Pouco a pouco, os catadores e os recicladores estão de volta às ruas de Porto Alegre. Aquelas cenas degradantes de extrema pobreza também se repetem, aparentemente em maior volume. Os contêineres voltaram a ser remexidos permanentemente em busca de alguma coisa que possa ser útil – inclusive e, tragicamente, restos de alimentos.
O catador Alexandre, 43 anos, estava de volta hoje (11) aos bairros Auxiliadora e Floresta, de Porto Alegre, buscando garrafas de plástico e outros materiais que podem ser vendidos. Ao lado dele, estava a cadela Espoleta, alegre e faceira por voltar às ruas. Não se afasta do dono. Dá uma “banda” de 30, 50 metros, e volta correndo. É pura alegria.
O tutor vai logo dizendo que ela é minha família. “Mais fiel impossível”, diz, emocionado. Vítima da enchente, já que mora na rua ou na Vila dos Papeleiros, não tem CEP, CPF e nem auxílio nenhum e foi resgatado por um barco, que ele não sabe de quem é, com água pelo peito. Tem duas cadelas, a Espoleta e a Tampinha. As duas se salvaram. Uma foi dentro do barco, Tampinha, que parou em um abrigo e ele não sabe como buscá-la e nem onde se encontra. Conta que Tampinha era chamada pelos colegas de rua como Fome Zero, “mas estava mais gorda que eu e comia bem todos os dias”, afirma.
Alexandre parou em um abrigo, não lembra o local exato, mas arrumou confusão no primeiro dia. Não queriam deixar Espoleta entrar, abrigo de cães e gatos era em outro lugar. Deram um tapa na cadela e ele resolveu puxar briga e foi embora. “Podem bater em mim, mas em alguém da minha família de jeito nenhum.” O pessoal do abrigo encontrou solução e o catador ficou por lá mais alguns dias. Logo depois foi para as ruas de novo, vivendo aqui e acolá, sem chão, sem rumo e sem um ponto fixo. “Espoleta se salvou da enchente, nadando, afundando, voltando, até que consegui pegá-la. Não merece levar maus tratos.”
Hoje (11), ele estava revirando contêineres na Praça Lanceiros Negros, nas imediações da Coronel Bordini. Estava com uma capa amarela da cabeça aos pés, cheia de furos e detonada, mas contente. “Me protege desta chuva chata, a roupa não molha”, diz. Espoleta estava junto, animada, brincando, pulando no tutor. Era felicidade pura. Alexandre conta ainda que dia desses bebeu muita cachaça e caiu na rua. Brigadianos apareceram e o colocaram contra a parede. “Minha cadelinha também foi e colocou as patas para o alto. Foi fotografada, os policiais riram e se mandaram. Um show.”
Assim como Espoleta e, talvez, quem sabe, Tampinha, que Alexandre espera reencontrar brevemente, 72 dias depois do início da tragédia das águas gaúchas mais de 15 mil cães e gatos aguardam um lar, segundo levantamento do dia 4 de julho. Estão em mais de 300 abrigos por todo o Rio Grande do Sul, mas a aglomeração gera surtos de doença infectocontagiosas em alguns locais, segundo constatou a repórter Bettina Gehm, do portal Sul 21. Deste total, 4.200 estão em Porto Alegre, mas a meta é que ocorram novas feiras de adoção e outros mil consigam novo lar até o final de julho.
O governo tenta novas soluções para a questão depois do fracasso da proposta de ajudar com dinheiro quem adotasse animais. Não deu certo. Houve contestação. As pessoas pegariam o dinheiro e largariam os animais na rua, segundo várias ONGs de proteção aos animais e a multidão de voluntários que ainda estão por aí. A prefeitura também não gostou. “Não incentivamos valores para adotar. A adoção, além de um ato de responsabilidade, tem que ser um ato de amor, não um negócio rentável e sem fiscalização posterior”, garantiu em nota o Gabinete da Causa Animal.
Em audiência pública na Assembleia Legislativa, a promotora Annelise Steigleder, que vem atuando nos abrigos de animais, compartilhou sua preocupação com a sustentabilidade dos locais no médio e longo prazo. “Os abrigos foram constituídos no improviso, como não podia deixar de ser, naquele momento tão dramático. Mas agora, passados dois meses do início das enchentes, temos que avançar para políticas públicas mais permanentes, que possam fomentar a adoção desses animais.”
Mesmo diante da catástrofe, apenas 66 municípios gaúchos solicitaram, ao governo federal, recursos do chamado rito sumário para proteção animal. Se todos os municípios afetados, em situação de emergência, tivessem solicitado esses recursos, o montante disponibilizado para causa animal no Estado seria da ordem de mais de R$ 22 milhões, segundo o Sul 21. “Para vocês terem uma ideia do tamanho desse recurso, seria suficiente para castrar 80 mil animais”, ressaltou a diretora do departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais do Ministério do Meio Ambiente, Vanessa Negrin, na audiência na Assembleia.
Edição: Katia Marko