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A Neutralidade Científica é uma Ilusão

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"A completa neutralidade científica é uma falácia, embora essa crença esteja enraizada em nossa sociedade" - Reprodução de obra de Escher
Muitas pesquisas são financiadas por empresas privadas e governos com objetivos nada neutros

No ano de 1851, um médico norte-americano chamado Samuel Cartwright observou um "curioso" fenômeno que se repetia nos campos do estado da Luisiana: os escravizados se rebelavam e fugiam da situação de escravidão. O médico, como representante da ciência, buscava uma explicação para o comportamento "disfuncional" dessas pessoas. Chegou à conclusão de que a rebeldia era fruto de uma doença mental e cunhou o termo drapetomania, derivado do grego drapetes, "um [escravo] fugido", e mania, "loucura, frenesi".

Para o médico, a tendência natural do sujeito escravizado era ser submisso e obediente. Qualquer conduta oposta deveria ser tratada e remediada. A prescrição para a cura consistia em chicotadas nos que lhe pareciam insatisfeitos sem qualquer motivo aparente e, em casos mais graves, a amputação dos dedos dos pés dos "pacientes". E assim, a ciência, encoberta por um falso véu de neutralidade, foi utilizada como justificativa para a realização e manutenção da opressão de corpos pretos.

A completa neutralidade científica é uma falácia. Embora essa crença esteja enraizada em nossa sociedade, foram cientistas e médicos que classificaram a homossexualidade como transtorno mental em torno de 1920. Foi a psiquiatrização da diferença de orientação sexual que deu suporte à construção de uma suposta “sociedade mais sadia". Em 1938, no livro Homossexualismo e Endocrinologia, a homossexualidade era tratada como um "problema social a ser resolvido pela medicina".

Já em 1947, o médico Afrânio Peixoto escreveu que "o que nos cumpre é corrigir-lhes a natureza errada, como se faz aos aleijados, aos tarados, aos deficientes". Apenas no ano de 1990 a homossexualidade deixou de ser considerada transtorno mental pela Organização Mundial da Saúde, o que ocorreu somente no ano de 2018 em relação à transexualidade, pasmem!

Hoje acompanhamos vários exemplos, como pesquisas realizadas por indústrias de combustíveis fósseis que sugerem que as mudanças climáticas são eventos naturais e não fruto da exacerbada atividade humana. Também há vários estudos clínicos atestando a eficácia de alguns medicamentos que são patrocinados pela própria indústria farmacêutica e que muitas vezes carecem de transparência sobre os ensaios clínicos. Algumas psicoterapias que se autodenominam "baseadas em evidências" foram desenvolvidas no contexto ocidental e incorporam valores altamente individualistas. Muitas vezes, são promovidas em combinação com medicamentos psiquiátricos e sua eficácia é comprovada por escalas padronizadas que não capturam plenamente a complexidade da experiência humana.

A ciência é construída por pessoas que vivem em contextos sociais distintos, possuem diferentes visões de mundo e têm grande parte de suas pesquisas financiadas por empresas privadas e governos com objetivos nada neutros. Seja a utilização do termo drapetomania, que foi uma ferramenta ideológica que buscava manter o status quo da macroestrutura escravocrata, seja a classificação da homossexualidade e transexualidade como patologias, esses exemplos nos lembram que, se há neutralidade, é apenas em shampoos.

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko