Rio Grande do Sul

ENSAIO

protocolo de enfrentamento dos medos

Ou como sobreviver na cidade dos homens

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Porto Alegre tem suas ruas tal o corpo da última mulher que amei de uma potência belíssima, marcado por dores pontuais. bastante forte, resistente e pouco flexível" - Foto: ana c

"Ter vivido uma coisa, qualquer que seja, dá o direito imprescritível de escrevê-la. Não existe verdade inferior. E, se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando no lado da dominação masculina do mundo." Annie Ernaux.

mais do que nunca o sonido urbano é o constante martelar das obras. marteletes, lixadeiras e serras operam em intensidades absurdas. 
a vida exige com suas urgências: reparos, prazos, pagamentos. 
(e pede um uso frequente de fones de ouvido)

cada retorno a Porto Alegre parece que me hiperssensibiliza. assim como sinto a fina linha das costuras das roupas me arranhar a pele, essa cidade em seu momento de reconstrução cava escoriações na nossa relação. 

é chegada a hora de reconstruir as moradas que me compõem... reabitar os territórios: da cidade, do corpo e do afeto. 


Foto: ana c

Porto Alegre tem suas ruas tal o corpo
da última mulher que amei

de uma potência belíssima, 
marcado por dores pontuais.
bastante forte, 
resistente
e pouco flexível. 

sinto um desconforto peculiar, como aquela etiqueta dura que cutuca meu sentir de nervo exposto ao frio da capital:
esta sempre foi uma cidade de homens. 

olhando nosso tecido social a gente percebe que ainda são eles os que mais desfrutam dos caminhos, inclusive daqueles que foram pavimentados pelas mulheres. os homens (e suas políticas) se beneficiam do trabalho das mulheres para armar suas peripécias. e por onde as mulheres hoje, caminhamos, eles correm há décadas. muitas vezes, passando à nossa frente. tomando nossos lugares, nossas falas, nossas ideias e nossos espaços. 
e não por pura competência, mas por uma injusta trama de construções e oportunidades. 

e querem (ainda) tomar nosso corpo (nem que seja à força).


Foto: ana c

[ eu não queria ainda ter que estar escrevendo sobre isso. ]

eu corro. 
pra mim a corrida não é um esporte solitário. no meu caso ela é sempre acompanhada por algumas vozes na minha cabeça. e correr faz com que todas elas fiquem, ora ou outra, ofegantes. e assim, elas param um pouco de falar e me dão um pouco de paz. e nesse cenário sonoro, o patriarcado é o serrilhado estridente que, insistente, atravessa as minhas conversas internas.

as esquinas da capital 
dobram duras como
a curva sua mandíbula
semi encoberta 
pela copa das árvores baixas
cascata dos 
belos cabelos
castanho dela 
que serpenteia 
pelo pescoço. 

existe uma comunicação não-verbal entre corredores, ciclistas e transeuntes. Quase uma ética na entropia urbana.

existe os sorrisos de incentivo: uma e outra mana que parece que lê nos seus olhos as mesmas angústias das quais ela (também) corre. e te sorri, solidária.

existe os sorrisos de companheirismo, daquela pessoa que você não conhece, mas costuma correr também, ou só passar por ali no mesmo horário. geralmente vem acompanhado de um aceno, eventualmente uma piscadinha. 

e existe ainda o assédio e a invasão. o olhar predatório, que te objetifica. esse vem acompanhado de palavras grosseiras, assobios e até gemidos. Um nível de intimidade que não cabe a uma abordagem gentil ou amigável. muitas de nós resolvem esse incômodo numa esfera individual, optando por alguns artifícios, como correr de fones, ou em academias fechadas, ou em horários de maior movimento. ou fingir que não ouviu, ou fazer cara feia e xingar. 

são estratégias válidas. pessoalmente, me acostumei a utilizá-las.

a corrida me coloca num modo isolado. a bolha de uma pessoa só. 
imagino que seja como sentir um tantinho de como se sente um representante do combo 'homem branco-cis-hetero' deve se sentir ao transitar pelo mundo: se movimentando em poder glória. Inatingível. Imparável. Toda mulher deveria se sentir assim, pelo menos em algum momento da vida. 

a cada assédio, contudo, essa bolha se rompe e eu lembro que esta realidade é algo a se confrontar. Aí a gente pode calar, fingir que não ouviu, ou retrucar - o que costumo fazer.

recentemente, uma de nós gritou e em uma semana explodiram relatos de casos de assédio a corredoras de rua. E assim, de uma ferida em comum se formou um grupo, que, em meio ao reedificar urbano, levou mais mulheres a ocupar as ruas num ato de protesto contra o assédio e a importunação sexual. 


Foto: ana c

vale a lembrança: Porto Alegre é uma cidade de homens. gestores, vereadores, agressores.
nossa cidade NUNCA elegeu uma mulher para prefeitura. 

a figura da que é a máxima representação da população da capital NUNCA sentiu na pele o que eu sinto todos os dias ao andar por essas ruas. no horário que for.

os homens ainda têm o privilégio de ESCOLHER pensar sobre isso ou não.
para nós, mulheres, nunca foi uma escolha. 


Foto: ana c

(mesmo quando um pequeno grupo de homens "aliados bem-intencionados" resolve engrossar nossa luta, mesmo ali eles tomam a frente das nossas marchas, eles disparam na frente, sem olhar o grupo à sua volta). 
é política das mulheres olhar umas para e pelas outras. 

reconheçamos a boa intenção: eles são ótimos em resistência e velocidade, mas pecam em coletividade. 


Foto: ana c

a nuca é uma avenida lisa
e larga
onde o desejo se movimenta. 

entre os tantos protocolos que temos seguido no pós-enchente - evacuação, limpeza, vacinal, operacionais de todo tipo eu acrescento ainda que executemos um protocolo de enfrentamento dos medos. 
nele é importante confrontar a ideia que nos assusta, expondo-a a um dado de realidade. encarar de frente o que nos apavora, seja dentro, seja fora. movimentar-se em direção ao desejo. intencionar que se pretende e perseverar. 

é possível pedir ajuda: as mulheres não querem chegar primeiro. elas querem chegar. ponto. 
é possível não ir só: queremos avançar evitando que algumas fiquem para trás.
é possível ser ouvida: nossa palavra tem valor intrínseco.  

lembremos da importância de edificar também a comunicação, construir o diálogo. inaugurar novos espaços de escuta. ainda mais nas adjacências do período eleitoral, onde vislumbramos construir uma nova cidade literal e metaforicamente. 

eu não quero mais ter que escrever sobre assédio. 
quero ser lida e lembrada como uma lésbica que corre porque gosta. e porque corre, sente e sorri. 


Foto: ana c

quero escrever sobre como 
porto Alegre
e a última mulher que amei
tem em comum
a face dura
e os olhos doces.

(imensidões que amedrontam e encantam
em igual proporção) 

eu corro por essas
ruas
como minhas mãos deslizam
por sua pele - ávidas. 

e absorvo as novas nuances da cidade
como meu faro
bisbilhotava seu pescoço - curiosa. 

abraçar porto alegre é protocolar o enfrentamento dos medos: fitar, nos olhos doces da cidade, a imensidão de suas faltas, e mover-se pelas duras esquinas da última mulher que amei. 


Foto: ana c

* ana c, de carolina, é comunicadora por vocação, produtora cultural por capricho e multiartista por essência. mulher lésbica, feminista e latinoamericana, escreve para dar sentido ao que sente.

Edição: Katia Marko