Rio Grande do Sul

Coluna

Potencialidades dos lotes urbanizados no acolhimento da população desabrigada no RS

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"O grau de concentração da terra no Brasil, elevado e histórico, contribui para que os preços das terras permaneçam altos, impedindo o acesso à terra e à moradia" - Foto: Isabelle Rieger/Sul21
A reativação de um grande programa de lotes urbanizados, nesse momento, é fundamental

Neste momento, pensarmos a reconstrução para o Rio Grande do Sul, devastado pelas fortes chuvas, deslizamentos, inundações, provenientes da crise climática e pela omissão e a inércia do poder público local, a problemática da habitação se coloca como um problema humanitário, econômico e político. Esse artigo objetiva trazer uma reflexão para pensar uma política pública de longo prazo que se coloque na perspectiva do planejamento urbano, como ação que se projeta e propõe um futuro pensado como capaz de qualificar a vida dos moradores das cidades atingidas pelo desastre ambiental.

Neste cenário, vimos como fundamental resgatar um programa já implementado no país, para se somar aos esforços de mitigação desta crise ambiental que atravessamos. Trata-se do Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados (PROFILURB), desenvolvido nos anos 1970, como um dos assim chamados programas “alternativos”, para atender a população de 0-3 SM. A primeira lei que tratou do tema, em 1975, financiava lotes urbanizados e promovia a prática de mutirão para a construção de moradias.

O grau de concentração da terra no Brasil, elevado e histórico, contribui para que os preços das terras permaneçam altos, impedindo o acesso à terra e à moradia às faixas de renda entre 0-3 Salários-Mínimos. Essa realidade provoca, cada vez mais, em áreas de risco, a ocupação de terras que não interessam ao mercado. De outra parte, como o instituto da função social da terra é pouco considerado, parcelas do solo urbano dotadas de infraestrutura e com características especiais, localizadas em áreas consolidadas, ficam vazias (vazios urbanos), à espera da valorização e sem que a lei incida sobre elas (obrigação legal de ocupar, IPTU Progressivo, função social da propriedade). Essas condições geram pressão sobre novas áreas, rurais ou naturais, demandando infraestrutura e equipamentos públicos. Paralelamente, e de uma maneira geral, os programas habitacionais se resumem a oferecer unidades habitacionais prontas, e, mais recentemente, em edifícios de apartamentos, em soluções que mais atendem aos ideais e visão de mundo da classe média alta do que às necessidades dos moradores de rendas mais baixas.

O processo de autoconstrução permite que o proprietário/morador possa construir a partir das suas necessidades e de suas possibilidades, ao seu ritmo e tempo, com diminuição dos custos e da energia envolvida. Quando essas ações acontecem e são incentivadas em um grupo social, onde há ajuda recíproca, a construção coletiva, organizada em mutirões e ou em soluções cooperativadas, tende a conferir um sentimento de pertencimento à comunidade e ao território criados coletivamente. A necessidade de assistência técnica para elaboração dos projetos e para a compra dos materiais oferece e possibilita ao mesmo tempo, a contratação de arquitetos e engenheiros, de assistentes sociais e demais técnicos, resultando no desenvolvimento de soluções de projetos adequados e específicos aos grupos envolvidos, através da participação do futuro morador nas decisões sobre a sua habitação e sobre os espaços abertos livres, coletivos, o que reforça a criação de cooperativas de moradores e a interação entre eles, na construção de comunidades resistentes e resilientes ante às mudanças climáticas. Por outro lado, as universidades podem ser envolvidas na produção habitacional através de parcerias, escritórios modelos e mentorias, enquanto que é incrementada a promoção do trabalho para arquitetos, engenheiros e demais técnicos, via ATHIS, seja através de subsídios do Estado, seja privadamente. Esses diferentes agentes e objetivos enriquecem a política pública e alinha-se às determinações legais do desenvolvimento sustentável e da participação ampla, nas decisões do Estado, de todos os envolvidos.    

Os lotes urbanizados se constituem como uma estratégia onde o poder público concede, financia ou subsidia os lotes dotados de infraestrutura urbana, tais como drenagem pluvial, esgotamento sanitário, água potável, energia elétrica, vias de acesso e espaços para equipamentos e serviços urbanos e os moradores entram com mão de obra e recursos próprios para a edificação. Os lotes urbanizados organizam o espaço urbano para a utilização no longo prazo, com a previsão de espaços para praças, creches e escolas, comércio, áreas coletivas para convivência, sistema viário; reforça a associação de moradores e ganhos sociais, construindo também a ideia do coletivo, da comunidade. Neste sentido, torna-se uma solução robusta, mais adequada e consistente do que a proposta de “cidades provisórias”, que tendem a se transformar em guetos de informalidade, com transtornos futuros para os moradores e para o poder público advindos da perda das condições de saúde, de aumento da violência e da impossibilidade de integração à malha urbana consolidada.

Com a maior oferta e disponibilidade de lotes urbanizados, a tendência é, por um lado, uma redução lenta, porém significativa e de longo prazo, do preço da terra; por outro lado, atua no combate à concentração da terra e às desigualdades. O fato de ter sido uma experiência já testada como política pública, no país, permite a alteração de rumos para requalificá-la, adaptando-a ao momento presente e à urgência dada pela catástrofe que atingiu o estado do Rio Grande do Sul. As atuais políticas de habitação que privilegiam o financiamento direto por meio do sistema financeiro têm como resultado o inflacionamento do mercado imobiliário, com unidades habitacionais caras, de baixa qualidade (materiais, projeto, localização) e que não atendem às necessidades dos moradores nas suas especificidades (tamanho da família, possibilidade de gastos, faixa etária, melhorias no tempo/longo prazo).

Os lotes urbanizados apresentam potencial, ainda, como uma maneira de regular a direção do crescimento das cidades, a densificação e o crescimento em áreas já consolidadas (em contiguidade ou continuidade à malha urbana existente) e orientar a localização das moradias em relação aos postos de trabalho (distâncias, emissões de gases efeitos estufa, vias e linhas de transporte). A reativação de um grande programa de lotes urbanizados, nesse momento, pode oportunizar a qualificação espacial, enfrentar riscos e auxiliar na promoção da vida. Entendemos também que outras formas de provisão habitacional devem estar associadas a esta, como por exemplo, a utilização de imóveis desocupados, que podem ser objeto de identificação e da implementação do aluguel social, ação do Estado que, além de resolver o abrigo dos milhares de gaúchos desabrigados, significa um incentivo, de curto prazo, para a retomada e a normalização da vida cotidiana, no estado do Rio Grande do Sul.    

* Fabian Scholze Domingues, Professor da Faculdade de Ciências Econômicas/PGDR/UFRGS e pesquisador do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre.

** Lívia Salomão Piccinini, Professora da Faculdade de Arquitetura/PROPUR/UFRGS.

*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko