Rio Grande do Sul

Coluna

O sorriso da completude

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"Um grande momento ver A última ceia queer na abertura dos Jogos Olímpicos de Paris. Mesmo que depois tenham se desculpado com certos governos retrógrados, a arte já tinha entrado na história" - Reprodução
A arte está para isso, para incomodar, para subverter, para desacomodar

Penso nos fatos mais recentes, vistos desde uma ótica feminista, e volta a mim a emoção vivida durante a abertura dos Jogos Olímpicos de Paris. Uma mulher negra representando a França, um país colonizador. Ela cantou La Marsellaise, ela é a mezzo soprano francesa Axelle SaintCirel

Outro grande momento foi ver A última ceia queer. Mesmo que depois tenham se desculpado com certos governos retrógrados, a arte já tinha entrado na história. Aqui, eram mais de 12 xs apostolxs e, no centro, uma mulher gorda. A arte está para isso, para incomodar, para subverter, para desacomodar o que os olhos insistem em pôr sempre no mesmo quadrado. Não era esse o objetivo, acaso, ao pensar em tirar os quadros de dentro do Louvre e ressignificar as obras? Obras mutante-mente-vivas!

Um país não pede só desculpas em um discurso, com palavras, pelo fato de ter sido um invasor, um conquista-dor, isso, também pode ser feito assim, torcendo alguns significados e dando espaço a outras vidas até então apagadas, negadas, subordinadas.

Quando a gente menciona a sigla LGBTQIA+, a gente também brinca com queria mais. E esse querer a mais é muito amplo, por exemplo, uma abertura nos Jogos Olímpicos em Paris, que tal, hein? A pluralidade humana presente. A beleza está nas nossas diferenças, não em sermos todxs iguais como produtos industrializados ou soldados de um exército. Isso é o que os governos totalitários desejam. Corpos magros, peles claras, modos de ser e de atuar seguidos ao pé do roteiro. Produtos sem vida e sem identidade, para não incomodar. Produtos, não pessoas.

Muitxs de nós escapamos de suas fábricas e aqui estamos, fazendo culto às diferenças, outras existências.

Contudo, quando desligamos a tevê e voltamos ao cotidiano, ainda precisamos lembrar isso.

Por isso, também penso neste sábado (27) que comemoramos o 7º aniversário do Sarau das minas. Sete anos ininterruptos de leituras e conversas e muitos feminismos e pluriversos.

Eu abri a festa lendo o 3º capítulo do livro “O feminismo é para todo mundo”, de bell hooks. A sororidade ainda é poderosa (também me emocionei ao ver a palavra sororidade escrita na tevê, okupando o lugar da fraternidade). A escritora estadunidense, lembra que “a ligação entre mulheres não era possível dentro do patriarcado...”. Ainda hoje temos que lidar com essa sina e tempo todo ficar nos observando para ver que não estamos obedecendo ao CIStema opressor. Não estamos contra vocês, devemos dizer uma e mil vezes, estamos a favor de nós.

É óbvio que estamos avançando. Os grupos minorizados agora, além de estar na abertura dos Jogos Olímpicos, recebem prêmios, estão sendo mais publicadxs e, até, sendo um pouco mais lidxs. Todavia, ainda precisamos de espaços como o Sarau das minas, Slam das minas, Mulherio das Letras, Um grande dia para as escritoras, para poder falar livremente. Nós-todas sabemos das brigas que passamos no cotidiano, quando a tevê está desligada, para conseguir a palavra. Os homens Cis, se impõem falando sem se importar em ouvir. Eles são socializados para isso, mas não seria bom que parassem um pouco de olhar para os seus umbigos e escutassem um pouco?

Sempre que chego a este ponto me pergunto como sou eu quando estou em situação de poder, como pessoa branca. E penso que sem escritoras negras a literatura não está completa. Não quero dizer que eu seja perfeita, muito longe disso! Só estou abrindo para vocês o meu diálogo interno.

Então, se cotidianamente, os homens Cis parassem para ver que a fala está acontecendo majoritariamente entre eles, se eles começassem a se auto-observar, esse dia, não vamos mais precisar de espaços como o Sarau das minas, Mulherio das Letras, ou A última ceia queer.

Um dia não haverá mais cânone, nem necessidade de brilho de umas pessoas em detrimento de outras. Mas a certeza de se nutrir com as pluralidades. Esse dia estaremos no mesmo lugar as pessoas negras, indígenas, lésbicas, trans; esse dia o mundo vai sorrir de completude.

* mariam pessah : ARTivista feminiSta, escritora, poeta e tradutora. Autora de Meu último poema, 2023; Em breve tudo se desacomodará, 2022; entre outros. Organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre, desde 2017, e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta.  Atualmente também tem uma coluna Conversa in vers(A) no Youtube do Jornal Poesi(A).

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko