Rio Grande do Sul

ANÁLISE

Alguém disse fascismo? A gramática do Capitalismo Tardio

'O fascismo é a descarga de violência e barbárie que desesperadamente atua como última fortaleza de defesa do capital'

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"A extrema-direita de hoje não é a farsa ou a tragédia do passado fascista, mas o reflexo do esgotamento tardio do capitalismo em seu estágio superior, contexto no qual suas contradições assumem a face exclusiva do horror" - Evaristo Sa / AFP

A gramática impõe a regulação da linguagem pública e estabelece padrões normativos de escrita. A comunicação social ocorre no interior de dispositivo político-normativo. É nesse compasso que sublinho a gramática política que, no Capitalismo Tardio, regula e interdita o uso do conceito “fascismo” para nomear a ideologia de sujeitos ou grupos políticos de extrema-direita que atuam livremente na ágora política do tempo presente.

Nesse sentido, o dito e o escrito ocupam território contestado, de conflito e regulação institucional. As palavras não são utilizadas em vão ou impunemente. Elas perpassam veredas tensas de legitimação jurídica e política. Cito como argumento-base as palavras da ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen  Lúcia: “[...] não se chama alguém de nazista, de comunista até sim – um pouco até por desconhecimento do que seja –, mas nazista não, fascista não [...], porque aí realmente eu acho que desbordou do que seria considerado [...] um debate possível [...]”. Argumento emblemático que, cotidianamente, ilustra afinidade narrativa com o argumento de comentaristas políticos e articulistas das corporações midiáticas. Também segue semelhança discursiva no fluxo textual das redes sociais. Ou seja, o fascismo é o monstro político já morto e enterrado no passado.

De fato, a experiência histórica do fascismo na primeira metade do século XX desqualifica seu uso no Capitalismo Tardio do século XXI, porque carrega mal-estar civilizacional. Trata-se de conceito injuriante. É por isso que a gramática política vigente refuta duramente qualquer relação ideológica com o horror e a barbárie desse passado lúgubre. Entretanto, interditar o uso para assegurar o “debate possível” – com a proibição do ato de nomear a coisa no espaço público – bloqueia a memória e a história da violência que substancia a brutalidade política do tempo presente. Na realidade, impõe debate impossível, afinal não há diálogo político quando, do outro lado, encontra-se alteridade fascista. Assim, o peso anacrônico imposto ao conceito, equivocadamente, abre o caminho para a expansão da coisa como realidade legítima sem os rastros identitários com a violência real vivida. É pior do que a naturalização do acontecimento político, posto que o conteúdo obsceno da palavra não está na esfera do inominável, pois o interdito libera conceito com aparência de carne fresca, independentemente do mau cheiro, do odor insuportável de substância podre de mesma identidade do acontecimento de Auschwitz.

A crítica à gramática política que interdita a nomeação da coisa tal como ela é e ameaça ser transborda completamente ao juízo moral sobre sujeitos e grupos de extrema-direita. A vitória dos Aliados sobre a Alemanha na Segunda Guerra foi, exclusivamente, militar. O fascismo permaneceu como cultura político-ideológica nas bordas das democracias ocidentais. A extrema-direita de nosso século, apesar de ser parcimoniosa no uso do conceito, transporta abertamente seu conteúdo para o campo de suas táticas e estratégias de ação política. Ela utiliza eficientemente as tecnologias informacionais disponíveis e conquista o espaço virtual das redes sociais com importante apoio das big techs. É ciberfascismo, e sua essência é o resultado perverso das transformações capitalistas impostas por meio de ingestão forçada do remédio amargo da receita neoliberal.

Em substância, o capitalismo é modo de produção que interfere como força determinante na formação social. A potência modernizante do capital transforma os sujeitos contemporâneos, que exercem sua liberdade no limite do imperativo das forças hegemônicas da classe dominante, ou melhor, no interior de relações completamente assimétricas de poder. Efetivamente, a classe hegemônica é dirigente e dominante. Logo, interfere diretamente nos aparelhos ideológicos para agenciar o processo de subjetivação. A linguagem, portanto, é campo fundamental para mensurar a disputa política e compreender a dominação vigente, visto que, em termos gramscianos, toda imposição hegemônica compõe uma relação pedagógica. Isto é, uma violência física e simbólica que regula a gramática política e agencia os processos de subjetivação social.

A era do Capitalismo Tardio marca etapa superior de desenvolvimento do capital, quando sua existência somente pode aparecer como a do “fim da história” humana. Ele emerge no pós-guerra e sua capacidade criativa arrasta rapidamente a destruição das estruturas rígidas de segurança social do mundo contemporâneo e esgota completamente as bases de existência no planeta. As novas tecnologias, robótica e informática, encurtaram distâncias e favoreceram o avanço imediato dos barões do capital financeiro, que, no afã de reproduzir capital, destruíram os laços de proteção jurídica dos trabalhadores. O neoliberalismo passou a ser a política hegemônica do Estado-nação. A emancipação de classe foi substituída pelo pragmatismo da sobrevivência. É o que Paul Virilio descreve como transpolítico: o esgotamento da política como representação de classe e território.

A narrativa fílmica hollywoodiana “Não Olhe Para Cima” é seminal como metáfora descritiva do imperativo societal que apresenta uma gramática política negacionista da ilustração moderna. No Capitalismo Tardio, é prudente desviar o olhar para não ver a profunda transformação do capital em máquina de destruição do mundo. Isto é, em benefício da absoluta acumulação de capital, proíbe-se olhar para cima, a fim de manter a alienação sobre a situação-limite, a qual não há cosmético que esconda.

Objetivamente, em tempo marcado pela transferência da escatologia do sagrado para o profano da razão moderna, a hegemonia cultural passou a jogar papel fundamental como estratégia de negação da barbárie do real que torna a existência ordinariamente sufocante. No Capitalismo Tardio, o capital não alcança reprodução positiva com as promessas de paisagem futura para a humanidade, pois apenas subsiste como máquina de destruição da vida e da natureza. A precarização do trabalho e a crise climática são frutos da lógica do capital em seu estágio superior, que, tardiamente, apresenta contradição insuperável e que nos coloca no limite da barbárie. O horror econômico e ecológico alimenta a massa com desespero e ódio. Como afirma Antonio Gramsci: “não existe uma essência do fascismo no próprio fascismo”, essência do fascismo é a crise profunda do capital. Ele é o capital agonizante que se soma ao terror das tecnologias massificantes.

A extrema-direita de hoje não é a farsa ou a tragédia do passado fascista, mas o reflexo do esgotamento tardio do capitalismo em seu estágio superior, contexto no qual suas contradições assumem a face exclusiva do horror. O fascismo é a descarga de violência e barbárie que desesperadamente atua como última fortaleza de defesa do capital. Já conhecemos seus efeitos perversos e, também, os dispositivos ideológicos que favorecem sua ofensiva belicosa contra as esperanças modernas de igualdade, liberdade e fraternidade humana. Porquanto, insistir no dito e escrito do conceito é resistir ao fascismo nosso de cada dia e produzir outra gramática que guarda a utopia de outro mundo possível.

* Doutor em História Social (USP).

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.


Edição: Marcelo Ferreira