Rio Grande do Sul

Coluna

Mudanças climáticas e os efeitos socioespaciais das enchentes em São Leopoldo

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São Leopoldo é o quarto município do estado mais afetado pela inundação, com 39% da população atingida - Foto: Fernanda Jardim
Momento é propício às pesquisas qualificadas e de retomar um sentido ao planejamento urbano

Em maio de 2024 o Rio Grande do Sul descobriu, da forma mais dura, o significado de um tema bastante conhecido, mas que parecia, para muitos, abstrato e muito longe da realidade próxima: as mudanças climáticas. As constantes chuvas no estado, efeito de condições físico-naturais preexistentes, agravadas pelas mudanças do clima, ocasionam enchentes em diversas regiões. O evento toma proporções, com mortes, desabrigados, estradas bloqueadas e o estado decreta, em 1° de maio, estado de calamidade pública. A tragédia, relacionada aos eventos climáticos extremos, é um retrato da crise climática e traz consequências socioambientais e espaciais.

Torna-se, portanto, muito mais evidente e concreto a necessidade de abordarmos a questão climática, especialmente no plano territorial, como no plano local, no planejamento urbano municipal e nos planos regionais, à medida que suas causas e efeitos extrapolam os limites políticos-administrativos do município. Neste artigo, apresentamos uma análise sobre os efeitos deste evento socionatural na cidade de São Leopoldo, inserida na Região Metropolitana de Porto Alegre, de forma a trazer alguns apontamentos reflexivos para o planejamento urbano e regional.                

São Leopoldo é o quarto município do estado mais afetado pela inundação, com 39% da população atingida, depois de Canoas (44%), Estrela (46%) e Eldorado do Sul (80%), conforme levantamento de IPH/Ufrgs. O estudo estimou que 84 mil pessoas e 38 mil domicílios foram diretamente atingidos pelas cheias no município. A elevação das águas do Rio dos Sinos ultrapassou a altura dos diques de proteção, inundando parte da cidade e bairros inteiros foram alagados. Uma proporção que superou a marca das enchentes dos últimos anos e da grande cheia histórica que assolou o Vale do Sinos em 1965. Como observa-se nos mapas, os principais bairros impactados foram Santos Dumont, Scharlau, Rio dos Sinos, Campina, São Miguel, Vicentina e o Centro. O bairro Feitoria também foi atingido, afetando áreas que sofrem com constantes alagamentos, considerando sua proximidade com o rio e a falta de sistemas de proteção nesta região.

Cabe ressaltar que as regiões alagadas possuem grande concentração populacional, como a Feitoria e maior extensão, como o Santos Dumont, com 33.791 pessoas residentes, 12.131 domicílios e a maior densidade demográfica do município (7.872 pessoas/Km²). Campina, Scharlau e Vicentina também são bairros populosos, onde predomina a tipologia de casas térreas, elevando o número de desabrigados. No centro, ainda com elevada concentração demográfica, o comércio e as áreas institucionais, que atendem a toda a cidade, também foram significativamente afetados (mapas 2 e 3).


Figura 1 - Área atingida pela inundação e população por bairros, 2022 - São Leopoldo


Figura 2 - Área atingida pela inundação e total de domicílios por bairros, 2022 - São Leopoldo

Dois pontos ficaram evidentes em relação ao sistema de proteção: o primeiro é que parte da cidade não está protegida contra inundações (Feitoria), fato que não é novo, pois são regiões que sofrem alagamentos, mesmo em cheias de menor proporção. O outro está relacionado ao dimensionamento dos diques, considerando que a cota da enchente ultrapassou a sua barreira de proteção. Com eventos climáticos, cada vez mais frequentes e intensos, é fundamental a revisão dos sistemas de proteção existentes, como também buscar por soluções que contemplem um sistema mais amplo de proteção, seja em uma escala mais ampliada, como da Bacia Hidrográfica, quanto em nível local, investindo em soluções preventivas, como um plano de drenagem urbana que possa minimizar os efeitos da chuva, retardando o escoamento da água para os rios.

Quando nos referimos aos desastres socionaturais é preciso compreender a relação entre riscos e vulnerabilidade associados a estes. O afrontamento do desastre requer uma gestão de riscos, que por sua vez trata-se de um processo social amplo e complexo, cujo objetivo último é a redução da vulnerabilidade. Num contexto de maior vulnerabilidade social, expressa nos territórios atingidos e estruturalmente na condição de desenvolvimento nacional, certamente teremos a emergência de fragilidade nas etapas de preparação, resposta e recuperação ante os desastres socionaturais.

Em São Leopoldo, verificamos que as áreas atingidas pela inundação abarcam zonas mais pobres da cidade, em que predomina o extrato de renda média mensal domiciliar de até 6 salários mínimos (SM) (figura 3). Nestes bairros, há a presença de habitações irregulares e precárias e se concentram muitos dos projetos habitacionais de interesse social do município, como podemos observar no mapa da figura 4, referente às Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS). Estes territórios já possuem um estigma associado, de serem as áreas mais baixas da cidade e o lugar dos pobres. Já nas regiões mais altas, à sudoeste, se localizam a população de maior renda, como nos bairros Morro do Espelho, com predomínio de áreas com renda média domiciliar de 12 a 22 SM, Padre Réus, de 9 a 15 SM e São José, de 12 a 15 SM. Este último teve parte do seu território atingido pela inundação, assim como o Centro, em áreas de maior renda.


Figura 3 - Área atingida pela inundação e renda média domiciliar, 2010 - São Leopoldo


Figura 4 - Área atingida pela inundação, AEIS (Plano Diretor) e Aglomerados Subnormais (IBGE) - São Leopoldo

Podemos afirmar que, proporcionalmente, os pobres foram os mais atingidos, considerando, ainda, que o recorte de renda não é suficiente para abarcar toda a especificidade da vulnerabilidade social, mas é bastante representativo, a medida que há uma relação entre classe e grupos de raça, etnias e outras minorias, que estão mais suscetíveis a serem afetados nos desastres e a arcar com o ônus de um processo global relacionado às mudanças climáticas. Assim, este evento revela uma injustiça ambiental espacialmente demarcada, à medida que o local de moradia é pautado por uma lógica de que “quem pode pagar” compra também um outro valor, relativo a um menor risco de ser diretamente atingido por um evento extremo, no caso a inundação.

Mesmo em uma situação de maior magnitude, como a que vivenciamos em maio de 2024, atingindo todo um estado, não afetando somente os mais pobres, sabemos que os territórios mais precários e pobres são também os menos resilientes. Estes sofrem mais com os eventos extremos (mortes, destruição) e terão menores possibilidades de superação das tragédias e de prevenção a novos danos.

Completando dois meses do maior desastre socioambiental ocorrido no RS, o momento da surpresa, da urgência, sobretudo para salvar vidas, e da exposição midiática está se arrefecendo. Observamos um movimento em direção à reflexão, à análise do evento – das suas causas e dos impactos sociais, econômicos e urbanos gerados –, bem como ao desenvolvimento de projetos e planos de reconstrução, sob distintas perspectivas e com narrativas muitas vezes conflitantes.

Trata-se, portanto, de um momento propício às pesquisas qualificadas (reflexivas, críticas e propositivas) e de retomar um sentido ao planejamento urbano e regional, que reflita um projeto social, com participação e apropriação pelos distintos grupos sociais; que realize cidades justas, com espaços inclusivos e representativos dos seus cidadãos; que promova justiça social e ambiental.

* Fernanda Teixeira Jardim, Arquiteta e Urbanista. Doutoranda em Geografia na Ufrgs e pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko