Com Plenarinho da Assembleia Legislativa lotado, movimentos sociais ligados à luta por moradia, simpatizantes, movimentos de outros segmentos e parlamentares debateram nesta quarta-feira (10), durante a audiência pública, a criminalização das ocupações urbanas em Porto Alegre e região Metropolitana. Assim como a situação do direito à moradia no estado e a apresentação de um projeto de lei pela suspensão dos despejos.
A iniciativa, proposta pelo deputado Adão Pretto Filho (PT), a pedido da campanha Despejo Zero, teve o objetivo de debater o Projeto de Lei 154/2023, que visa punir quem estiver em ocupações urbanas e rurais no Rio Grande do Sul.
De autoria do deputado estadual Gustavo Victorino (Republicanos), o PL foi aprovado na Assembleia Legislativa, no dia 4 de junho com 35 votos favoráveis e 14 contrários. O projeto seguiu para veto ou sanção do governador Eduardo Leite (PSDB). Sem resposta do Executivo estadual, voltou para Assembleia, onde foi promulgado nesta terça-feira (9).
De acordo com o PL, quem ocupa propriedades rurais e urbanas pode sofrer uma série de sanções, como a perda de benefícios sociais e a impossibilidade de assumir cargos públicos no estado.
Durante a audiência, quando diversas vezes foi ouvida a frase "quando morar é um privilégio, ocupar é um direito", os participantes destacaram o direito constitucional à habitação e a inconstitucionalidade do PL 154/2023.
Déficit Habitacional e luta por moradia
De acordo com levantamento da Fundação João Pinheiro (FJP), o déficit habitacional no Brasil passou de 5,657 milhões, em 2016, para 5,877 milhões, em 2019, sendo 1,483 milhões em habitação precária, 1,358 milhões em coabitação e 3,036 milhões de ônus excessivo com aluguel.
No RS, o déficit é de 220.927 (65.275 em habitação precárias, 34.073 em coabitação e 121.579 em ônus excessivo com aluguel). Já na Região Metropolitana de Porto Alegre o déficit é de 90.585 (31.619 em habitação precárias,10.116 em coabitação e 48.849 em ônus excessivo com aluguel).
Em mais de uma ocasião os participantes pontuaram que o desastre climático acirrou o déficit. De acordo com o último boletim divulgado pela Defesa Civil, o desastre climático afetou 2.398.255 pessoas. A cada dez gaúchos, dois sofreram com o impacto das chuvas. O estado registra ainda 4.719 pessoas abrigadas. Até o final de junho havia 388.781 pessoas desalojadas.
Outro questionamento feito durante a audiência foi a relação dos imóveis públicos para serem destinados à moradia popular. Segundo mapeamento realizado por pesquisadoras do grupo de "Cidade-em-Projeto" – Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CPLab/Ufrgs), Porto Alegre possui 154 imóveis disponibilizados pela prefeitura para alienação, e 20 desocupados pela União.
Já em relação aos prédios estaduais, uma consulta ao painel de imóveis do governo do RS mostra que existem 3.150 imóveis não destinados em todo o território gaúcho, dos quais 37 são prédios e 68 são apartamentos. Somente em Porto Alegre, existem 209 imóveis não destinados e, dentre esses, 34 estão à venda. Entre os não destinados, 33 são apartamentos e dois são prédios.
De acordo com o Observatório das Metrópoles e com o Censo de 2022, de 686.414 domicílios particulares permanentes em 2022 na capital gaúcha, 558.151 estavam ocupados, 101.013 vagos e 27.250 eram de uso ocasional.
Presente à audiência, o secretário-adjunto de Habitação de Porto Alegre, Luiz Antônio Steiglitz, falou sobre as ações da prefeitura na área habitacional, destacando o trabalho de regularização fundiária, que garante infraestrutura para áreas ocupadas e matrícula dos imóveis para os ocupantes. Apontou que o Programa Compra Assistida, lançado pelo governo federal, para atender quem perdeu a residência na enchente, cadastrou 1.600 imóveis na capital, que poderão ser adquiridos pelo governo federal através da Caixa Econômica Federal e doados a famílias afetadas. Contudo, ressaltou, apenas 500 unidades podem ser ocupadas imediatamente.
O Programa Compra Assistida iniciou no dia 11 de junho, quando a Caixa abriu o cadastro para receber ofertas de moradias. De acordo com o programa, as unidades habitacionais prontas, novas ou usadas, deverão ter o valor de venda de até R$ 200 mil. A medida contempla famílias das faixas 1 (com renda mensal bruta até R$ 2.640) e da Faixa 2 (renda familiar de R$ 2.640,01 a R$ 4.400/mês) do Minha Casa, Minha Vida.
A importância dos movimentos sociais na democracia
Segundo o primeiro relatório do Índice de Progresso Social do Brasil (IPS Brasil), divulgado em julho deste ano, Porto Alegre é a segunda pior capital do país em termos de moradia adequada com serviços básicos, à frente apenas de Macapá (AP). A categoria tem como indicadores domicílios com coleta de resíduos, iluminação elétrica, paredes e pisos adequados. Com 78,56 pontos, a capital gaúcha está 16 pontos atrás da primeira colocada, João Pessoa (PB), e nove pontos abaixo da média nacional (87,74).
“A questão da moradia virou uma mercadoria, e cada vez mais se tornando inacessível para o povo mais pobre do nosso país. Nós tivemos aquela vitória gigantesca que foi o despejo zero durante a pandemia e acredito que nós temos suficientes argumentos no Rio Grande do Sul, diante da tragédia que deixou número gigantesco de pessoas sem moradia, para impedir os despejos que estão para ocorrer no próximo período”, ressaltou a deputada Luciana Genro (PSOL).
Para a parlamentar, é preciso cada vez mais fortalecer a luta popular e os movimentos sociais. “A gente sabe que o Poder Judiciário tem as suas tecnicalidades, mas ele também é sensível às pressões externas, ao que ocorre na sociedade e ao respaldo que determinadas lutas tem. A mobilização, ocupações, audiências como essa, são fundamentais para que possamos ter vitórias jurídicas e políticas no sentido de garantir que os compromissos assumidos pelos governos efetivamente se realizem. E para que possamos avançar rapidamente na garantia de moradia digna para aqueles que perderam as suas casas na enchente, como para todos que necessitam de uma moradia e que, desde antes das enchentes, já não tinham esse direito assegurado.”
O promotor público Cláudio Ari Pinheiro de Melo ressaltou a legitimidade dos movimentos sociais no âmbito da democracia e do processo de luta pela moradia na história brasileira. “A democracia não é apenas composta por instituições, pelo Poder Legislativo, pelo Poder Executivo, pelas instituições e sistemas de Justiça. Os movimentos sociais são absolutamente fundamentais para que o sistema democrático opere numa relação entre a sociedade civil. As suas instâncias de representação espontânea que são capazes de efetivamente dar voz para os vários segmentos e lutas sociais, sobretudo no seu diálogo com as instituições”, afirmou.
Segundo ressaltou o promotor, o Brasil não consegue colocar como prioridade políticas públicas e sociais de acesso à moradia. "A gente não avança, ao contrário, a gente retrocede. Por isso os movimentos sociais de luta pela moradia continuam sendo absolutamente decisivos."
Em sua avaliação, o Programa Minha Casa Minha Vida tem se mostrado insuficiente, pois teve como uma de suas consequências a “desarticulação de políticas públicas, transformando estados e municípios em meros entregadores de chaves. “A inexistência, a desarticulação de políticas públicas de acesso à moradia, seja na forma de produção de moradia, seja na forma de regularização fundiária, continua tornando a forma histórica de acesso à moradia do Brasil.”
“A gente tem um déficit de moradia enorme e isso não é enfrentado de forma séria. Também temos déficit também de assistência social, que está sucateada nos vários municípios e quando veio a crise climática isso ficou muito claro. Assim como a falta de planejamento urbano. Com essa crise climática agora não podemos deixar que a especulação imobiliária venha a se impor e fazer mais gentrificação, mais violações. Precisamos de políticas públicas, valorizar o serviço público”, ressaltou o ouvidor da Defensoria Pública, Rodrigo Medeiros.
Pela inconstitucionalidade da criminalização
“A questão das ocupações faz parte da história do nosso país. Eu nasci numa ocupação lá no Morro Santana, quando minha família veio do interior. E hoje a gente tem mais de 700 comunidades irregulares em Porto Alegre. A diferença é que hoje temos fascistas no poder e ocupando o espaço da política, pessoas que olham para luta que fazemos e nos enxergam como criminosos”, expôs a coordenadora estadual do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), Ceniriani Vargas da Silva, conhecida como Ni.
Conforme pontuou a coordenadora, a decadência da política pública leva pessoas aos extremos. “Ninguém vai para o processo de ocupação, passar a necessidade, muitas vezes enfrentar uma chuva, enfrentar a polícia, enfrentar a Guarda Municipal truculenta que a gente tem, porque quer. A gente chegou no limite, a falta de política pública leva as pessoas a buscar uma alternativa, a luta pela moradia através das ocupações. Isso tem que ser reconhecido a partir deste contexto da política pública e não como caso de polícia, como aconteceu na ocupação Sarah Domingues, como aconteceu na ocupação do Arvoredo, como aconteceu na ocupação Resistência.”
Para ela o PL 154/2023 integra um movimento de criminalização que os movimentos sociais estão sofrendo no país inteiro, como resposta à luta travada na pandemia que manteve os despejos suspensos. “A resposta deles é institucionalizar a criminalização da nossa luta a partir da aprovação deste projeto de lei”, frisou.
Na avaliação do presidente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos, Júlio Picon Alt, a lei aprovada pela Assembleia Legislativa é uma estratégia nacional do grupo político que prega invasão zero. “Iniciativas legislativas para criminalizar os movimentos sociais foram articuladas em todo o país, inclusive, no Congresso Nacional. São projetos inconstitucionais, pois afrontam a Constituição Federal, que assegura o direito à moradia”, analisou.
Para o Secretário de Desenvolvimento Urbano da União de Moradores de Porto Alegre (Uampa), Marcelo Dias, o direito à moradia e a criminalização acontecem simultaneamente. “Na ausência de uma política habitacional mínima e com um déficit crescente, não há outra opção, mesmo que um setor político opte por criminalizar quem luta por um direito constitucional. Eles querem nos barrar, nos calar, tirar todos os nossos direitos.”
"A gente segue sob constante ameaça"
Morador do Sarandi, o mais impactado pelas enchentes em Porto Alegre, o coordenador do Movimento de Lutas, nos bairros, vilas e favelas (MLB), Luciano Schafer, pontuou que ele foi um dos 26 mil impactados no bairro. “Tive que abandonar minha casa. Ela alagou em fevereiro, alagou em novembro, alagou em setembro, e o assoalho não aguentou, assim como já alagou todas as outras vezes nos anos anteriores. Quem está aqui sabe como é a situação do Sarandi, do Humaitá, de todos esses bairros que foram aterrados pela burguesia para a expansão urbana.”
O coordenador lembrou também de outras desocupações violentas por ordem do governo, como o despejo da Lanceiros Negros, em 2017, e a recente na Sarah Domingues. "A gente segue sob constante ameaça. A gente tem que avançar nas nossas lutas, nas nossas pautas, porque se só barrar, a gente está vendo que não é possível. Porque eles se reorganizam e vão adiante. Temos que e seguir denunciando, porque os próximos passos estão aí, o fascismo não dá trégua", frisou.
Por sua vez a defensora pública Alessandra Quines relatou fatos acontecido em desocupações recentes em Porto Alegre. Citou o caso do despejo da Ocupação Arvoredo que, de maneira surpreendente, em sua avaliação, foi acompanhado por policiais civis e quatro viaturas da corporação. “Atuamos para estabelecer a ordem das atribuições das instituições, pois não cabe à Polícia Civil acompanhar reintegração de posse, e para assegurar que a oficial de Justiça cumprisse os requisitos legais para a ação. A própria Brigada Militar, quando foi chamada, reconheceu não haver naquele momento condições de cumprir o mandado”, expôs.
Integrante da ocupação Arvoredo, Carlos Eduardo Marques Pereira, lembrou que a ocupação tem um mandato de reintegração de posse para o próximo dia 23 . “Queremos saber o que vai acontecer. Eu queria buscar um apoio sobre isso aí. Estamos todos apreensivos, temos crianças, temos idosos, todo mundo lá todo dia me pergunta, o que farão. Eu não tenho ainda uma linha assim para poder dizer para eles, ó, tá assim, tá seguro, porque não está.”
Morada da Ocupação Periferia no Centro, e integrante do movimento União por Moradia Popular, Jurema Alves, ressaltou a urgência de resposta para a questão da moradia do prédio ocupado e que está no projeto de retrofit. “Sabemos que existem listas de prédios que estão destinados à moradia, mas que o nosso povo segue aguardando respostas efetivas do governo. Há ainda muitas pessoas em abrigos, em casos de familiares, muitos desassistidos pelos benefícios então prometidos. E agora com esse projeto de lei fascista, nos colocando numa condição de criminosos, criminalizando a luta, uma luta legítima e reconhecida, precisamos seguir filmes e fortes e resistindo principalmente a esse governo que não nos representa.”
Para Sandra Christ, da direção estadual do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD), a situação está muito grave, principalmente após a enchente. “A gente entende que esses mesmos deputados, com esse mesmo governador, que foi um dos que destruiu o Código Ambiental do nosso estado, é responsável por tudo que está acontecendo. Nós do MTB, junto com o MNLM, com o pessoal da moradia, a gente quer estar construindo um comitê popular pela reconstrução. Estamos programando uma luta grande nesse estado.”
“O direito à moradia é fundamental”
O deputado estadual Adão Pretto Filho destacou ao Brasil de Fato RS que o tema da moradia e da habitação é fundamental. "É um problema social que há muito tempo vem acontecendo. Porto Alegre é a segunda capital com o pior índice de moradia do Brasil. Com essa crise, com essa catástrofe que o nosso estado está vivendo, a enchente tirou de debaixo do tapete, essa demanda tão grande reprimida há muitos anos que é o déficit habitacional”, afirmou.
O parlamentar reforçou que a questão habitacional é um direito humano garantido pela Constituição brasileira, mas que muitas vezes não é respeitado pelo poder público. “Tem tantos prédios públicos (municipais, estaduais e federais) aqui na capital como no entorno da região Metropolitana e que nós queremos achar um iniciativa para que essas famílias que estão desabrigadas tanto agora na enchente, mas também ao longo dos anos, queremos dar dignidade para essas famílias.”
Sobre a questão da criminalização das ocupações, o deputado afirmou ser inadmissível crianças, idosos sendo expulsos de prédios públicos há anos abandonados. “As pessoas entraram lá porque sentiram ali um abrigo para ficar e vem a brigada tirar essas pessoas de forma truculenta. Nesse sentido também cobrar o Executivo, as forças de Segurança Pública para que tenham sensibilidade neste momento”, defendeu.
Encaminhamentos
O principal encaminhamento da audiência foi a busca pela suspensão da lei que pune pessoas em ocupações por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), capitaneada por Adão Pretto e pela deputada Luciana Genro (PSOL), que se somou à iniciativa, e que conta também com o apoio das principais lideranças do movimento da luta pela moradia.
Outro encaminhamento foi a criação de um projeto de lei que institua o Despejo Zero, para proibir que pessoas sejam despejadas das ocupações no Rio Grande do Sul, pelo menos até o fim de 2024.
* Com informações da Agência de Notícias da Assembleia Legislativa
Edição: Marcelo Ferreira