Corpos diversos são realmente uma ameaça à sociedade branco-falocêntrica
Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, filósofa nigeriana, em seu artigo ‘Visualizando o corpo: teorias ocidentais e sujeitos africanos’ desvela a centralidade do corpo na sociedade ocidental em comparação com as sociedades africanas. No ocidente, os corpos são lidos e classificados e o que parece operar ao mesmo tempo em que fica oculto é que o corpo que serve de suporte para essa leitura social é o biológico. Posições de poder estabelecem aspectos biológicos próprios como superiores. A partir disso, a decorrência lógica é percebermos que marcadores de raça e gênero não são tratados como diferença, mas são hierarquizados.
A tradição cartesiana própria do ocidente permite omitir que há aqueles que produzem o conhecimento: a racionalidade eurocêntrica que habita corpos brancos, e os outros, reduzidos à condição de primitivos e irracionais, que no máximo podem ser objeto de estudo.
Oyěwùmí fala de uma ordem social fundada tendo como alicerce o corpo, mas não só. Há uma justaposição entre corpo e olhar, o corpo está sempre à vista, diz a filósofa, e a visão é responsável pela classificação de sexo, cor da pele, formato do corpo. Características são classificadas e agrupadas pelo que se vê. A autora afirma que o termo cosmovisão é próprio do ocidente eurocêntrico e que isso aponta para uma lógica cultural que privilegia a visão. O mesmo não se pode dizer da cultura Iorubá, e de outras culturas não ocidentais, nesses casos o mais apropriado seria o termo cosmopercepção, pois privilegia outros sentidos ou uma combinação de sentidos.
O artigo de Oyěwùmí é excelente e sugiro a leitura dele na íntegra. Mas para o propósito deste texto, seguirei a partir daqui com outro autor, o filósofo camaronês Achille Mbembe.
Dedicado a pensar o papel da raça na modernidade, no livro ‘Crítica da Razão Negra’ o filósofo camaronês também aborda a importância do olhar, mas tece essa justaposição de olho/corpo com os fios do capitalismo. Há, segundo o autor, um comércio de olhares que promove aprisionamentos em cadeias de sentido, determinando jogos de visibilidade/invisibilidade. O ideal de humanidade acaba por ser convertido em mercadoria em litígio e “o primeiro objeto de fixação dessa disputa é o corpo” (p.198). O poder se sustenta na manutenção da noção de humanidade estreitamente ligada à universalização de características de raça e gênero, e isso só é possível através da elisão decorrente do que pode ou não ser visto, “A raça só existe por conta de ‘aquilo que não vemos’. Para além de ‘aquilo que não vemos’, não existe raça” (p. 199).
Assim, aparência e realidade ocupam o mesmo lugar. A simplicidade de tomar o que se vê pelo que é, permeia todo o sistema de valoração e trocas, traduzindo-se em uma pobreza imaginária e simbólica que exclui a diversidade e a multiplicidade. Um mundo branco e heteronormativo que leva a promessa do gozo através da justaposição entre olhar e corpo ao limite (por limite de espaço, não será abordado o mercado da estética comercializando brancura e clichês de gênero como objetos fetiche).
Nesta lógica, corpos negros, trans, indígenas, de mulheres e lésbicas se convertem em objeto de gozo para aqueles que são vistos como os que melhor respondem a ideais de raça e gênero, e quando estes corpos divergentes não se assujeitam são tratados como dejetos a serem eliminados.
Entretanto a relação não é apenas de consumo ou de descarte, talvez esse nem seja o ponto que mais importa. O que penso ser relevante falar, é que negras/os, trans, indígenas, mulheres e lésbicas, desvelam a construção fantasmática do poder. Os seus corpos diversos, suas falas constituídas a partir da resistência à segregação, e criadoras de espaços de reexistência são realmente uma ameaça à sociedade branco-falocêntrica, pois desorganizam o mercado de trocas e o valor da mercadoria corpo, complexificando o sistema e instaurando novas questões. É pela manutenção do poder/gozo permitido que essas pessoas são invisibilizadas, silenciadas, perseguidas, criminalizadas. Portanto, é a presença e circulação de corpos e falas diversas para além dos lugares consentidos pelo poder que pode romper com a captura imediata e fácil do corpo pelo olhar colonizador, para que se constitua um hiato entre o olhar e o corpo.
Referências
MBEMBE, Achille. (2018). Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. Visualizando o corpo: teorias ocidentais e sujeitos africanos in: COETZEE, Peter H.; ROUX, Abraham P.J. (eds). The African Philosophy Reader. New York: Routledge, 2002, p. 391-415. Tradução para uso didático de wanderson flor do nascimento. In: Acesso em: 23 jun. 2024.
* Taiasmin Ohnmacht – psicanalista, escritora, mestrado em psicanálise: clínica e cultura (UFRGS/2019), autora dos romances Uma Chance de Continuarmos Assim (Diadorim, 2023), Vozes de Retratos Íntimos (Taverna, 2021), livro vencedor dos prêmios AGES e Açorianos de literatura; finalista do prêmio São Paulo de Literatura e semifinalista do prêmio Jabuti.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko