Muita gente acredita que tirando os resíduos da sua frente, ele desaparece. Costumamos dizer que “joguei fora o lixo”. Mas quase todo mundo já sabe: não existe fora.
Então, o que fazer? Devemos nos inspirar na natureza, onde, como já nos ensinaram os cientistas, “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Inspirados na natureza, devemos agir para garantir que tudo se transforme, continuando a existir e fazer parte de um ciclo virtuoso, onde nada se perde. Por exemplo, uma garrafa de vidro de bebida pode virar um frasco de perfume.
Porém, há interesses contrários a isso, e que pretendem dar outra destinação aos resíduos que a gente gera todos os dias nas nossas casas, no trabalho, na escola, no parque, no cinema: pretendem queimar tudo isso pra gerar energia, por meio de várias tecnologias, como a incineração (também conhecida como mass burn), a pirólise e a gaseificação.
Todas estas tecnologias destroem os resíduos sólidos por meio de técnicas térmicas - como a combustão ou a queima em grandes estruturas industriais - com a finalidade de gerar energia elétrica a partir do calor gerado. O resultado dessas tecnologias gera vários impactos.
São tecnologias atrasadas, dos séculos passados, e que costumamos dizer que são tecnologias de “fim de tubo” - ou seja, que os processos se encerram ali. Não são sustentáveis, pois: vão precisar sempre de resíduos para alimentar seu processo; emitem gases tóxicos e que contribuem para o aquecimento global; são contrárias às diretrizes da Política Nacional de Resíduos Sólidos, aprovada em 2010, e não contribuem em nada com a Economia Circular.
Os interessados em implantar esses monstrengos devoradores de lixo dão até um nome bonito e pomposo para essas tecnologias atrasadas e poluidoras: Unidade de Recuperação Energética (URE). Mas não se engane: como já dizia o poeta popular, “Por fora, bela viola. Por dentro, pão bolorento.”
Então, voltamos àquela pergunta do início: o que fazer? A resposta também tá lá no início: olhar e se inspirar na natureza. Devemos agir para recuperar o máximo de tudo que for gerado. E como fazer isso? Veja algumas dicas: separe os resíduos em três partes/frações:
secos (ou recicláveis) - papel, papelão, vidro, metal e plásticos; úmidos (ou orgânicos) - sobras de alimentos e rejeito - papel higiênico, absorventes, fraldas. Faça a gestão adequada dos resíduos: não junte o que é diferente. Entregue os resíduos secos para a coleta seletiva de sua cidade ou para alguma cooperativa de catadores. Pesquise onde há local para entregar outros tipos de resíduos, como lâmpadas, eletrônicos, pneus, pilhas e baterias. Os fabricantes são obrigados a receber de volta.
Fazendo com que os resíduos retornem ao início dos processos industriais que os geraram garante a manutenção de todos os elementos que fizeram parte de sua criação: matéria-prima, energia, mão de obra, etc. Esta é a base da Economia Circular: a garantia de que os resíduos voltem a ser novos produtos e insumos.
E, por fim, o que é rejeito, deverá ir para o aterro sanitário. Mas, como dito acima, interesses econômicos querem impor tecnologias sujas como soluções limpas e renováveis, o que é um absurdo!
Veja só: para uma URE funcionar é preciso um grande volume de resíduos que poderiam ser reaproveitados na reciclagem. Além de interromper este ciclo, gera impactos socioambientais significativos e prejudicam quem trabalha em favor da Economia Circular: catadoras e catadores de materiais recicláveis e composteiros (quem faz a compostagem dos resíduos orgânicos).
A Política Nacional de Resíduos Sólidos define que os resíduos sólidos têm valor econômico, social e ambiental. Portanto, é por aí que deve ocorrer a valorização deles, e não por meio de sua destruição completa e definitiva. Se há hoje um baixo percentual de reciclagem é devido às falhas no processo de gestão e na sensibilização da sociedade. Ou seja, na aplicação da Política Nacional de Resíduos Sólidos no nosso dia a dia.
Vamos detalhar um pouco mais como essas tecnologias comprometem esses valores: perda de investimentos: quando um produto ou uma matéria-prima são destruídos, levam junto todo investimento feito na sua produção, como os materiais utilizados na sua fabricação, a energia, a água e a mão de obra; impedimento da criação de novos negócios: essa tecnologia precisa de um grande volume de resíduos, impedindo que sejam aproveitados em novos negócios, como a compostagem e a biodigestão dos resíduos orgânicos, que hoje são tratados como rejeitos e encaminhados a aterros sanitários; e perda de postos de trabalho: uma planta de incineração (ou de outra tecnologia que destrói resíduos para gerar energia) gera cerca de 50 postos de trabalho na fase de funcionamento. Já a separação dos resíduos, a reciclagem e a compostagem desses mesmos resíduos geram centenas e até milhares de possibilidades para trabalhadores em diversas funções e atividades.
Além disso, se for consolidado este caminho pela queima e destruição dos resíduos, não haverá empenho da indústria e do comércio em buscar alternativas para melhorar seus produtos e para fortalecer a cadeia de reciclagem dos resíduos gerados no pós-consumo, já que tudo seria queimado mesmo.
Voltando ao funcionamento das UREs, é preciso ressaltar que essas tecnologias geram gases de efeito estufa (GEE) e gases tóxicos, que contêm substâncias muito perigosas, como dioxinas e furanos - altamente cancerígenas - e exigem monitoramento e controle ambiental que dificilmente Estados e municípios terão capacidade técnica e financeira de acompanhar.
Entenda a complexidade e o tamanho do perigo que essas UREs representam: cerca de 60% da estrutura física de uma usina dessas é composta por filtros. Ou seja, se mais da metade dos equipamentos de uma unidade industrial é de filtros, quer dizer que o que acontece lá dentro não é nada simples.
E, como essas unidades serão implantadas no coração das cidades, podem agravar ainda mais a poluição do ar, em especial nas comunidades vizinhas onde são instalados, que ficam mais expostas à probabilidade de desenvolverem câncer. Isso é amplamente comprovado em estudos na área da saúde e também pela própria estrutura das unidades de incineração:
Pesquisas apontam que a qualidade do ar que respiramos tem relação direta com a saúde pública. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima a ocorrência de 4,2 milhões de mortes prematuras atribuídas à poluição do ar, especificamente devido ao material particulado em suspensão no ar. Implantar uma unidade dessas nas áreas densamente povoadas é agravar ainda mais os problemas atuais, condenando milhares de pessoas a adoecer sem que elas tenham capacidade de escolha.
Daí vem nova pergunta: existem alternativas à destruição de resíduos para a geração de energia? A resposta é um sonoro e enorme SIM! As alternativas à incineração são bem conhecidas e estão previstas na Política Nacional de Resíduos Sólidos: a reciclagem, a compostagem e a biodigestão. Estas duas últimas alternativas são voltadas ao tratamento dos resíduos orgânicos (sobras de alimentos), enquanto a reciclagem é indicada para o tratamento e a recuperação/valorização dos resíduos secos (papel, papelão, metais, plásticos e vidros).
Na União Europeia e em parte dos Estados Unidos, essas alternativas estão sendo fortalecidas e incentivadas, por serem totalmente alinhadas ao conceito da Economia Circular. Também porque contribuem para reduzir drasticamente as emissões de GEEs e os impactos socioambientais gerados pelas tecnologias que destroem resíduos para gerar energia.
A solução para o Brasil é investir na implementação da ordem de prioridade estabelecida na PNRS, começando com as ações voltadas à não geração e à redução da geração de resíduos. É urgente que tenhamos mais educação ambiental, campanhas de comunicação para disseminação de informações como separar os resíduos, mais investimento em infraestrutura para gerenciamento de resíduos e, principalmente, cobrança ao setor privado para que assuma sua responsabilidade legal por todo ciclo de vida do produto. É vital que se estruture, implante e mantenha um sistema eficiente de logística reversa, onde as pessoas possam descartar corretamente seus resíduos pós-consumo. Para isso, o setor industrial precisa ser mais coerente e responsável em colocar produtos com menos embalagens e com maior durabilidade e reciclabilidade.
Ainda não podemos esquecer que a responsabilidade pelos resíduos é compartilhada. E tanto as iniciativas públicas e privadas devem se empenhar para reduzir a informalidade do setor da reciclagem. O regime tributário precisa considerar a necessidade do fortalecimento da cadeia econômica da reciclagem. Mas para tudo isso acontecer, tanto o governo federal, através dos seus ministérios, quanto a sociedade civil e os diversos segmentos da iniciativa privada precisam se unir pelo bem comum e não se mover apenas por interesses imediatos de cada setor. Pois além de não existir fora, todos estamos respirando o mesmo ar e vivemos no mesmo planeta.
* Carlos Henrique Oliveira, arquiteto, co-fundador da Aliança Resíduo Zero Brasil.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko