campo, la madre de tu madre, - su cara es una piedra trabajada por siglos
  
Antonio Esteban Aguero

A palavra oral, perdendo mil vezes, venceu. Perdurou em um conjunto de práticas espontâneas, autênticas e vitais que permitiram que uma identidade se mantivesse viva em nosso continente.
 
Como na década de 1980, quando Mercedes e Heredia gravaram o álbum conceitual Taki Ongoy, que resgatou a rebelião homônima do século XVI, revivendo pela música os anseios de liberação social, dignidade pré-colombiana, e a fortaleza das raízes quéchua, aymara, alguns dos povos originários da América profunda.

Ya nos quitaron
La tierra y el sol
Nuestra riqueza y la identidad
Solo les falta prohibirnos llorar
Para arrancarnos,
Hasta el corazón.
Grita conmigo
Grita taky ongoy
Que nuestra raza
Reviva en tu voz.

 

Taki Ongoy, Victor Heredia

Hoje se faz mais que necessário esse “descomplicar-se”, chamado por muitos de "decolonização", mas as pretensões do folclore parecem estar longe de brilhar nas academias. Segue dedicado ao sentido anônimo de sempre: o cultivo do viver simples de uma chacrita (pequena fazenda), a transmissão das receitas da velha abuela, o compartir de um jeito de unir palha ao barro e criar uma casa entre cerros.
 
O folclore mantém sua vocação de cotidiano, abarcando toda uma gama de informalidades de nossa América Latina, desde o jeito de fazer dormir a um bebê, as histórias místicas e populares, a maneira de nomear uma batata, até o carinho entre vizinhos expresso nas mingas, ou mutirões, para os brasileiros.

Talvez pela sua cotidianidade, essa expressão da identidade, da arte e da cultura popular adquire um caráter que transcende o que se pensaria ser seu próprio campo, faz política, filosofia e espiritualidade com a mesma naturalidade com que um violeiro faz rimas.
 
Está na maneira de plantar sem veneno, no mate para conversar com fluidez, nas mesas humildes com o milho da lavoura, na mazamorra, no cuscuz, no forno de barro, no cuidado com as crianças em ayllu (família estendida), no olhar da benzedeira, na “cura de sustos”, no agradecer da comida, nas límpias de ervas...
   
Todas essas maneiras de falar e pensar o mundo, ignoradas pelos poderosos, sobreviveram carregando um tesouro que hoje podemos nos debruçar para mais que estudar e classificar – deixar-nos surpreender e contagiar!

Essa linguagem amorosa da América Profunda preservou uma fonte de conhecimento para lidarmos com os tempos atuais, em que o tecnicismo encontra sua derrocada. Um fluxo da vida selvagem sobreviveu para contar sua história e essa escola não tem muros.
 
O mito da semente – que encarnou Tupac Amaru, prestes a ser esquartejado em Cusco, afirmando “Voltarei e serei milhões”, fez menção a essa maneira de guardar a rebelião como semente, como um canto vindouro.

Cantando al sol como la cigarra,
después de un año bajo la tierra...

 

Mercedes Sosa (intérprete; Autora: María Elena Walsh)

Com seu canto, Violeta Parra percorreu o Chile buscando os poetas anônimos e dedicou sua vida a esse intento de recolher o brilho desse livro de pedra e sol. Os frutos formosos dessa identidade até então quase invisível passa a compor o cancioneiro, ou melhor dito, o cânone do que hoje se chama música popular latino-americana.

1º de Agosto - Dia de Pachamama

Dentro das maravilhas do folclore e da espiritualidade nativa desse continente, sobreviveu um outro canto, de gestos e afeto, na forma de uma cerimônia tradicional dedicada à Santa Terra, fonte e destino final de tudo o que existe.

A bem-amada dos campesinos e místicos incas: la Pachamama. Pacha se refere ao cosmos, à existência no tempo e espaço. E Mama é a ternura que adjetiva o infinito, Pachamama é como um poema, que revela a existência como nossa Mãe. Que maneira de relacionar-se com a vida!
 
Celebrar a Mãe Terra não dentro de um conceito sofisticado e elaborado, mas cantando uma tonada. Celebrar a Mãe Terra com ternura, oferendo-lhe flores, calar-se diante da imensidão, pertencer, encarnar o instante comunitário, participar de um lado da história. Ser Pachamama, ser parte dos que sobreviveram, resistiram para seguir cantando-a.

Semente de um canto, de um povo, de um jeito de ser e viver, de uma esperança em um mundo que mata suas sementes lendárias. Pachamama é um canto dessas terras e tem muitos nomes, todos com o mesmo fogo, como a Mapu, dos originários mapuches.

Yo soy la noche, la mañana
Yo soy el fuego, fuego en la oscuridad
Soy pachamama, soy tu verdad
Yo soy el canto, viento de la libertad

 

Mercedes Sosa (intérprete; Autores: Fernando Barrientos / Osvaldo Montes)

Uma mirada de mundo, um mito, nos ajuda a abrir as asas ou nos condena a cárceres onde estamos ainda vivendo a queda de um paraíso.
 
Pachamama não é uma deusa estranha, ou um capítulo de uma exótica religiosidade antiga. Ela é um convite a perceber nossa pequenez, é um banho de sobriedade, não de fantasia. Um abrir das portas do paraíso do que já está diante de nós, ao redor de nós.

É esta sobriedade, esta humildade campesina que nos traz para o nosso socorro, uma perspectiva que nos sussurra: você planta, você está à mercê do tempo, das chuvas, você precisa da bênção dessa misteriosa Vida, você é tão frágil...

Volver a ser de repente
Tan frágil como un segundo
Volver a sentir profundo
Como un niño frente a Dios
Eso es lo que siento yo
En este instante fecundo

 

Violeta Parra

Agosto é o mês em que se abre essa oportunidade de descobrir os místicos desse continente! É o mês de abrir espaço aos poetas do monte como Aguero, Atahualpa, Violeta, e os cantores que ainda espalham as sementes vivas de Abya Yala.

Nossa biblioteca está em versos, em viejitas que ainda dançam a zamba, nas antigas oferendas que ainda fazem o coração bater, sonhar, querer e amar tanto isso que chamamos vida.

Que este 1º de agosto nos encontre enamorados de nossa pele ameríndia.

Quer saber mais sobre o Dia de Pachamama, clique aqui.

* Esmeralda Molina, Mama da Escola Solar Andina e ativista da Nación Pachamama; Kristiano Puma Aguilar, Kuraca da Escola Solar Andina e ativista da Nación Pachamama.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko