Apesar dos avanços, a agricultura urbana demanda ainda maior suporte por parte do poder público
A urbanização e as mudanças climáticas estão estritamente ligadas. As cidades, que estão entre os principais emissores de gases de efeito estufa (GEE), não só contribuem para as alterações climáticas, como também são direta e indiretamente impactadas por elas. Dado o atual contexto enfrentado pelo Rio Grande do Sul, é necessário ampliar o debate sobre como tornar nossas cidades mais verdes e conectadas a uma ampla agenda de sustentabilidade.
Os efeitos das alterações climáticas – cheias, secas, calor excessivo – ameaçam o acesso a serviços urbanos básicos, como água, energia, alimentos e tendem a aumentar o número de comunidades urbanas altamente vulneráveis, sendo os pobres os que correm maiores riscos. Esse fenômeno foi claramente percebido nas cheias ocorridas no RS. Além do impacto na produção, as chuvas prejudicaram as infraestruturas logísticas, o que reduziu a oferta de produtos locais e regionais. Embora os efeitos tenham sido diversos nas diferentes cidades do estado, entre os produtos que ficaram indisponíveis ou com preço muito elevado estão os vegetais frescos. A falta de produtos aumentou a insegurança alimentar de muitas famílias gaúchas e é mais uma das preocupações da população em meio às inundações históricas.
Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) aponta que a agricultura urbana é indispensável para a implantação de um sistema alimentar robusto e resiliente. A produção local de alimentos reduz a dependência de cadeias longas de suprimento, mais vulneráveis a interrupções causadas por desastres naturais, crises econômicas ou pandemias. Garante-se, assim, um fornecimento de alimentos estável e seguro às comunidades urbanas, com redução das emissões de carbono associadas ao transporte de alimentos, problema conhecido como “quilômetros alimentares”. A redução das distâncias entre produtores e consumidores também reduz o desperdício, uma vez que os produtos podem ser consumidos frescos, diminuindo a perda durante o transporte e o armazenamento.
A agricultura urbana também fortalece a economia local, altamente suscetível em momentos de catástrofes naturais e de crises econômicas. Ela tem potencial de diversificar as oportunidades de geração de emprego e de renda nas comunidades urbanas. Isso inclui desde o cultivo e venda de produtos até a criação de redes de distribuição e mercados locais.
A produção de alimento na cidade contribui ainda para a redução de emissões aéreas de diversas formas: a reutilização produtiva de resíduos urbanos compostáveis nas hortas urbanas tem como consequência a queda das emissões, tanto provenientes do transporte desses resíduos, quanto de metano, oriundo dos aterros sanitários; sua utilização como adubo orgânico, também diminui o consumo de energia na produção de fertilizantes; o reuso de águas residuais (esgotos) contribui para moderar as emissões geradas nos sistemas de tratamento centralizados, típico das grandes cidades, além de economizar água limpa ou tratada para usos de maior valor social.
Dentre as diversas contribuições para a redução dos efeitos ambientais diretos das mudanças climáticas, a agricultura urbana pode: amenizar as ondas de calor, visto que aumenta as superfícies verdes das cidades; ser uma alternativa para manter zonas baixas, como áreas de várzea, livres de construção e, por consequência, dos efeitos negativos das inundações em áreas urbanizadas; pode ainda contribuir para que o escoamento de águas pluviais seja reduzido e o excesso de água armazenado, ou infiltre em espaços verdes abertos.
Do ponto de vista da gestão urbana e da gestão de riscos, as hortas urbanas são espaços onde são criados vínculos comunitários e engajamento social, elementos chave para uma gestão ambiental democrática e solidária.
Embora a agricultura urbana seja, ainda hoje, um conceito polissêmico e se refira a práticas diversas, há uma constante em sua definição: ela busca diferenciar-se da agricultura praticada no meio rural. Sua característica fundamental é a maior e melhor integração com o sistema econômico e ecológico urbano. As práticas englobam a produção, processamento e distribuição de produtos alimentícios e não alimentícios. E estão intrinsecamente ligadas à dinâmica urbana, fazendo amplo uso de recursos humanos, materiais, produtos e serviços urbanos, fornecendo-os de volta às cidades.
No Brasil, é possível afirmar que a agricultura urbana é amplamente praticada em todas as regiões, sendo uma realidade que abarca uma grande diversidade de contextos e de características. Qualitativamente, a agricultura urbana apresenta como características principais e mais recorrentes a localização em espaços comuns/públicos, operada em sistema comunitário, focada na produção de vegetais destinados ao autoconsumo.
A emergência da agricultura urbana e as catástrofes climáticas têm demandado um olhar mais atento às práticas de planejamento urbano, reforçando a necessidade de criação e atualização de leis para sua regulamentação. Observa-se que, em alguns casos, regras impeditivas, regulamentações pouco claras ou falta de diálogos entre políticas públicas nas diferentes esferas de governo (União, estados e municípios) podem restringir seu desenvolvimento. O problema do vácuo normativo e das disputas pelo uso da terra urbana, muitas vezes, são fontes de conflitos entre quem pratica e defende a agricultura urbana, legisladores e políticos.
Nos últimos anos verifica-se, entretanto, a expansão significativa das políticas públicas relacionadas à agricultura urbana, nas diferentes escalas de governo. Isso demonstra a importância desse tema, que vem ganhando mais atenção no atual momento. No entanto, apesar do aumento no número de leis aprovadas, ainda não existe no Brasil uma política nacional articulada e as leis existentes de agricultura urbana não apresentam articulação explícita com o planejamento urbano.
No âmbito federal, as políticas aprovadas que fazem referência à agricultura urbana são as relacionadas à segurança alimentar e nutricional e à agroecologia e produção orgânica. Em junho, contudo, o Senado aprovou um projeto que permite que os terrenos urbanos ociosos da União possam ser usados para o cultivo de hortas comunitárias, para produção orgânica e de mudas para o paisagismo urbano (PL 2100/2019).
No âmbito estadual, o RS é um dos estados que conta com uma política de agricultura urbana aprovada (Lei 15.222/2018) regulamentada por decreto (54.459/2018). Mas é um dos raros exemplos.
No âmbito municipal, podemos comentar que Porto Alegre tem avançado no debate sobre o tema. Recentemente, foi promulgado um decreto que possibilita a implantação de hortas urbanas comunitárias em áreas de parques, praças e terrários urbanos (21.766/2022). Foi também lançado um projeto para a execução e implementação de 68 hortas comunitárias nas 17 regiões do Orçamento Participativo (OP).
Na esfera da sociedade civil, o Fórum da Agricultura Urbana e Periurbana - FAUPoa é uma iniciativa de destaque na Capital. Composto por 43 hortas ou “experiências coletivas”, o Fórum tem, entre seus objetivos, a incidência na construção de políticas públicas e desempenhar um importante papel na articulação social da agricultura urbana local.
Apesar dos avanços, a agricultura urbana demanda ainda maior suporte por parte do poder público na cidade e no país. Em síntese, ainda há muito a avançar sobre o tema e sua integração ao planejamento urbano e às políticas públicas urbanas. E essa articulação é estratégica para criar sistemas alimentares mais resilientes, sustentáveis e equitativos, capazes de enfrentar os desafios atuais e futuros das mudanças climáticas.
* Geisa Zanini Rorato é professora da Faculdade de Arquitetura da Ufrgs e pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre.
** Eugenia Aumond Kuhn é professora da Faculdade de Arquitetura da Ufrgs e pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre.
*** Bruno Cesar Euphrasio de Mello é professor da Faculdade de Arquitetura da Ufrgs.
**** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira