Rio Grande do Sul

RECOMEÇO

O drama do Rio Grande do Sul no Bicentenário da Imigração Alemã

'Que sua capacidade de superação sirva de alento para não nos deixarmos abater diante de tantas perdas'

Brasil de Fato | Porto Alegre |
São Leopoldo, que recebeu os 39 primeiros colonos há 200 anos, sob as águas da enchente de 2024 - Foto: Prefeitura Municipal de São Leopoldo

No dia 25 de julho de 2024 comemoramos o Bicentenário da Imigração Alemã. Há 200 anos chegavam a São Leopoldo os 39 primeiros colonos de uma imigração sistemática que trouxe aproximadamente 300 mil alemães para o Brasil. Os imigrantes alemães e seus descendentes contribuíram de forma decisiva para o desenvolvimento econômico, social, político e cultural do Brasil, deixando sua marca em todas as áreas do conhecimento.

Os colonos alemães trouxeram um sistema de trabalho e de produção radicalmente diferente daquele vigente no Brasil na época, o latifúndio da monocultura, sustentado por trabalho escravo. O modelo econômico dos alemães era baseado no trabalho do agricultor livre, na igualdade social e na pequena propriedade de produção diversificada e de criação de animais domésticos. Com a diversificação de produtos agrícolas e a multiplicidade de profissões, cada comunidade garantia sua autossuficiência e autossustentabilidade e os excedentes de produção garantiam o abastecimento das cidades.

Este novo modelo foi o embrião da atual agricultura familiar e cooperativa, que hoje põe comida na mesa do brasileiro. Por outro lado, os artesãos alemães, a partir das suas estruturas familiares, contribuíram de forma decisiva para o processo de industrialização dos estados do Sul e Sudeste. Transformaram o Vale dos Sinos e a Região Metropolitana de Porto Alegre, assim como o Vale do Itajaí, em Santa Catarina, em extraordinárias concentrações industriais.

Os primeiros imigrantes alemães foram assentados no Vale do Rio dos Sinos, onde se desenvolveram as cidades de São Leopoldo e Novo Hamburgo. O assentamento deveria ter sido feito em áreas mais altas, mas já naquela época o governo da então Província de São Pedro do Rio Grande não respeitou a várzea do rio e assentou os colonos em área alagadiça. Nas primeiras chuvaradas, os colonos viram suas casas serem tomadas pela água.

Mais tarde, os alemães povoaram os vales dos rios Caí, Paranhana, Taquari e Rio Pardo. Em 2023 e 2024 todos estes vales foram duramente atingidos por três grandes enchentes em apenas nove meses. Em maio deste ano vivemos a maior catástrofe climática do Rio Grande do Sul em todos os tempos. A Defesa Civil contabilizou 179 mortos, 34 desaparecidos, 806 feridos. Mais de 638.000 desabrigados perderam suas moradias, seus pertences, seu ganha-pão, sua referência de vida. Mais de dois milhões e meio de pessoas foram afetadas de forma direta em 476 municípios. Todos os gaúchos foram atingidos indiretamente.

No início de maio chuvas torrenciais de mais de uma semana e volumes de precipitação de mais de 800 mm em algumas regiões produziram um efeito devastador nunca antes visto. Os rios subiram a níveis jamais imaginados, tendo o Taquari atingido 32,17 metros. A correnteza das águas barrentas levou animais e humanos, arrasou plantações, inundou casas, lojas, fábricas, escolas e hospitais e destruiu cidades. Trechos de rodovias de vital importância alagaram e desmoronaram. Dezenas de pontes ruíram. Milhares de avalanches obstruíram estradas e soterraram casas com seus moradores. Regiões inteiras ficaram isoladas, sem energia elétrica, sem água, sem comunicação.

As águas subiram com tamanha rapidez que centenas de milhares de pessoas tiveram que abandonar tudo às pressas e sair com água pela cintura para salvar suas vidas. Milhares de flagelados tiveram que ser resgatados nos telhados das casas por botes e helicópteros. Em Porto Alegre, a estação rodoviária, o trem metropolitano e o aeroporto internacional ficaram inundados por um mês. Mais de 250.000 carros ficaram submersos. A Procergs colapsou e o Data Center do estado ficou inoperante por três semanas, sem interação com os 497 municípios.

Os imensos vales da Grande Porto Alegre com suas cidades foram completamente inundados. O Guaíba superou a marca da grande enchente de 1941 (de 4,76 m), com elevação a 5,35 m. Bairros inteiros foram arrasados e os desabrigados não têm mais como voltar aos seus lugares de moradia. O Rio Grande do Sul entra para o mapa dos refugiados climáticos.  

Enquanto a Defesa Civil e milhares de voluntários tentavam desesperadamente salvar vidas e arrecadar donativos de primeira necessidade para quem perdeu tudo, os oportunistas de sempre, sem se importar com a dor das pessoas, começaram a produzir “fake news” para obter proveito político da situação. Não bastasse tanta desgraça, gangues começaram a saquear tudo. Felizmente, a solidariedade foi maior. Cenas comoventes de solidariedade não só dos gaúchos, mas do povo brasileiro em geral, mostram que nem tudo está perdido. Um número incontável de voluntários e de organizações não governamentais (ONGs) uniu-se aos servidores de órgãos públicos e da Defesa Civil para prestar socorro às vítimas e acolher quem perdeu tudo.

Em todo o estado foram improvisados 871 abrigos em escolas, universidades, associações comunitárias e igrejas. Todos empenhados em organizar o caos que o Estado mínimo não consegue administrar nessas emergências, como já havia acontecido na pandemia da Covid. Foram abrigadas mais de 80 mil pessoas que não tinham para onde ir, precisando de alimentação, água, roupas, colchões, assistência médica. Mais de 30 mil animais foram salvos e recolhidos em abrigos organizados por voluntários. Por mais de três semanas estiveram em ação 4.405 viaturas, centenas de embarcações, 45 aeronaves e um efetivo de mais de 28 mil servidores, além de um número incontável de voluntários. Milhares de caminhões e até aeronaves, com apoio de empresas, chegaram (e ainda estão chegando) de todas as partes do Brasil, com donativos de toda a espécie.

O presidente Lula esteve três vezes no estado no mês de maio, tendo mobilizado o governo, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica para apoiar a Defesa Civil, o governo estadual e os governos municipais para salvar vidas. Essa mobilização incluiu a vinda de autoridades do Tribunal de Contas e dos Poderes Legislativo e Judiciário para sentirem de perto as proporções da tragédia, evitar entraves burocráticos na liberação de recursos e acelerar com efetividade medidas emergenciais e soluções para a reconstrução.

Quais são as causas da catástrofe que o RS vive hoje? Há negacionistas, que usam a religião para seus propósitos, dizendo que este dilúvio é o castigo de Deus. Outra narrativa é de que tudo não passa de uma fatalidade, de um desastre natural e que não se poderia ter impedido o seu impacto, ante os volumes de chuva. Técnicos e estudiosos das universidades, ao contrário, dizem que o colapso poderia ter sido evitado, em grande parte, se os gestores estaduais e municipais tivessem adotado medidas adequadas de prevenção contra os efeitos das emergências climáticas previstas e, sobretudo, com a manutenção e o aperfeiçoamento do sistema de proteção contra cheias, existente há décadas.

É consenso entre os cientistas que o descontrole climático, com eventos extremos como o que estamos vivendo, é provocado pelo aquecimento global e o conseqüente aquecimento da atmosfera e dos oceanos (La Niña). A elevação da temperatura do planeta é causada pelo excesso de emissão de gases, como o dióxido de carbono (CO²) e outros, que provocam efeito estufa fora dos padrões. A emissão de gases que poluem a atmosfera é basicamente resultante de práticas humanas, como queimadas, queima de combustíveis fósseis (70% das emissões): chaminés das fábricas, emissões dos carros.

O “progresso” foi devastador para a biodiversidade. Precisamos reduzir drasticamente este quadro, passando a usar fontes de energia de carbono zero, como energia eólica e solar, proteger e recuperar os ecossistemas que armazenam carbono, como florestas, mangues, turfeiras. Infelizmente, as nações mais ricas do mundo preferem gastar fortunas para financiar guerras a financiar investimentos climáticos para conter a destruição do planeta.

Nos últimos anos, vivemos as temperaturas mais altas de que se tem notícia no planeta Terra. A Amazônia viveu a maior seca da história no ano passado. Pessoas e animais, literalmente, morreram de sede na maior bacia hidrográfica do mundo. Vamos continuar a assistir inertes à destruição da maior floresta tropical do mundo, à poluição de rios e lagos com o mercúrio das mineradoras, à depredação de nossos grandes biomas: a Mata Atlântica, o Cerrado, o Pantanal, o Pampa? Vamos continuar usando nas plantações venenos que causam desequilíbrio ecológico e que há muito foram banidos em outros países? Vamos continuar emporcalhando ruas, redes pluviais e rios com plásticos e toda a sorte de lixo?

A região das nascentes do Taquari-Antas, que era composta por matas ciliares, banhados e campos de pastagem, foi alterada radicalmente para o plantio de lavouras de soja. Foram destruídas áreas que funcionavam como uma espécie de esponja e amortecimento natural. As águas das chuvas volumosas vão arrastando camadas de terra, deixando os rios cada vez mais assoreados. A velocidade das águas que descem a Serra é cada vez maior, provocando enchentes jamais vistas nos vales. Já em 1941 o crescimento populacional do Alto Taquari, com a necessidade maior de terras, havia induzido os agricultores ao desmatamento de áreas cada vez mais íngremes, o que contribuiu para a tragédia daquele ano.

Com o descontrole climático, a tendência é de que eventos extremos serão cada vez mais intensos e freqüentes. Além de enchentes, secas e vendavais poderão ocorrer. Medidas urgentes devem ser tomadas em relação às áreas de risco, à preservação das matas ciliares e áreas de amortecimento e à retomada do gerenciamento das bacias hidrográficas, com obras necessárias. Mas, nos últimos anos, o RS tem andado na contramão de tudo isso.

Nosso Código de Proteção Ambiental era exemplar, resultado de muito debate e contribuição de renomados ambientalistas. Entre 2019 e 2020 essa legislação foi mutilada e afrouxada, com a supressão 480 itens. O autolicenciamento ambiental para atividades econômicas de alto impacto é uma mostra da falta de compromisso de legisladores e governo com a preservação do meio ambiente. A pesquisa e a produção de tecnologia e inovação do estado sofreram um duro golpe com a extinção da Cientec. Mesmo com todas as “advertências do nosso padroeiro São Pedro” em 2023, o orçamento da Defesa Civil de 2024 é absolutamente insignificante. A estrutura de governo, aos poucos, está sendo desmontada, peça por peça, para ser Estado mínimo, tão ao gosto do neoliberalismo. Esse é o fator que transforma uma emergência climática em catástrofe.

Também em Porto Alegre a infraestrutura de saneamento foi precarizada. A extinção, em 2017, do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), responsável pelo sistema de bombeamento e proteção contra as cheias, foi uma catástrofe anunciada. Suas tarefas foram repassadas ao DMAE, que vem sofrendo progressivo sucateamento (com metade dos funcionários de 20 anos atrás), como estratégia para vender a autarquia ao setor privado. Em 2019 a prefeitura perdeu 121,9 milhões de recursos a fundo perdido da CEF para drenagem e reforma de 13 das 23 estações de bombeamento de águas pluviais, agravando assim a vulnerabilidade a eventos climáticos extremos. O vazamento e rompimento de uma das comportas do Cais Mauá no início da cheia é apenas um dos sintomas do sucateamento do sistema de proteção. O custo da reconstrução da cidade será infinitamente superior ao custo da manutenção.

Há danos irreparáveis nesta tragédia do RS, que são as vidas que se perderam e também todas as perdas de valor sentimental que as águas carregaram. Mais de 267 mil residências e 145 mil empresas e escolas foram destruídas ou seriamente danificadas. Vamos ter que ficar atentos para que os recursos da reconstrução não sejam abocanhados pelos donos do poder, com reprodução de modelos viciados. Se colocarmos a culpa apenas nas chuvas, não haverá reconstrução inteligente. Os gestores devem respeito aos flagelados e precisam espelhar-se na ciência e na tecnologia para construir um futuro mais justo e sustentável.  

A história mostra que o gaúcho é resiliente e jamais se deixou derrotar nas adversidades. Neste momento, deve nos servir de inspiração o nosso animal símbolo e amigo de tantas batalhas. Ainda estão vivas em nossa mente as imagens do cavalo “Caramelo” que resistiu por três dias e três noites, sem água e sem comida, em pé sobre a cumeeira do telhado de uma casa inundada, até ser resgatado.

Neste ano do Bicentenário da Imigração Alemã, em que os gaúchos são sobreviventes de um dramático naufrágio coletivo, queremos resgatar o exemplo dos imigrantes alemães. Eles chegaram do Velho Mundo, despojados de tudo por causa da ganância de poucos. Com fé, união, solidariedade e muita determinação, recomeçaram sua vida do nada no Novo Mundo, onde a natureza lhes foi generosa. Superaram as maiores adversidades e venceram.

Que sua capacidade de superação sirva de alento para não nos deixarmos abater diante de tantas perdas. Que Deus nos dê coragem e forças para iniciar tudo de novo e, sobretudo, para revermos nossa relação com a natureza. Depois de tudo o que vimos nesta catástrofe climática, somos abençoados por estarmos vivos e termos a chance de recomeçar. 

* Pesquisador de História da Imigração Alemã

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.


Edição: Marcelo Ferreira