Rio Grande do Sul

INVESTIGAÇÃO

Conversas entre ex-servidoras da Smed apontam que cúpula sabia das supostas negociatas

Para Atempa, indícios de corrupção na Secretaria de Educação de Porto Alegre revelam uma 'ação planejada'

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Conversas foram extraídas do celular da ex-chefe de gabinete Camila Correa de Souza, em diálogo com a ex-assessora técnica da Smed Mabel Luiza Leal Vieira - Foto: Reprodução/GZH

Mensagens trocadas no WhatsApp por ex-servidoras da Secretaria Municipal da Educação de Porto Alegre (Smed), reveladas pela GZH, indicam que a cúpula da pasta sabia das possíveis irregularidades em compras de material escolar realizadas no governo do prefeito Sebastião Melo (MDB). Dias antes da divulgação do material, o Brasil de Fato RS conversou com a diretora geral da Associação dos Trabalhadores em Educação de Porto Alegre (Atempa), Isabel Letícia de Medeiros, que falou dos transtornos que essas compras geraram nas escolas e o entendimento da entidade sobre o caso.

As mensagens divulgadas pela GZH foram localizadas em celulares apreendidos durante a segunda fase da Operação Capa Dura, empreendida pela Polícia Civil no início de junho. Segundo a polícia, o total das compras com indícios de direcionamento e conluio da administração com as empresas chega a R$ 54 milhões. O processo de compra era iniciado com o oferecimento do produto diretamente pela empresa, que já indicava qual ata deveria ser aderida e atuava de forma que o termo de referência fosse direcionado para a aquisição do produto oferecido.

A ex-secretária de Educação, Sônia da Rosa, está no centro das compras investigadas. Na segunda fase da operação, ela passou a ser investigada por suposto recebimento de vantagens indevidas de fornecedores da Smed. A investigação aponta que uma empresa teria pago uma parcela do apartamento de Sônia em Porto Alegre, em retribuição pelas compras de livros pedagógicos.

Antes, em janeiro, na primeira fase, ela e mais três pessoas foram presas, incluindo a ex-assessora Mabel Luiza Leal Vieira e a ex-coordenadora pedagógica Michele Bartzen. O caso ficou conhecido também pela apreensão de três carros de luxo, incluindo uma Ferrari, na segunda fase da operação, em nome da empresa de Marco Antônio Freitas Rocha, que estaria entre as beneficiadas pelo esquema.


Ferrari apreendida em operação contra fraudes na Smed / Foto: Reprodução/ Polícia Civil

“Eu dei toda a letra pra Soninha. Ela não me ouve”

Segundo a GZH, as conversas obtidas estão no contexto da aquisição de brinquedos e jogos pedagógicos da empresa Edulab Comércio de Produtos e Equipamentos, entre outubro e dezembro de 2022. Foram localizadas no celular da ex-chefe de gabinete Camila Correa de Souza em diálogos com a ex-assessora Mabel. As negociações teriam sido concretizadas por influência do representante comercial Ciríaco Pereira Freire Junior.

A polícia acredita que as mensagens reforçam a suspeita de que a compra foi direcionada para ocorrer junto à Edulab, que vendeu R$ 4,2 milhões à Smed em equipamentos da marca Brink Mobil, por interesses que ainda estão sob investigação. As falas da servidora apontam que estaria ocorrendo pressão para que as irregularidades fossem cometidas.

Uma das mensagens de Mabel para Camila diz: "Eu matei toda charada dessa m**** de Brink Mobil. Tô com nojo dessa gente".

Camila concorda: “Gente nojenta”.

Mabel prossegue: “Eu falo pra Soninha e ela diz só: toca o processo. Não quer saber das sujeiras”.

Em outro trecho, Camila responde Mabel dizendo: "Sim. Tudo golpe."

E Mabel completa: "Não posso mais ver injustiças. Coisas erradas. E pressão pra tanta m****. Eu dei toda a letra pra Soninha. Ela não me ouve".

Contrapontos

À GZH, a empresa Edulab se manifestou em nota assinada pelo escritório D'Avila, Oliveira, Balducci e Axt Advogados:

A Edulab vem a público declarar que nunca atuou para direcionar qualquer procedimento de compra junto à prefeitura de Porto Alegre ou junto a quaisquer outros órgãos públicos, e que em momento algum foi por eles favorecida em seus contratos comerciais. A Edulab é uma empresa idônea, que pauta as suas relações de maneira ética e em estrito cumprimento à lei, e que sempre esteve à disposição das autoridades para prestar todos os esclarecimentos necessários e contribuir para o bom andamento das investigações.

Já Ciríaco Pereira Freire Junior não foi localizado pela reportagem. Foi solicitado seu contato ou de sua defesa à Edulab, mas não houve resposta.

O advogado Adriano Puerari, defensor do ex-secretário-adjunto Mário de Lima, se manifestou em nota:

Uma leitura atenta aos processos administrativos de contratação deixa muito claro quem são os responsáveis por tais aquisições. Aliás, em depoimento prestado durante a CPI, a própria secretária Sônia assume a responsabilidade das aquisições junto ao seu corpo técnico-pedagógico de confiança. Há provas materiais do relacionamento da secretária Sônia com representante da empresa, que ela recebeu em agenda na SMED no ano de 2022. Há, também, demonstrações materiais da relação entre os representantes da empresa com a senhora Mabel e a área pedagógica do gabinete da Secretaria, que estava encaminhando novas aquisições para o município com esta empresa. Além disso, a função do ex-secretário Mário na Smed se limitava ao acompanhamento da execução orçamentária-financeira, dada a sua formação da área de Economia, inclusive com doutorado. Semanalmente, em reuniões com o centro do governo no gabinete do prefeito, a secretária titular alinhava quais aquisições deveriam ser realizadas com base no saldo orçamentário existente. A partir das determinações da secretária, o setor financeiro encaminhava o solicitado e dava as orientações cabíveis. Tanto a sindicância interna da prefeitura quanto a auditoria do TCE/RS não identificaram nenhuma responsabilidade de Mário com quaisquer aquisições da Smed, justamente porque o ex-servidor não tinha poder decisório para nenhuma aquisição acima de R$ 50 mil. Mário também não tinha poder político para tomada de decisões em relação a aquisições, muito menos para influenciar a assessoria pessoal da secretária. Diante da farta materialidade que envolve a senhora Mabel na maioria das aquisições suspeitas da Smed, ela parece se utilizar da má-fé ou da ignorância em relação à execução orçamentária para tentar esconder as corpulentas marcas de suas digitais em mais um processo de aquisição duvidoso, seja por incompetência ou por suas relações não republicanas com representantes empresariais. Mário está amplamente à disposição das autoridades, como sempre esteve, para colaborar no que for necessário.

O advogado João Pedro Petek, defensor da ex-secretária Sônia da Rosa, disse que vai se manifestar nos autos do processo.

A reportagem informa ainda que deixou recados para Mabel Luiza Leal Vieira e Camila Correa de Souza, mas não obteve retorno.

Para Atempa, é “uma ação planejada”

Em conversa com o Brasil de Fato RS, a diretora da Atempa, Isabel Letícia de Medeiros, afirma que a entidade acompanha as investigações sobre corrupção na Smed com “muita indignação”. Além do grande desperdício de dinheiro público, ela conta que as compras causaram um transtorno muito grande nas escolas. “Materiais chegaram em grande quantidade, sem as escolas terem onde colocar. Foram compras que não tinham demanda, equipamentos que não tinham como ser instalados, livros didáticos com erros.”

Segundo ela, no entendimento da entidade, a partir do que as denúncias revelam, “foi uma ação planejada desde o início do governo”. Ela recorda antes da ex-secretária Sônia, o cargo era ocupado por Janaina Audino, que foi demitida em 2022 pelo prefeito Sebastião Melo, em meio a críticas por não ter aplicado o recurso mínimo obrigatório em educação em 2021 de 25%. Antes de sair, ela aparece em foto com Melo e os empresários Jailson Ferreira da Silva e Sergio Bento de Araújo. Jailson é investigado por tratar do repasse de valores para o negócio do imóvel adquirido pela ex-secretária Sônia.


Reunião entre empresários, prefeito e a então secretária Janaína / Foto: Reprodução/ Matinal

“Essa foto já revelava que existia aí pelo menos um indício de que a secretária Sônia não agiu sozinha”, pondera Isabel. “Depois disso, chega a secretária Sônia Rosa, que uma semana depois de assumir se reúne com esse Jailson e na semana seguinte já começa com essas compras de material”, recorda. Ela pontua que tudo o que está falando é de conhecimento público, a partir das investigações da Polícia Civil e da CPI da Smed, realizada na Câmara de Vereadores de Porto Alegre.

Em meio a isso, ela ressalta ainda o decreto 21.502, assinado por Melo em maio de 2022, que dava à secretária Sônia autorização para fazer compras usando licitações realizadas por outros estados e municípios. O mecanismo chamado de “carona” foi usado para a compra dos livros e equipamentos que ficaram estocados sem serem usados pelas escolas e são alvo das investigações.

“Ela passa a poder gerir esse dinheiro, concretizando essas compras que chegam a um valor exorbitante, enquanto que a rede de ensino passa pela dificuldade que passa, escolas alagadas, problemas estruturais”, pontua. Ela destaca que, com as enchentes de maio, 14 escolas foram destruídas e “a Smed sequer providenciou um local adequado para as aulas”.

Material chegou nas escolas sem planejamento

A dirigente da Atempa conta que quando os materiais comprados chegaram nas escolas, foi um grande transtorno. “As escolas que já têm seus espaços totalmente ocupados, de repente para um caminhão com essa quantidade imensa de material que vai sendo largado ali sem nenhum planejamento. Imagina, se para colocar um ventilador em uma escola tu tem que fazer um processo de tomada de preço e de orçamento. Então não é assim, tem que ter todo um planejamento.”

Segundo ela, ainda hoje escolas possuem ar-condicionados guardados porque a escola não tem condição de fiação elétrica para comportar. Outras têm telas interativas que as escolas não conseguiram colocar “porque têm muitas paredes condenadas, é um equipamento pesado, algumas são de madeira”. Há também muitos Chromebooks parados, pois foi comprado um por estudante e as escolas não têm conexão de internet para o uso dos laptops.

Quando chegaram os livros didáticos, ela recorda que as escolas questionaram o motivo do envio, que também foram enviados sem diálogo com os educadores. “Quando as professoras foram abrir os livros didáticos, eles tinham erros gráficos, de tabuada, de tudo. E nós temos, pelo Programa Nacional do Livro Didático, a possibilidade de selecionar livros de muito melhor qualidade do que essa.”


Livros com erros de ortografia acabaram ficando acucmulados em escolas / Foto: Divulgação/Atempa

“Na mesma época”, prossegue Isabel, “nós tínhamos pelo menos umas 20 escolas com a caixa d'água avariada. Então, se você tem um recurso da educação, no que você vai investir primeiro? Na infraestrutura básica, que é a água, banheiro funcionando. Segundo ela, em uma visita realizada no início do ano pela Atempa, foram constatadas muitas escolas com paredes rachadas, uma escola de educação infantil com o segundo piso condenado, outra com fios desencapados.

Grande parte dos materiais e computadores não usados pelas escolas acabaram indo para depósitos.

Nota da prefeitura

Após a realização da segunda fase da Operação Capa Dura, o Gabinete de Comunicação Social da Prefeitura de Porto Alegre emitiu nota à imprensa afirmando que a gestão está provendo todas as informações e prima pela transparência. Confira:

Em relação à operação policial desencadeada na manhã desta sexta-feira, 5, a Prefeitura de Porto Alegre reitera que, por determinação do prefeito Sebastião Melo, apurou os fatos decorrentes de denúncias relacionadas à Secretaria Municipal de Educação ainda em 2023. Todas as informações provenientes da auditoria especial e da Investigação Preliminar Sumária (IPS) foram submetidas à Polícia Civil e a órgãos de controle.

A administração municipal adotou medidas de reestruturação na pasta, como força-tarefa para distribuição de equipamentos e materiais pedagógicos e criação de um novo centro logístico, além de atos administrativos no âmbito de contratos e licitações.

Cabe reforçar, por fim, que a gestão prima pela transparência e lisura na aplicação dos recursos públicos e tem o absoluto interesse na elucidação dos fatos, mantendo em plena colaboração com as instituições.

Gabinete de Comunicação Social

Prefeitura Municipal de Porto Alegre



Edição: Katia Marko