Em ayni, a entrega do que temos e somos para o benefício comum é uma honra e traz dignidade
A arte de dar, tão propícia para manter os equilíbrios em nossa existência, é uma prática antiga e quase esquecida, ou podemos dizer, condicionada às exigências da nossa cultura comercial e individualista, centrada em receber e acumular.
Inventamos tantos protocolos na hora de dar, que um ato simples e necessário, passou a ser um catálogo de requerimentos, no que precisamos medir, contar, calcular, equilibrar, saber, testar, para sentir que quando damos não perdemos. Finalmente nosso dar se converteu em uma troca, e colocamos nele a obscura ideia do capital.
Porém, na Sabedoria Andina, o dar, faz parte da graciosa natureza de Pachamama, a existência unificadora e maternal, que é um ser bastante generoso, abrangente e comunitário. Neste logos, todos recebemos e damos na mesma proporção, assim se preserva o equilíbrio, se evitam acumulações ou faltas, e todos os seres, humanos ou não, podem ocupar um lugar e ter o que precisam.
Isso se chama Ayni, um código da ética vital andina, que mantém a totalidade interagindo de forma harmoniosa e recíproca. Quando estamos em Ayni, o sentido de dar não tem o peso da perda, senão que é uma forma de receber, de “ganhar”, de ser saciados e contemplados.
Em ayni, a entrega do que temos e somos para o benefício comum é uma honra, e traz dignidade e florescimento profundo de abundância e bençãos. Dar-se torna assim a manifestação de saúde e amadurecimento de cada ser, que doa o melhor de si, para receber também o melhor do todo.
Soa lírico para ti? É lírico mesmo e efetivo também, porque justamente essa fina inteligência de Pachamama, vai garantindo que todos cuidem do Ayni, pois sabem que quanto mais se manifesta sua capacidade de dar, mais harmonia geram para si mesmos.
No código do Ayni a riqueza está em dar. Quanto mais doamos mais temos, ter em sentido amplo e profundo: ter em coração, em relações, em agradecimento, em liberdade, em amigos, em abundância, em necessidades satisfeitas, em sabedoria. Ter em alma, ter o que realmente importa.
Neste mundo devastado pela acumulação dos que só querem receber sem dar, o código de Ayni nos mostra uma janela de possibilidades. Por que não gerar economias baseadas no dar? Por que não criar sistemas e redes onde todos doam, oferecem, aportam? Por que não sair de vez da vaidade de achar que alguns importam mais do que outros, e, que, portanto, “os muito importantes” precisam ter mais?
A Consciência Pachamama nos dá ferramentas muito claras e milenares de sabedoria, baseadas em éticas reais, em códigos de beleza e gentileza com todos os seres. E nosso dever é desacomodar nossas certezas interesseiras que fedem, e que se tornaram fardos para o equilíbrio do Planeta e de nós mesmos.
Somos convidadas a viver na humildade do AYNI, que nos oferece a grandiosidade de dar, de dar até cansar, de dar o que somos e o que temos, de dar-nos, de recuperar assim a dignidade da nossa civilização, tão atormentada pelos sonhos grotescos do egoísmo.
* Trinidad Aguilar, presidenta da ONG Pachamama e ativista de Nación Pachamama
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko