Rio Grande do Sul

25 DE JULHO

'Há gente que gosta de um país em que haja discriminação', afirma Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva

No Dia Nacional da Mulher Negra, o Brasil de Fato RS conversa com a primeira professora afrodescendente a compor o CNE

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"A graça e a dificuldade é justamente cada pessoa ser diferente da outra mas com capacidade de conviver com as diferenças" - Foto: Rafa Dotti

Primeira mulher negra a integrar o Conselho Nacional de Educação (CNE), em 2002, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva nasceu no dia 29 de junho de 1942, na Colônia Africana, em Porto Alegre. A região, que hoje se chama bairro Rio Branco e abriga casas de alto custo, em tempos passados serviu de abrigo e moradia para os libertos da escravatura.
  
Filha única da professora Regina e do pedreiro João Antônio, que morreu quando ela ainda era criança, cresceu na rua Esperança, atual Miguel Tostes. 

Graduada em Língua e Literatura Portuguesa e Francesa, mestra e doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), também integrou a equipe que formulou o segundo plano estadual de educação do estado. Foi ainda relatora das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História Afro-Brasileira e Africana, em 2004.

Durante muitos anos, Petronilha e a família moravam em um chalé de madeira comprado pelo bisavô e que somente deixou de ser usado como moradia em 1994. Hoje, serve de escritório para a professora. Foi nesse espaço, cheio de fotos, esculturas, livros e recordação, que ela recebeu Brasil de Fato RS.

Uma conversa que reproduzimos neste 25 de julho, data que, há 10 anos, celebra o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Com olhar, sorriso acolhedor e uma fala cálida, ela conta um pouco de sua história. 


Escultura feita por Petronilha / Foto: Rafa Dotti

Brasil de Fato RS - Quem é Petronilha? 

Petronilha Gonçalves e Silva - Sou uma mulher negra, nascida em Porto Alegre, no bairro Rio Branco, conhecido, na época, como Colônia Africana. Após a abolição, antigos escravizados compraram terrenos aqui, entre eles meus bisavós paternos.

Nasci e me criei aqui, estudei no grupo escolar Uruguai, naquela casa que fica bem na frente da rua Dona Laura.

Naquela época, criaram o Colégio de Aplicação da Ufrgs. No início do ano chamaram alguns pais e, entre eles, minha mãe Regina. Tínhamos todos entre 11 e 12 anos, tanto as meninas do Instituto de Educação Flores da Cunha, então, a escola estadual exclusiva para meninas mais prestigiada de Porto Alegre, e os meninos do Julinho, o colégio Júlio de Castilhos. 

Estavam ainda organizando o Colégio de Aplicação, onde os estudantes de graduação iam fazer seus estágios. 

A minha mãe disse 'É um colégio novo. Não sabemos como vai ser. O Instituto de Educação nós sabemos que é muito bom...' Eu já sabia o seguinte: eu seria professora, porque moça pobre primeiro tinha que ser professora, depois podia ser o que quisesse. Era o que minha mãe dizia.

Minha mãe deixou que eu decidisse e decidi ir para o colégio novo. Sou da primeira turma. Me licenciei em Língua e Literatura Portuguesa e Francesa em 1964.

Também fui professora no Julinho, durante a ditadura

Comecei a dar aulas aos 21 anos na escola Antão de Faria que, naquele tempo, ainda não era estadual, como é hoje. Fazia parte de uma campanha nacional de educandários gratuitos em comunidades carentes. 

As coisas foram lentas, foram piorando. No primeiro ano, ainda não eram tão terríveis. Tinha uma transição que não dava para perceber bem onde as coisas chegariam. 

Na década de 1970, ganhei uma bolsa para o Instituto Internacional de Planejamento da Educação, da Unesco, um curso para professores de países em desenvolvimento. Tinha colegas de países da África, da Ásia e de vizinhos como Peru, Venezuela e Colômbia, além de europeus de Portugal e da Bulgária. 

Em 1989, fui aprovada em concurso para professora do Departamento de Metodologia do Ensino da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), em São Paulo. Fiquei lá até me aposentar em 2012. 

BdFRS - Em 2023, completaram-se 20 anos da homologação da Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira. Como a senhora avalia o ensino de história a partir do processo instaurado em 2003? Que transformações trouxe para educação como um todo?

Petronilha - Houve avanços. Talvez não tanto quanto a gente tivesse gostado que tivesse. 

Há gente que gosta de um país em que haja discriminação. Deve ser gosto porque, para permanecer tanto tempo (pensando assim), mesmo sabendo que isso é ruim para a sociedade. Mas há avanços. As pessoas são mais cuidadosas, mais atenciosas. Algumas não. Vão continuar sendo (assim), porque é uma escolha que fazem para a sociedade e para elas mesmas. Para se sentirem valorizadas, têm que desvalorizar outras pessoas.

Talvez por uma questão de educação, quando vejo alguém que me olha com uma cara assim 'Ah, o que é que está fazendo aqui?', olho e sorrio para a pessoa. Como dizendo: 'Está pensando o quê?' Muitas vezes a pessoa fica desconfortável.

Tem mudado consideravelmente mas não chegou no ponto em que as pessoas respeitam as diferenças.

Não sei dizer se (o estado) é o mais racista. Mas é racista

BdFRS - Como avalia a evolução do Movimento Negro no Rio Grande do Sul? 

Petronilha - Com os anos foi aumentando. Cada nova geração traz a sua contribuição, tem o seu papel. Hoje existem pessoas que não são afrodescendentes, que não são negras, que não têm pele negra, e que fazem parte da luta antirracista, porque é uma luta da sociedade. 

BdFRS – O que acha quando apontam o Rio Grande do Sul como o estado mais racista do país? 

Petronilha - Acho que medir o racismo, como outras discriminações, é uma coisa negativa, não é bom para ninguém, nem individualmente, nem mesmo para a sociedade.

Talvez seja considerado mais racista porque boa parte da população é de origem europeia. É um dos estados em que a população negra é minoritária. Não sei dizer se é o mais racista. Mas é racista. Quanto a isso, não resta dúvida.

E o racismo, como todo tipo de discriminação, não reconhecimento da humanidade das outras pessoas, é muito ruim para todo o mundo.

Não só para o que sofre os efeitos do racismo, como para aquele que produz o racismo. E essa produção está no gesto, no olhar, da pessoa. Quando as pessoas te olham e com o olhar tentam te desqualificar.


Antiga casa dos bisavós guardam inúmeras recordações / Foto: Rafa Dotti

BdFRS - A educação étnico-racial pode ajudar a combater o racismo? 

Petronilha - Acredito que sim. Mas não pode ser papel só da escola. Ela começa muito antes, nas famílias, com os irmãos, os vizinhos, no convívio que a pessoa tiver, nas associações. Na forma de olhar, porque isso está na forma até de olhar para as pessoas.

BdfRS - Dia 25 de julho ficou definido como Dia da Mulher Afro-latino-americana e Caribenha. No Brasil, também ficou determinado como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Que significado essa data tem?

Petronilha - O fato de ter uma data não quer dizer que seja só aquela data.

Aquela data é para fazer lembrar, tomar posição, celebrar. Entretanto, algumas pessoas acham que elas, ou o seu grupo étnico-racial, porque são distintos grupos sociais. Nenhum é mais valioso que o outro, são diferentes.

A educação das relações étnico-raciais é cultivar o convívio entre os diferentes para construir o que é comum, que é a nação brasileira, que é a sociedade. A sociedade gaúcha é uma construção de todos que estão aqui, embora alguns se achem mais importantes, mais bonitos, mais inteligentes.
 
É um dia importante no sentido de celebrar a descendência e de mostrar o papel das mulheres, dos homens, das crianças negras, na construção dessa sociedade.

O acolhimento se passa desde o olhar. Não precisa falar

BdFRS - Como descreve a realidade das mulheres negras no país, em especial do Rio Grande do Sul?

Petronilha - Algumas pessoas têm um sentimento de superioridade em relação às outras. É um sentimento que prejudica a convivência e a construção da sociedade. Nós somos distintos. A graça e a dificuldade é justamente cada pessoa ser diferente da outra mas com capacidade de conviver com as diferenças. 

BdFRS - Estamos em um período eleitoral e é inevitável falarmos da bancada negra tanto na Câmara de Vereadores de Porto Alegre quanto na Assembleia Legislativa...

Petronilha - Tardia, mas chegou. Isso não é uma construção individual, tem a ver com o grupo social, com o grupo étnico-racial, com o grupo homens e mulheres, as distintas maneiras de ser pessoa, de respeito e acolhimento.


Foto: Rafa Dotti

BdFRS - Durante a nossa conversa, uma palavra que marcou foi 'acolhimento'...

Petronilha - O acolhimento se passa desde o olhar. Não precisa falar. Tu olhas para uma pessoa e está dizendo 'Eu estou te vendo'.

Tem um cumprimento dos hindus, o oi. O oi, se a gente fosse traduzir, seria o seguinte: 'Eu estou te vendo'. E a resposta da outra pessoa é: 'Sim, eu estou aqui'. Quer dizer, é o reconhecimento da presença do outro.

BdFRS - Quase 200 anos depois do fatídico Massacre dos Porongos, os Lanceiros Negros foram, finalmente, inscritos no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Que figuras negras da história gaúcha e brasileira foram esquecidas e merecem um resgate?

Petronilha – Inúmeras, dependendo da região em que a gente estiver, da cidade, do lugar onde a gente mora. Aqui, por exemplo, nós somos uma colônia africana. Este bairro foi durante muitos anos conhecido assim. E mesmo as pessoas não negras que moravam aqui se referiam como 'A Colônia'.

Lembro em que a última vez que alguém se referiu ao bairro como 'A Colônia', eu estava na fila do elevador. Chegou um senhor e falou pra mim 'Tu és da Colônia'. Confirmei. Só não sei se ele me reconheceu ou se ele reconheceu em mim a minha mãe. Sou muito parecida com ela. Foi a última vez que alguém não negro se referiu ao bairro como 'A Colônia'. 

Hoje, que eu saiba, somos três famílias que se mantém no bairro. 

BdFRS - Mensagem final? 

Petronilha - Um recado que a gente repete: A luta continua!


Edição: Ayrton Centeno