Rio Grande do Sul

APÓS AS CHEIAS

A enchente na cabeça das crianças

Especialista orienta pais a explicarem calmamente os efeitos climáticos e as suas consequências

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Aulas suspensas, colégio alagado e outras novidades podem não ter despertado interesse imediato, mas ficaram gravadas na memória delas - Foto: Júlia Azevedo/SMED

As crianças costumam se impressionar com qualquer anormalidade que aconteça dentro ou fora de casa. Estão habituadas a viver no universo das suas rotinas. Brincadeiras, alguma bagunça, saídas, colégio, filmes, desenhos. E, agora, com mais frequência e insistência, os famigerados ou amados equipamentos tecnológicos. Algumas viram craques nesta área. Sabem mexer muito mais que certos idosos avessos às novidades. As enchentes e as chuvas também provocaram e provocam uma saraivada de perguntas. Perguntar faz parte do universo infantil.

Mesmo que não tenham acompanhado os problemas causados pelas águas de maio e junho, ou tenham sido vítimas, elas ficaram sabendo de muita coisa. As conversas dos adultos, o rádio ligado, a tevê mostrando a tragédia, as aulas suspensas, o colégio alagado e tantas outras novidades podem não ter despertado interesse imediato, mas ficaram gravadas na memória delas.

Uma vizinha me conta, preocupada, que a sua filhinha de sete anos vive perguntando, mesmo com um baita sol na rua, se vai chover hoje, se vai alagar, se precisa ir para o colégio. São sintomas que surgem depois que os adultos ficaram dois meses falando com frequência, perto delas, sobre esses assuntos e as dificuldades que as águas causaram para milhares de pessoas. Ela não sabia o que responder e nem dizer que a vida normal estava de volta. Dava algumas explicações e saia de fininho do interrogatório. Errou ou acertou?

Jussara Marchand, jornalista especializada em aprendizagem e desenvolvimento, diz que as crianças ainda não compreendem o que é um evento climático do porte que atingiu o RS nos meses de maio e junho. E que o bom, nestas horas de perguntas, é explicar com palavras simples e tranquilizadoras.

“Estás preocupada com o tempo, minha filha(o)? Dá um tempo para a criança mostrar as suas razões e, logo a seguir, dizer, em linguagem adequada, o que é clima, o que o clima muda, o que é uma enchente. Falar também sobre rios, sobre chuvas e a sua importância para a natureza. Falar também o quanto que a batata frita que ela gosta, ou as frutas que ela acha saborosas, dependem da chuva para crescer, se desenvolver e chegar na sua casa”, ensina Jussara.

Talvez no imaginário das crianças tenha ficado as imagens e as cenas da chuva, da tragédia que tanto falam no seu entorno e ela provavelmente ficou confusa. A melhor maneira de desconstruir isso é parar para ouvir as perguntas é abordar o assunto tal qual ele é. E retomar sempre que for necessário, reforça.

Cada criança reage de uma forma, conta Jussara. Ela lembra que, quando era criança, sua filha tinha medo do vento. A família morava em um prédio de 20 andares e, neste casa, sem obstáculos, o vento batia mais forte e chacoalhava as janelas. Para acabar com esta situação, a mãe escolheu um momento especial, sem pressa e sem necessidade de sair de casa, chamou a sua filha e lhe disse que ía contar uma história para o vento.

Com os olhos vidrados e os ouvidos mais atentos do que nunca, a mãe pediu que o vento fosse mais calmo e que não fizesse barulho nas janelas ou assustasse as crianças. “Deu certo, até hoje ela repete a história”, recorda Jussara. Outra técnica é fazer com que as crianças externem suas emoções, preocupações e sentimentos através do estímulo para desenhar e “botar para fora” tudo que estão pensando.

Mesmo com um período de ausência de aulas nas áreas alagadas e com escolas destruídas, Jussara recorda que desenvolveu, desde o período da pandemia de coronavírus, um estudo cujo objetivo é explicar aos pais e professores como aumentar a capacidade de aprendizagem de jovens e crianças. A ideia surgiu a partir de uma observação acerca dos acontecimentos da época. Ela analisou as consequências da doença e concluiu que as famílias não sabiam como ajudar os filhos a aumentar o potencial cognitivo, que é a mobilização de recursos básicos do processo de desenvolvimento de qualquer indivíduo.

Memória, atenção, percepção, compreensão e linguagem são ferramentas que permitem a uma pessoa entender o mundo que a cerca e que dependem de treinamento de profissionais da educação. “Na enchente, a situação é diferente, mas tem o mesmo princípio básico. Os pais têm que ter paciência e tranquilidade para explicar às crianças, quando indagados, sobre estes fenômenos climáticos fortes e perturbadores”, afirma. “Precisam estar preparados e dar as respostas que as crianças esperam.”

Hoje (10), por exemplo, várias escolas dos bairros mais afetados pelas águas de Canoas voltaram às aulas. As crianças foram recepcionadas com professores animados e dispostos a envolver os alunos com carinho, amor e compreensão. A maioria das crianças é de famílias que perderam casas e bens pessoais. Ficaram em abrigos, um pouco desorientadas e traumatizadas. “Estavam felizes, correndo, brincando, falando alto e demonstrando alegria contagiante”, disse uma professora na Rádio Gaúcha. Um novo tempo começava e muitas delas contaram que tinham casa nova, cama nova, material novo. São exceções. Ainda há milhares de crianças fora das salas de aulas e sem equipamentos para aulas online.

A Secretaria da Educação diz que ainda não localizou 900 alunos da rede pública. Famílias que se mudaram para outras cidades, outros estados. Ou simplesmente famílias que ainda estão desnorteadas e confusas pelos eventos trágicos que ainda enfrentam.

* Jornalista

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.


Edição: Marcelo Ferreira