Como formar militantes sem o exercício da luta direta?
Vivemos um momento difícil, é verdade. Menos complicado do que nos governos de Temer e Bolsonaro, mas definitivamente com a dura tarefa de organizar, resistir, lutar e, ainda garantir conquistas concretas em uma sociedade muito diferente da que existia no início do século XXI. Esta mesma sociedade brasileira era já radicalmente distinta da que havia no Brasil no último governo da ditadura com inflação galopante, crise de pagamentos externos e, contraditoriamente, pleno emprego industrial e possibilidades para mão de obra não qualificada.
Foi esta sociedade que se torna madura e socialmente organizada em 1980 que deu base para o surgimento do maior partido político da América Latina, o Partido dos Trabalhadores (PT). A legenda, como todos sabemos, é uma junção dos chamados sindicalistas autênticos, agrupações trotsquistas, dissidências da antiga linha de Moscou (incluindo veteranos da luta armada), ativistas políticos no MDB e intelectuais em busca da organicidade possível com certa democracia intra partidária. Nasceu como um partido com direito a tendências internas. Podemos afirmar com certa grandeza política e sem sectarismo, que foi a versão moderada brasileira das então frentes insurrecionais centro-americanas (FSLN na Nicarágua, FMLN em El Salvador e URNG na Guatemala).
Qual a espinha dorsal do partido em sua primeira década? As pastorais sociais da Teologia da Libertação e o mundo do trabalho no setor privado. E o caminho percorrido, para o exercício da vocação de poder dentro do Estado burguês? Eleições municipais, filiação massiva no serviço público concursado e liderança carismática do ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva.
Hoje, no exercício do quinto mandato na Presidência, incluindo um golpe de Estado em 2016 e uma eleição fajuta em 2018 (com o favorito preso sem provas), o partido existe em função de seu líder e do exercício de um governo de coalizão. Qual a forma principal de incidir na sociedade brasileira? As políticas públicas. Logo, por essa opção evidente, a luta direta, a organização social, a incidência na base da sociedade, quase todas as iniciativas a não ser em setores muito combativos do campesinato e de sindicatos que na atualidade resistem mais do que nunca, terminam ficando em segundo lugar.
Não nos iludamos, a hegemonia da esquerda é social-democrata, não prioriza a luta e sim a institucionalidade. Esta parece ser a opção cada vez mais abrangente. Mas, atenção. A única esquerda existente no Brasil é a centro-esquerda eleitoral? Evidente que não. A diversidade de agrupações que constroem seus projetos dentro e fora da institucionalidade é enorme. O número de sujeitos sociais organizáveis, é gigantesco.
O conjunto das esquerdas e centro-esquerdas dão conta de organizar em nível territorial, estudantil e sindical na atualidade? Não, óbvio que não. Somemos as lutas nos territórios do campo, a maioria afro-brasileira, a maior parte da população composta por mulheres e o desafio é enorme. Para complicar mais ainda, o principal vetor organizacional na base da pirâmide social brasileira são as denominações evangélicas (“igrejas”) e a fonte de informação (desinformação, eu diria) de maior envergadura são os grupos de aplicativos de mensagem (“tá todo mundo no zap!”).
Esta coluna tenta retomar – ou exercer – o saudável debate para a esquerda e também visando a centro-esquerda e talvez todo o “progressismo” em suas múltiplas interpretações. Para fazer um diálogo frutífero temos de ser sinceros, mas não sectários. Lacração e grandeza política não combinam em nada. A encruzilhada brasileira está não apenas na hegemonia social-democrata (sem nenhuma variável fora do já provado frágil republicanismo), mas na dependência de seu líder histórico. Tem projeto de poder para além do capitalismo periférico? E a formação de quadros? E a escola de militância? Como formar militantes sem o exercício da luta direta?
Modestamente entendo que estamos diante de ao menos dois projetos: um, distante, no plano declarativo, que relaciona algo parecido com um ideário socialista, mas com democracia política. Outro, muito concreto, quase imediato eu diria, de elevar o nível do capitalismo periférico brasileiro e seu exercício de soberania diante de inimigos internos e as pressões dos países ocidentais. Para o primeiro falta ainda maturidade em assumir essas posições; já o segundo necessita de um acordo de elites nacionais (econômicas, intelectuais, midiáticas, na tecnocracia de Estado, nos altos mandos militares e demais setores-chave) e uma inserção soberana no Sistema Internacional. Neste sentido, é tão ou mais difícil do que o primeiro.
Sejamos realistas, mesmo com o vento a favor no cenário mundial, da porteira para dentro, o colonialismo subalterno coloca as frações de classe dominante brasileiras mais leais a Miami e Washington do que a Brasília. As coisas como são. Qual projeto se torna concreto, para além dos discursos de legitimação? Quem organiza o primeiro acaba defendendo o segundo (ao menos no classismo e na luta antifascista). E o inverso, é verdadeiro? Vamos ao debate.
* Bruno Lima Rocha ([email protected] / www.estrategiaeanalise.com.be) é jornalista, cientista político e professor de relações internacionais; é membro do ICCEP / O Coletivo e participa da luta pela democracia na comunicação social. APOIE ESTA COLUNA E OS PRODUTOS JORNALÍSTICOS DO ICCEP (https://www.youtube.com/@OColetivo) – PIX [email protected]
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko