Mais de 600 mil pessoas desalojadas, mais de 2 milhões de pessoas diretamente atingidas. Mais de 170 vidas humanas perdidas. 478 do total de 495 municípios gaúchos diretamente afetados. Essa é a realidade do estado do Rio Grande do Sul, que em maio sofreu as maiores cheias de sua história – há quem diga que a maior enchente em abrangência da história planetária desde que se tem notícia.
Ao contrário do que alegam os governantes locais, existem culpados. A culpa não é das águas, que apenas fazem a retomada de áreas aterradas, assoreadas e devastadas, e seguem seu caminho. Não é crise, é colapso, colapso de um sistema predatório. As enchentes são resultado do desequilíbrio climático gerado pela exploração da terra e das gentes, que é a própria essência e dinâmica do capitalismo.
Cientistas e pajés já há muito avisaram. Desse jeito o céu há de cair sobre nossas cabeças. E está caindo. A terra ruindo sob os nossos pés. Não foi e não é por falta de aviso. É ganância. É plano de extermínio, pois quem mais sofre com o colapso são os que já sofrem com o capitalismo: pessoas pretas, lgbtqia+, quilombolas, indígenas, pobres, mulheres.
As fortes chuvas, enchentes e deslizamentos de terra atingiram diversas regiões. São muitos os territórios afetados, seja diretamente pelos alagamentos ou indiretamente pela falta de acesso, luz, água e abastecimento. Seja pelo racismo ambiental de governo e empresas que só lembram dos povos e comunidades periféricas para explorar suas vidas e territórios. Na hora da tragédia, o Estado chega a admitir que não alcança essas populações. Justamente as que mais precisam.
Está sendo uma árdua luta dar conta das necessidades urgentes da população, e grande parte do apoio para as pessoas afetadas vem de redes, comunidades, movimentos sociais, organizações de base e povos tradicionais.
Parte destas iniciativas estão sendo apoiadas pela Campanha de Solidariedade da Teia dos Povos. Recurso financeiro, apoio direto, que dá conta de demandas emergenciais dos territórios e do fortalecimento da Teia dos Povos no enfrentamento ao colapso climático causado pelo capitalismo.
Região Central
A região central do RS foi uma das primeiras a sofrer com as fortes chuvas no início deste maio de 2024. As estradas foram danificadas e a enchente deixou várias zonas da cidade sem abastecimento de água. Em Santa Maria, bairros foram inundados pelas chuvas, famílias perderam suas casas, seus pertences e tiveram vidas ceifadas.
A comunidade do morro Chechela, localizada na zona norte da cidade, foi um dos locais mais atingidos. O que parecia ser uma tragédia climática, indicou um plano nefasto que pode ter provocado o deslizamento na comunidade.
Moradores relatam ter encontrado diversas valetas abertas com indício de ação humana acima do morro, próximo onde teve o deslizamento que acabou provocando a dor imensa da perda de Liane e Emily.
A região do Morro Chechela é uma área que historicamente sofre pela especulação imobiliária, e já existe um projeto aprovado de construção de uma orla que irá passar onde hoje habita uma comunidade com muita história e memórias de centenas de famílias há mais de 4 gerações. A comunidade, assim como toda uma rede de solidariedade que se formou para enfrentar esse triste momento, vem dando assistência às famílias, e exige uma investigação para descobrir a origem das valetas que provocaram o deslizamento.
Existem localidades que ainda passam necessidades e dificuldades de abastecimento de água e energia elétrica. Regiões que seguem alagadas e em risco, como o caso da comunidade Chácara das Flores, onde a população está impedida de retornar às suas casas, e também a região de Três Barras, que segue com parte das estradas destruídas.
Diversos grupos de solidariedade se formaram para atender as comunidades atingidas na região. Territórios tradicionais, terreiros, grupos e movimentos sociais foram centrais para suprir e acolher as famílias. A exemplo de solidariedade em Santa Maria, o MNU – Movimento Negro Unificado, com a cozinha comunitária do Ilé Àṣẹ ìyà Omin Orun – Templo de Candomblé de Mãe Silvia, serviu diversas refeições, alimentando as aldeias indígenas Kaingang e Mbya Guarani, e prestou assistência com doações para os Quilombos da quarta colônia, que ficaram ilhados.
A Ocupação Vila Resistência teve parte da comunidade alagada e mesmo assim foi ponto de doações e distribuição de alimentos, cobertores, produtos de limpeza, higiene, materiais escolares e lúdicos para as crianças. Vila Resistência ajudou muitas famílias da Ocupação e mais 16 outras comunidades periféricas, atendendo cerca de mil pessoas. O Guandu Grupo Agroecológico, juntamente com a Vila Resistência, a cozinha comunitária do Ilé Àṣẹ ìyà Omin Orun e o MNU, foram essenciais para acolher e fortalecer os territórios e comunidades afetadas em Santa Maria.
Porto Alegre e Região Metropolitana
A capital Porto Alegre e região metropolitana sofreram o maior desastre da sua história. Cidades como Eldorado do Sul e Canoas tiveram bairros inteiros submersos, provocando a remoção forçada de milhares de pessoas. Muitas ainda sem saber se conseguirão seguir a vida nas mesmas casas.
Em Porto Alegre, a falta de manutenção do sistema de contenção de cheias (bombas, comportas, sistema de esgotos) elevou o alcance das águas. O descaso é político. A Prefeitura de Porto Alegre e o Governo do Estado há anos estão entregues a representantes do neoliberalismo, que precarizam intencionalmente diversas estruturas que garantem direitos básicos para depois privatizarem.
Privatizaram a energia elétrica, estão tentando fazer o mesmo com o Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE). Vendem terrenos e prédios públicos, desocupam comunidades para entregar os territórios para a especulação imobiliária. As construtoras, amparadas pela força violenta do Estado e da Justiça, estão promovendo uma intensa gentrificação, remoções e desmatamento feroz em toda a cidade.
Depois da enchente, governador e prefeito se dedicam em se eximir da responsabilidade pelo colapso. Criam comitês de reconstrução, contratam empresas privadas que nitidamente escoarão os recursos e esforços somente para as regiões e setores que beneficiarão políticos, empresas e os mais ricos.
Além da enchente histórica em bairros centrais, a periferia foi duramente atingida. Bairros como Sarandi, Humaitá e Lami foram devastados e as comunidades ainda lutam para amparar a população que perdeu tudo. Nestes bairros, a negligência da Prefeitura e do Governo do Estado do Rio Grande do Sul é evidente e denunciada. No meio de junho, ainda há ruas cheias de entulho e lama.
Nestes bairros, a ação de solidariedade direta e apoio mútuo é o que literalmente salvou as pessoas. A maioria dos salvamentos foi feito de forma autônoma, pela própria população. O acolhimento pós-enchente também em sua maioria aconteceu através de articulações diretas de solidariedade.
No Sarandi, Zona Norte da Cidade, o Quilombo dos Machado cumpre um papel essencial na sobrevivência dos desabrigados. O território atende centenas de pessoas por dia nas mais diversas demandas. Entregou marmitas, alimentos, produtos de limpeza, roupas, colchões, água potável. Proporcionou atendimento médico, cadastro em auxílios emergenciais, acolhimento.
O Quilombo dos Machado é um território em disputa. Quilombolas urbanos em luta pela titulação contra a especulação imobiliária e multinacional. Por promover ações de solidariedade, de fortalecimento territorial, as lideranças do Quilombo correm sérios riscos.
No Morro Santana, Zona Leste da Cidade, a Retomada Gãh Ré é um território que, com a cosmovisão e ação do povo indígena Kaingang, preserva grande parte da mata nativa que ainda cobre o morro. A presença dos indígenas no local impediu o plano do antigo proprietário (família Maisonnave) de desmatar e construir 11 prédios no local.
Das pedras e fontes desta mata preservada, nasce a água que amparou centenas de famílias vizinhas à retomada. Quando a cidade passou por dias de desabastecimento, o território distribuiu água para a comunidade cumprindo um papel fundamental na região.
A cena se tornou comum durante os dias de desabastecimento de água: vizinhos do entorno adentrando a Retomada Gãh Ré carregados de galões, para se abastecerem com a água preservada da nascente do território. “Nós arriscamos nossa vida para proteger essa água”, diz Iracema Gah Té, cacica da retomada.
No extremo Sul de Porto Alegre, bairro Lami, a Aldeia Pindo Poty do povo Mbyá Guarani sofre com frequência com as inundações. Eram removidos às pressas para locais racistas que não recebiam bem os indígenas. Nesta enchente de maio, a Aldeia Van Ká, do povo Kaingang, fez um movimento histórico de apoio mútuo entre os povos e recebeu os parentes durante dois dias, oferecendo abrigo e alimento.
Desde o município de Triunfo, a Comunidade Kilombola Morada da Paz produziu e distribuiu em Porto Alegre alimentos saudáveis em momentos e locais emergenciais, como na Ocupação Desabrigados da Enchente.
O Quilombo Família de Ouro abriu um abrigo de urgência na Vila Mapa, Zona Leste de Porto Alegre. Lá, durante duas semanas, as quilombolas receberam famílias desabrigadas da Zona Sul da cidade e também diversas famílias da Ocupação União por Moradia, ilhada no Centro de Porto Alegre. Estas alianças se criaram e se mantém.
Além destas iniciativas, a Campanha Solidária da Teia dos Povos apoiou a reconstrução da Escola de Capoeira Raízes do Sul e a construção de Cozinha Solidária da Ação Antifascista Social no Quilombo dos Machado.
Demais regiões do estado
A região da Serra Gaúcha foi severamente atingida, inclusive com grandes deslizamentos. Municípios como Três Coroas, Gramado, Canela, São Francisco de Paula, entre outros. As águas de lá desceram para o Litoral Norte, que já havia sofrido catástrofes inéditas com os ciclones no ano anterior.
Em Maquiné, mais uma vez as águas subiram, inundando residências e devastando plantações. Pontes foram arrastadas. A população, quase toda nas áreas rurais, ficou em sua maioria isolada. Falta de abastecimento de água e energia elétrica se tornaram comuns. Assim, produtos refrigerados foram perdidos.
Estradas que ainda não haviam sido reconstruídas desde o ano passado foram ainda mais afetadas. Quase dois meses depois, comunidades inteiras seguem isoladas, principalmente passando o distrito da Barra do Ouro: localidades do Cerrito, Encantada, Forqueta, Garapiá, Pedra de Amolar, entre outras.
A serra da Boa Vista, que dá acesso à Tekoa Yvyty Porã, foi totalmente destruída pelas águas. Sendo assim, o único acesso à aldeia agora é por Riozinho, trajeto longo e acidentado, dificultando o contato dos moradores da aldeia com seus parentes em Maquiné e seus deslocamentos e abastecimento de maneira geral.
A Tekoa Yvyty Porã é a única que foi demarcada no município, depois de um processo de intensa luta contra a família Zaffari, incluindo ataques de pistoleiros. De lá vieram as demais lideranças Mbya da região e é uma área muito sagrada para o povo Guarani.
As águas do centro e norte do estado, depois de desaguarem no rio Guaíba, escoaram para a imensa Lagoa dos Patos. Diversos municípios e comunidades na região sudeste foram atingidos.
Para além do impacto direto das águas, as atividades econômicas foram fortemente prejudicadas. Quem não está tendo que reestruturar suas casas e comércios, não consegue se locomover para trabalhar e vender seus produtos. Isso acontece com as comunidades indígenas, que costumam ficar em áreas de difícil acesso. Ficaram sem ter como sair para vender artesanato, sua principal fonte de renda, e muitas vezes sem acesso ou transporte para conseguir alimentos.
Campanha pelo bem viver dos territórios em resistência ao capitalismo e ao colapso climático
A enchente do Rio Grande do Sul mostrou que a escassez de água potável, de moradia digna, de alimento é um problema real que se acirra em situação de colapso e não serão resolvidas pelos governos ou empresários ricos. Somente em Porto Alegre, existem mais de 100 mil prédios vazios que não cumprem sua função social e que não estão sendo destinados para moradia, mesmo com milhares de pessoas ainda acampadas na beira das rodovias.
Desde que a colonização se impôs pelo mundo é assim, os povos e os pobres conhecem bem o que é o extermínio sistemático. Mas neste momento a abrangência e profundidade do colapso tomou proporção talvez irreversível. Ponto de não retorno.
Catástrofes estão acontecendo simultaneamente ao redor do mundo e voltarão a acontecer aqui, junto à tragédia permanente que é o capitalismo. É preciso nos prepararmos, povo com povo, para a sustentação dos territórios, acolhimento da população e luta contra o capitalismo colonial predatório. Nossa única alternativa é a ação real e radical, anticapitalista, entre os povos, de amor à vida.
É urgente o fortalecimento de nossa organização e ações em rede contra o capitalismo, os bilionários, os latifundiários, as multinacionais, a especulação imobiliária, etc. E principalmente é urgente o fortalecimento da solidariedade direta e real, que reforce a importância e lute pela terra, a água, a autonomia. Por soberania dos territórios que preservam para a nossa sobrevivência enquanto espécie.
Esse entendimento parte da sabedoria dos povos de que a terra é nossa mãe e é preciso cuidá-la. É questão de amor e de ética, mas agora mais do que nunca é uma emergência. Questão de sobrevivência.
A luta seguirá na reconstrução das casas ou na realocação de pessoas em locais que, inicialmente, permitam a mínima dignidade – mas seguiremos na busca do bem viver em sua plenitude para todos os seres. Esse suporte o Estado e as grandes empresas não oferecem ao povo.
A Campanha de Solidariedade da Teia dos Povos surge para contribuir nestas demandas emergenciais, na reestruturação dos territórios atingidos, na construção de autonomia hídrica, energética, alimentar e de moradia.
Ajude a reestruturar e fortalecer os territórios que compõem a Teia dos Povos: aldeias indígenas, quilombos, assentamentos, ocupações e demais comunidades afetadas pelas chuvas e pela exploração capitalista. Para que possamos continuar tecendo a luta por terra e território no Rio Grande do Sul, o enfrentamento ao colapso climático e ao capitalismo e ao mesmo tempo fortalecer e ampliar a rede de solidariedade que tem se formado entre a população a partir dos territórios de resistência.
“Estamos felizes porque estamos em Guerra.
A guerra pela vida
A vida pela terra”
Só o povo ajuda o povo!
A luta é pela vida.
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* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira