Rio Grande do Sul

Direitos Humanos

Delegacia de Combate à Intolerância de Porto Alegre segue atendendo em local alternativo

O Brasil de Fato RS conversou com a delegada Tatiana Bastos sobre o trabalho realizado na delegacia especializada

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Enchentes afetaram a DPCI da capital gaúcha e o atendimento provisório ocorre no Shopping Total - Foto: Divulgação/Polícia Civil

O registro de casos de racismo no Brasil saltou de 5.100 em 2022 para 11.610 em 2023, um incremento de 77,9%. O Rio Grande do Sul foi o estado com mais registros, totalizando 2.857 casos, um aumento de 13,2% em relação aos 2.523 casos de 2022. O estado também registrou aumento de 10,5% nos registros de Injúria Racial, passando de 162 casos em 2022 para 179, em 2023. A informação foi divulgada pelo Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2024, que reúne dados das polícias estaduais e foi divulgado nesta quinta-feira (18).

De acordo com a delegada Tatiana Bastos, responsável pela primeira Delegacia de Policia de Combate à Intolerância (DPCI) de Porto Alegre, quase 60% da demanda é referente a discriminação em razão da cor da pele. Mas a delegacia, que foi atingida pela enchente e está atendendo em local alternativo, no Shopping Total, também atende outros tipos de crimes de ódio e intolerância. Entre elas as discriminações em razão da orientação sexual e identidade de gênero.

Em relação à população LGBTQIAPN+, conforme aponta o anuário lançado na quinta, a precariedade de dados dificulta um panorama das violações no país, tornando necessário a busca por outras fontes de dados. Como o Atlas da Violência, que tem por referência as notificações de violência interpessoal no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), que mostra que, em 2022, 4.170 pessoas trans e travestis foram vítimas de violência. Segundo dados do Dossiê do Grupo Gay da Bahia, registrando homicídios e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023, o Brasil foi o país que mais assassinou pessoas trans pelo 15º ano consecutivo. Foram 145 casos de homicídio, representando um aumento de 10% em relação ao ano de 2022. 


Delegada Tatiana Bastos / Foto: Carlos Messalla

Em todo país há cerca de nove delegacias especializadas em casos envolvendo casos de racismo, homofobia e injúria qualificada. Duas delas, no RS, sendo uma em Porto Alegre e outra em Santa Maria, titularizada pela delegada Débora Dias.  

A equipe do Brasil de Fato RS conversou com a delegada Tatiana Bastos, responsável DPCI da capital gaúcha. Delegada de polícia no RS desde 2004, ela foi a primeira diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher, entre 2019 e 2020. Assumiu a delegacia em junho do ano passado, após o falecimento de Andrea Mattos, em abril.

Localizada na avenida Presidente Franklin Roosevelt, 981, no bairro São Geraldo, a delegacia que foi inaugurada no Dia Internacional dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 2020, foi atingida pela enchente de maio. 

“Por conta das enchentes, acabamos perdendo toda a delegacia. Estamos provisoriamente aqui no Shopping Total, no segundo andar, atendendo a população. Não com a estrutura que nós tínhamos, mas com certeza podendo dar um bom atendimento e recomeçando o trabalho tanto do registro como, também, inquéritos policiais, investigações, oitivas. Ficamos aqui até poder ir para a nova casa que não será aquele mesmo espaço, será um novo que estamos buscando e vamos, com certeza, reformá-lo para que tenha toda a estrutura necessária, acessibilidade, salas de acolhimento. Um espaço mais humanizado e mais acolhedor”, afirma a delegada. 

O funcionamento da delegacia provisória é das 10h às 18hde segunda à sexta-feira, sem intervalo ao meio-dia. 

Combate a toda forma de discriminação 

Vinculada ao Departamento Estadual de Proteção aos Grupos Vulneráveis (DPGV), a delegacia é responsável pela investigação de casos como os de racismo, homofobia e injúria qualificada que, até então, ficavam sob apuração de várias delegacias não especializadas. 

Além do trabalho de responsabilização criminal, apuração, autoria e materialidade de todos os crimes de ódio, crimes de intolerância, a delegacia, pontua Tatiana, também trabalha na prevenção e acolhimento. 

Tatiana ressalta que a delegacia combate todas as formas de discriminação e preconceito previstas, a maioria delas na lei de racismo. “Quando a gente fala de raça não falamos de um critério biológico, isso já não se sustenta há muitos anos, mas do ponto de vista sócio-político, trabalhando com aquelas categorias sociais, ou minorias sociais que estão ainda em situação de maior vulnerabilidade na sociedade”, explica. 

De acordo com a delegada, quase 60% da demanda é referente a discriminação em razão da cor da pele. “Mas também trabalhamos com os critérios de etnia. De procedência nacional, a chamada xenofobia ou até a procedência regional, a intolerância ao racismo religioso. As violações em relação aos povos indígenas, às pessoas com deficiência. E trabalhamos também desde 2019, por força de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, com todas as discriminações em razão da orientação sexual e identidade de gênero.”


Foto: Carlos Messalla

Crimes de ódio 

Segundo pontua a delega, é observado um aumento muito grande nos crimes de ódio, principalmente aqueles cometidos em rede social. São delitos que, pela legislação, causa de aumento de pena, uma vez que a repercussão é muito maior e afeta muito mais a honra, a imagem e a intimidade das pessoas atingidas.

"São categorias sociais que são atingidas, mesmo quando há uma injúria racial, não é só a honra subjetiva da vítima que está sendo atingida, mas com certeza todo aquele grupo ao qual ela pertence. Que ainda é muito atacado por alguns padrões sociais ou comportamentais que se tem como sendo um padrão de normalidade. Ou padrões de pessoas privilegiadas dentro de um sistema que a gente conhece, patriarcal, racista, misógino. E é isso que a gente combate fortemente, essa transformação Cultural”, prossegue.

Uma demanda que tem aumentado, comenta Tatiana, diz respeito ao enfrentamento a células neonazistas, que também é abrangido pela lei de racismo. “O antissemitismo, o ódio principalmente aos judeus. Mas não só a esse grupo, porque dentro do neonazismo a gente também percebe ódio a pessoas negras, a pessoas homossexuais, transexuais, homofobia, transfobia também é muito forte. E temos feito, inclusive, alguns trabalhos e algumas operações permanentes nesse sentido, como a própria operação Accelerare.”

Trabalho articulado 

A delegada afirma que o trabalho é realizado de forma integrada e articulada, não só com outras delegacias, mas com o próprio Ministério da Justiça. "Inclusive em relação a essa operação Accelerare, onde a gente já efetivou, cumpriu mandados em vários estados da federação. Trabalhamos em parceria com a ABIM (Agência Brasileira de Inteligência), Polícia Federal, também com outros órgãos de inteligência, para que realmente a gente possa ofertar o melhor trabalho, um atendimento célere.”

Conforme pontua Tatiana, muitas vezes quando se está trabalhando com crimes de ódio, eles preveem atentados em massa. “Situações em que há um risco muito grande de um desdobramento maior. Essas células são extremistas, ultra-radicais. A gente sempre teme que não tenhamos muito tempo para trabalhar. Então essa articulação das agências de segurança e das agências de inteligência são fundamentais”, afirma.

Prevenção 

Outro norte do trabalho da Delegacia de Policia de Combate à Intolerância está na prevenção, realizada através de eventos sociais, mutirões articulados com outras instituições, palestras e distribuição de material informativo.

“Frequentemente a gente tem sido acionado para trabalhar com questões relacionadas ao bullying, em relação a orientação sexual e identidade de gênero, a questões de pessoas com deficiência. A própria questão racial aparece bastante e já está aparecendo também simbologias nazistas, fascistas no ambiente escolar”, comenta.

Para a delegada, o trabalho de prevenção é fundamental criar um senso coletivo na população. “Não só do ponto de vista do esclarecimento das pessoas que sofrem violências, que muitas vezes são naturalizadas, muitas vezes sequer percebem que aquilo é uma violência. Muitas vezes não é uma violência física, uma violência que gera um resultado naturalístico, mas a motivação por si só. A motivação racial, a motivação do preconceito já configura o crime de racismo. A violação de direitos, a negativa de direitos, o silenciamento, a hiper-vigilância pela sua condição tudo isso é considerado crime de racismo", explica.

De acordo com Tatiana, muitas vezes quem denuncia não é a própria vítima, mas populares ou outras pessoas que presenciam e que muitas vezes se chocam, percebem que aquilo se trata de racismo. “Elas motivam, incentivam essa pessoa, essa vítima a procurar ajuda, a procurar uma delegacia de polícia. Acho que esse é o nosso grande ganho, é desenvolver esse sentimento, esse juízo crítico, esse sentimento coletivo de combate a todas as formas de preconceito”..

Canais de atendimento

Além do atendimento presencial na DPCI, é possível fazer o registro em qualquer delegacia de polícia do estado e de Porto Alegre. Assim como através da delegaciaonline.org.gov.br, ou pelo site da Policia Civil. 

Também é possível fazer denúncias pelo WhatsApp da Polícia Civil, 51-98-444-06-06. Pelo Disque 180, Central Nacional de Proteção de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, e pelo Disque 100, Central Nacional dos Direitos Humanos. 

“Tudo que chega até nós será apurado, será investigado, mesmo que seja uma denúncia anônima”, conclui Tatiana.


Edição: Marcelo Ferreira